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Geografia da natureza do planalto Meridional

3. Os Kaingáng: filiação arqueológica e etnográfica

3.3. Geografia da natureza do planalto Meridional

Segundo Orlando Valverde a formação do planalto meridional obedece à feição de patamares (Valverde, p.38). O relevo se estabeleceu na forma de grandes plataformas (do inglês trap) com altitudes médias entre 600 a 1.200 metros, e com áreas mais dobradas geralmente a leste, em direção ao litoral (serra do mar), marcando o rebaixamento final da placa sul-americana junto ao Oceano Atlântico.

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A região do planalto apresenta um perfil hidrográfico bastante típico, marcado por rios no interior de áreas escavadas com leito rochoso, de onde vem a denominação regional de lajeados. Devido à grande diferença de altitudes e ao relevo acentuado, seus rios possuem grande vazão, apresentando por isso grande potencial hidrelétrico, potencial que não passou despercebido aos olhos dos sucessivos governos que implantaram dezenas de centrais hidrelétricas de pequeno, médio e grande porte nas bacias dos rios Uruguai, Ivaí, Paranapanema, Tietê e Iguaçu, dentre as quais se destaca a hidrelétrica de Itaipu, considerada por especialistas a maior usina do mundo.

Na região sul as áreas serranas correspondem a trechos precisos nos quais houve uma colisão entre os traps, formando áreas onduladas mais acentuadas que em muitos casos constituíam domínios Xokreng e Tupi-Guarani. Nas bordas dos traps, faixas inteiras de rochas mais frágeis (sedimentares) e expostas, surgidas logo após a formação dos mesmos, foram escavadas ao longo de milhares de anos de erosão, formando cânions que chegam a apresentar 600 metros de diferença altimétrica entre os platôs, com solos originários e rochas magmáticas ricas em minerais do solo e coloração roxa, e o fundo dos vales, onde o basalto duro e preto constitui o talvegue dos rios regionais, que por esta razão são chamados de lajeados.

Todos estes rios pertencem ao sistema Platino, que reúne as bacias do Paraná, Uruguai e Paraguai e sob sua estrutura geológica encontra-se o importante aqüífero Guarany, apontado como grande depósito de água subterrânea da América do Sul. Os rios que não integram esta bacia são somente aqueles cujas nascentes antecedem o desnível da placa sul-americana rumo a leste, cujos cursos seguem em direção ao Atlântico.

Nos platôs com altitudes inferiores a 700 metros e de suave ondulação são encontradas as “veredas”, olhos d’água em formações de várzea que servem para abastecimento de água e ainda para inúmeras espécies da fauna local em épocas de reprodução. Ali aparece também o Buritiá, palmeira típica da região e muito conhecida dos índios.

A vegetação é marcada por alguns ecossistemas específicos, sendo os principais deles a Floresta de Araucárias (floresta umbrofila mista), cujo nome é dado em função da predominância fito-ecológica do Pinheiro, e a Mata Atlântica (floresta estacional decidual), em sua área de incidência mais meridional, se expressa por uma

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menor quantidade de lianas (cipós), por exemplo, com predomínio do cedro (Cedrella spp.) que ocorre principalmente nas áreas mais acidentadas e encostas.

Figura 2: Padrão geomorfológico típico do planalto meridional. Vista próximo à aldeia Votouro. (Fotografia do autor, 14 de abril de 2005).

Os campos de altitude, com predomínio de gramíneas e herbáceas, aparecem nas áreas de médias e elevadas altitudes; e também em áreas de relevo suave ondulado, marcadas pela formação de banhados, pequenas áreas encharcadas com altitudes de cerca de 500 a 600 metros, que servem de abrigo provisório a diversas espécies de aves e mamíferos em período reprodutivo. Por fim, as serras e encostas na beira de rios, que eram utilizadas pelos indígenas nos acampamentos sazonais de caça e pesca.

A unidade territorial de uma tribo Kaingáng pode ser assim resumida: constitui um espaço físico – composto por krim (serras), re (campo, pasto), nem (floresta), goio (rios) – onde os grupos podem exercer suas atividades de caça, pesca, coleta e plantio (milho, abóbora, feijão e batata doce). Este território constitui um espaço de perambulação cíclica dos grupos, que desenvolvem aí suas atividades econômicas, sociais e rituais. (Tomasinno, p.85)

Esta região, portanto, não apenas corresponde às áreas de ocupação original dos Kaingáng – ou tradição Taquara, na nomenclatura arqueológica –, como também a que lhes possibilita sua existência e identidade étnica no contexto contemporâneo. Sobre isto, afirma Zuch-Dias:

53 Acreditamos que entre a tradição Taquara e o índio Kaingáng apenas temos uma

diferença na nomeação por parte de arqueólogos e etnógrafos, pois estamos tratando com o mesmo grupo humano que teve sua difusão pelo Planalto Meridional, adaptando-se a ele e criando todo um sistema cultural que lhe serviu ao longo de sua expansão e fixação nas áreas pertencentes à região sul do atual Estado Nacional. Temos também que considerar que pelo fato de começar a entrar em contato, ainda que de forma esporádica com o homem branco, que estaria iniciando a ocupação do território indígena, algumas expressões de sua cultura começam a mudar.

No decorrer da pesquisa, percebemos que os traços culturais dessas populações ainda se mantêm, mas sob outras formas. Se os Kaingáng não mais constroem estruturas subterrâneas é porque aprenderam a fazer suas habitações de outras maneiras e com outros formatos, utilizando igualmente outras ferramentas. Os motivos para que isto tenha acontecido podem estar ligados a vários fatores como: a diminuição do território devido à penetração nas áreas nativas pelo homem branco, com a implantação de novos núcleos populacionais e exploração do antigo território indígena através da derrubada da mata, para a abertura de estradas, o plantio em larga escala e o pastoreio, fazendo com que aos poucos os remanescentes nativos sejam levados a outras áreas e lá adotem os costumes do homem branco, entre eles a construção de casas de madeira com formato retangular, o uso de roupa e muitos outros aspectos verificados nos estudos etnográficos já produzidos e que alteraram os elementos de cultura. (Zuch-Dias, p.186-7)

As florestas descritas são denominadas pelos Kaingáng de “mato preto” e “mato branco”, de acordo com a dominância fito-ecológica da araucária ou do cedro. Estas duas espécies são encontradas em todo o planalto meridional, sendo a primeira típica de Mata Atlântica (floresta estacional decidual) e encontrada também ao norte da região estudada. O cedro tem folhas de coloração mais clara, daí sua área ser associada ao mato branco, do clã Kamé.

Já a araucária, associada ao clã Kanhru, criador da natureza e dos primeiros Kaingáng, é de grande importância para os índios. Apresenta tronco e folhas com espinhos e sua coloração escura prevalece nas áreas de floresta umbrófila mista. Diferentemente do cedro, tem sua incidência estritamente regulada pelo clima, não suportando temperaturas médias superiores a 19ºC. A araucária prevalece em toda a região de platôs, com altitudes médias de 700 a 1.200 metros, ao passo que o cedro prevalece nas áreas de encosta, mais úmidas e diversificadas em espécies (Amparo, p.42). Dornelles sugere que estas florestas podem ter sido manejadas por estes indígenas desde tempos imemoriais, a exemplo do que propôs Baleé para ambientes florestais na bacia amazônica (Dornelles, p.21).

O pinhão constitui a base da alimentação indígena. Há inclusive o registro de que já dominavam o fabrico da farinha, conseguindo assim organizar estoques para assegurar a alimentação durante todo o ano. O mel é também obtido do tronco do pinheiro, e também no tronco desta árvore eram castigados os indígenas indisciplinados, durante o ritual do Kikikoi. O mesmo tronco escavado era também utilizado como tacho

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onde era servido o Kiki, bebida fermentada à base de água e mel que dá nome ao ritual (Amparo, p.43).