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Como propriedade e edição da Sociedade Cultural de Angola, em Luanda, vem a lume, em novembro de 1957, Cultura82 (1957-1961), um jornal mensal que propunha, na mesma senda de Mensagem, servir de estímulo, não só à produção literária, mas à discussão de toda ordem que envolvesse a cultura angolana e a comunhão dos desejos de transformar Angola em algo diferente. Seu primeiro volume traz na capa sugestivamente a essa missão, uma imagem, em tamanho grande, de uma máscara Luena83. A diferença entre os dois veículos editoriais, Mensagem e Cultura (II), para uma crítica como Maria Aparecida Santilli (1985), estaria no fato de que: “em Cultura (II) levantava-se a questão cultural em suas vinculações com os problemas sócio-econômicos de Angola, de forma que se considerava a acção cultural ‘defeituosa’ enquanto tais problemas não se resolvessem.” (p.15)

Na seção “Editorial”, o veículo é introduzido de modo a revelar a que veio:

[...] em virtude de circunstâncias que não interessa agora referir, não existe em Angola qualquer órgão cultural, especificamente cultural.

No entanto, os problemas continuaram a sua marcha inexorável e os homens continuam presentes, portadores, já agora, de novas necessidades, novos anseios e novas coragens. Também maiores em número, consequentemente, em qualidade. Mais conscientes, mais aptos e mais responsáveis. Características que se foram afirmando, mercê da agudização de certos problemas, cujo processo vem lá de trás. Jornal CULTURA, aparece, portanto, como consequência e correspondendo a uma necessidade actual de debate de ideias, de estímulo à crítica e onde o modo de pensar de cada um, estando presentes, possam criar um intenso e verdadeiro plano cultural de que Angola tanto necessita.

Não nos cabe esboçar um plano. Cumpre-nos, isso sim, propiciar, como homens honestos e conscientes, fazendo parte de um mesmo aglomerado, os meios pelos quais hão-de tomar forma, ganhar relevo e conteúdo, as expressões de todos aqueles que são efetivamente capazes de escrever verso ou conto, de estudar ou analisar, de criticar ou equacionar, os diferentes problemas de toda a ordem que se põem em Angola. É na verdade, para todos estes, que jornal CULTURA põe à disposição as suas colunas. CULTURA conta com todos. Mais: sabe que sem o concurso de todos, o jornal não se fará. Porque cultura, verdadeira cultura, ‘bem supremo da humanidade’ significa cada vez mais, nos nossos dias, colaboração de todos, interesse de todos. (CULTURA, 1957, capa. Grifos do autor.)

Tendo como seu diretor, João Bernard da Costa Pereira, licenciado em Ciências Econômicas e Financeiras, Cultura assumia, desde este seu primeiro momento, uma postura

82 Como confirma Carlos Ervedosa (1979), o jornal Cultura fora fundado em sua primeira versão ainda em 1945,

mas em dado momento, suspende sua publicação. Trata-se, nesta seção de Cultura II, ou seja de sua reaparição, ocorrida em 1957.

83 Óscar Ribas, em seu Dicionário de Regionalismos Angolanos, explica que “[...] os luenas praticam uma escultura

de formas doces, sensualizada, onde a representação das tatuagens toma particular importância. São hábeis na execução de máscaras de mulher, usadas pelos bailarinos e outros personagens mascarados. Estas máscaras apresentam os melhores modelos num tipo de máscara-cabeça, de madeira, monobloco.” (1994, p.150)

eclética e de abertura em que convocava claramente: “jovens e não jovens, letrados e não letrados, [para serem] [...] o verdadeiro apoio do jornal.” (CULTURA, 1957, p.capa) O diálogo com Mensagem se estabelece exatamente neste ponto. Ambas se pretendem parabólicas e angolanas. Contando com as palavras de Costa Andrade, podemos pensar como ambas “[...] vem das massas angolanas para os intelectuais e dela [s] resulta um movimento revolucionário de base e formação popular [...].” (ANDRADE, 1980, p.59)

No mesmo caminho de raciocínio, pode-se observar como é significativa a presença de um conto de autoria de Máximo Górki, “Acompanhamento”, no mesmo volume de inauguração do jornal. O aprendiz de sapateiro, órfão, analfabeto que só aprendeu a escrever e a ler depois de adulto e durante seus percursos errantes de gênio vagabundo pela Rússia, em exercício dos mais variados ofícios e em contato direto com as classes mais baixas e todos os “ex-homens” que a posteriori retrataria com apurado realismo, servirá de inspiração para aqueles que anunciariam, como fez o “arauto da tempestade”, a revolução em uma mensagem amarga que partiria do desconforto daquilo que viam. O contista russo, como sabido, tornou-se um tipo de “patriarca da cultura revolucionária russa, figura das mais queridas pelo povo, símbolo dos homens de pensamento das novas gerações.” (CAVALHEIRO, 1958, p.10-11) Sua narrativa, publicada em Cultura, é finalizada com algumas linhas sintomáticas da postura que seria assumida por aqueles membros da geração literária angolana que então se formava. Em relação à história contada, explica Gorki:

Não descrevi acima uma imagem alegórica da perseguição e tortura da verdade; não, infelizmente não é uma alegoria. Isto chama-se um acompanhamento. Assim castigam os maridos a traição de suas mulheres. É uma cena de costumes, que eu vi, em 15 de Julho de 1891, na aldeia de Kandibovka, no distrito de Nicolaiev, governo de Kherson. (CULTURA, 1957, p.7. Grifo do autor)

Tendo como objetivo desta seção realizar uma investigação, a exemplo da já realizada na revista Mensagem, que discuta a produção do conto da Geração, não podemos deixar de destacar que, em sua temporada de atuação, maior do que a daquela mencionada revista, Cultura é composta por doze números. Diante do ecletismo já por nós apontado, com Carlos Ervedosa, é possível observar que sua “[...] colaboração [...] ia desde a científica, normalmente a cargo de intelectuais progressistas portugueses residentes em Angola, à literária, esta exclusivamente preenchida pelos escritores locais.” (ERVEDOSA, 1979, p.128)

A este grupo de escritores está vinculado o nome de José Luandino Vieira. É nas páginas de Cultura que desponta como poeta e ilustrador, mas sobretudo, como contista, e já no primeiro volume, seu nome aparece na lista de colaboradores do periódico — José Graça —

e vale lembrar que Luandino tinha apenas vinte e dois anos de idade. No mesmo volume, dentre outros textos de assuntos variados que são discutidos e diante da renúncia da obrigação, já referida, da elaboração de um plano, percebe-se um fomento à produção artística a serviço da ideia de resistência por meio de reflexões sobre a arte e sobre seu papel.

O ensaio de António José Saraiva intitulado “O artista Pode Escolher”, presente no volume de Cultura, propõe um olhar sobre a “necessidade” da arte. Comparado ao bicho-da- seda que faz seu casulo, o artista é posto numa condição de predisposto ao fazer artístico, mas, em sua perspectiva, é dado a ele o poder de escolha do grau de intervenção social e de consciência transformadora que quer oferecer a sua obra, e é isso o que acaba por distingui-lo do bicho-da-seda. Em suas palavras, o artista:

[...] pode furtar-se ou não a um esclarecimento mais amplo acerca do mundo que o rodeia. Pode querer ou não querer conhecer e experimentar. Pode confinar-se a uma posição passiva, tornando-se sem o saber intérprete de uma experiência e de uma cultura que o modelaram a tal ponto que não dá por isso; ou pode pelo contrário elevar- se a uma posição activa de revisão constante dos dados da experiência e da cultura de que a cada momento dispõe, de modo a ser consciente de seu condicionamento e portanto capaz de o superar. Pode, com base neste esclarecimento, escolher em certos momentos a própria experiência humana em que vai participar.

Não se trata apenas de adquirir novas noções, de enriquecer o seu mobiliário mental, de aderir a esta ou àquela tabuleta. Trata-se de facto de ascender a uma nova síntese mental — uma síntese dinamizadora e criadora de experiência por sua vez. Na medida em que o artista constrói a sua obra com aquilo de que ele mesmo é feito, a transformação do seu grau de consciência resulta na transformação da sua própria arte. [...] Não há em suma uma fatalidade que leve um poeta a ser sempre e necessariamente um Rimbaud, ou um pintor a ser sempre e necessariamente um Picasso de 1900. (CULTURA, 1957, p.4)

O texto de Saraiva (1957) é uma reflexão sobre o poder transformador da arte. Transformador das realidades do artista, a partir da tomada de consciência da fluidez das coisas, e da oportunidade que cada momento minimamente carrega. Parece um retorno ao “Vamos descobrir” de Mensagem, mas neste momento já não se trata de uma mera aventura romântica. O artista igualado, em responsabilidade, ao crítico, é convidado a participar ativamente, e a vincular seus “alicerces técnicos”, suas “florações culturais” em exercício de um “condicionamento da consciência individual”. O ensaio de Saraiva provoca afirmando que é para ir além e “[...] ver de frente as forças que o escravizam [...]” e orienta que cada escritor deve assumir a função social que lhe cabe, sem amputar “o imenso campo de experiência humana que lhe abre [...] possibilidade de decisão [...]”. (1957, p.7)

Mesmo “visado pela censura”, como revelam espaços em que a inscrição aparece impressa, o jornal Cultura consegue discutir questões tão caras àquela sociedade em ebulição, como aquelas que relacionam raça e sociedade, o impulso criativo e o papel do intelectual e do

artista, a realização de inquéritos à atividade cultural em Angola e suas relações com a ideia de “cultura nacional” em construção. Para aquele grupo,

Uma verdadeira cultura não se elabora, apenas com o concurso unilateral de intelectuais, muito embora o seu papel aí seja grande. É fundamental, que nos debrucemos. Todos, sobre a realidade angolana e estudemos, em conjunto, os seus problemas, os mais variados, e lhes apontemos as soluções capazes de os resolver, com vantagem para todos. [...] (CULTURA, 1957, p.6).

Os doze volumes de Cultura trazem em seu quadro diversas formas de expressão entre o ensaio, o artigo, a resenha e a ilustração. Realçando o plano das artes, sobressaem a valorização do cinema, aquecido pelos movimentos cineclubistas; da fotografia e da gravura, a partir da organização de exposições e divulgação de tendências modernas; da pintura, da escultura, e da literatura, através dos ensaios críticos e publicação de textos tendo como representantes a poesia e o conto. O volume dois/ três (correspondente a janeiro e março de 1958) presenteia os leitores com narrativas de Mário Guerra (Benúdia), Hélder Neto e Luandino Vieira que buscam levar adiante a ideia de “cultura colectiva” que lançara como proposta inicial no número anterior.

Em “Aparício Mandou!..”, Mário Guerra (1958) traz o universo das disputas de um grupo de crianças para pensar, neste microcosmo, como um grupo precisa de liderança. Aparício, o menino de que se tem a ideia, já no título do conto, de ser aquele que “dá ordens”, sai da postura de submissão para mostrar ao grupo de que faz parte aquilo que é capaz de fazer para honrar o nome de sua escola, de seu time. O conto é iniciado com o diálogo que se estabelece após uma partida de botão entre meninos em pleno bairro do “Canaxixe”:

— Bom jogo, Aparício.

Aparício voltou-se lentamente no caixote onde estava sentado e encarou quem dizia aquilo. Era o filho do dono da loja.

— Bom jogo, Aparício — repetiu. Aparício só respondeu entre dentes: — É verdade. À nossa custa.

E voltou a fazer arabescos no chão com o dedo de unha suja. Os outros estavam nos morros de terra que o tractor pusera à frente da loja: sentados, de pé ou acocorados. E eis que, no capim lá adiante, no capim crescido da altura duma onça, os rapazes distinguem um vulto a movimentar-se com rapidez.

— Quem vem lá? [...]

— Costa Pernas de Cipaio... — exclamaram os outros.

Aparício também ouvira. E de pronto se levantou, aproximou-se dos seus companheiros. Costa Pernas de Cipaio já chegara.

— É pá... — exclamou ofegante — os gajos... da Aplicação... estão ali, ao pé das casas da Bricon. Dizem que fizemos batota, e que se apanham um de nós dão-lhe a parte. Ninguém falou, todos olharam para Aparício. (CULTURA, 1958, p. 4)

Acusados de trapacearem, os meninos da Escola 8 eram então intimidados pelos seus concorrentes no jogo, “os gajos da Aplicação”. Todos queriam de Aparício uma postura de líder que os defendesse de serem surrados. Interessante é a menção ao personagem “Zé do Telhado” em comparativo à figura de Aparício quando quer saber “— Quem vem lá?”, a que o próprio narrador comenta “não foi assim que o Zé do Telhado perguntou, naquele filme que viram no domingo?”. Mesmo com esta única menção à personagem, cabe esclarecer que Zé do Telhado é uma figura mítica angolana: um português que decide, na clandestinidade, roubar corajosamente dos portugueses para “devolver” aos angolanos. A personalidade da personagem, meio Lampião, no tocante à bravura desmedida; meio Robin Hood, no senso de justiça que lendariamente carregou, parece ser transferida, neste momento, para o menino Aparício. Ainda com o espírito de “Capitão do time”, mesmo no pós-jogo, Aparício, com razão, por não terem feito “batota”, resolve salvar a honra de “seus rapazes”:

Queriam lutar?

Aparício só disse aos seus: — Vamos!

E o gesto acompanhou a palavra, o braço estreito mas forte descreveu meio círculo no ar.

E foram. Primeiro, avançaram os mais fortes e mais experimentados em questões de gaps, baçulas e socos. Depois, os outros, que só lutavam em último caso, e por fim, a claque: numerosa, barulhenta, miúdos raquíticos, que somente se batiam de pau ou pedra na mão, e sempre os primeiros na fuga. Já íam fazer os prognósticos da luta, já sabiam quem venceria, quem atacaria primeiro, quem caíria logo, quem lutaria até o fim.

— É pá! Vais topar o Aparício na baçula a pescador. Barra, mano! — E o Mário Alberto nos gaps?! Tira olho, tira tudo!

— Calma... Nós vamos dar, vamos dar.

— Ninguém foge, ninguém foge. — dizia um garoto, bastante conhecido por sua antecipação e rapidez na fuga.

E os meninos lá foram, qual serpente escura pelo capim escuro. Não tardaram a chegar ao pé dos outros. Aparício foi logo perguntando, o cenho carregado:

— O que é que há?

— Vocês são uns batoteiros de marca! Isto não fica assim! O árbitro estava da vossa parte! Vocês são uns...

Não chegou a acabar a frase. Aparício, resoluto como sempre, ía a calar-lhe a boca com um murro, quando o capitão do time da Escola de Aplicação lhe travou o braço e disse:

— Calma! E se lutássemos só os dois? Quem ganhar ganhou. Vocês são muitos e estão no vosso bairro.

Mas, a sarabanda já começara entre outros. Um já estava no chão, e o adversário mergulhava-lhe para cima. Outro recebia uns bons socos na boca do estômago. — Parem!

A voz de Aparício soou como uma pancada de martelo. Os seus forma-se apartando dos adversários. Suspenderam a luta, Aparício mandou.

— De vocês, ninguém luta. Só lutamos eu e o Antoninho Grande, o capitão da Aplicação. Vocês vêem só. De nós dois, quem ganhar ganhou [...]. (CULTURA, 1958, p.4)

Mário Guerra consegue dar pleno movimento à luta travada pelos meninos no “Canaxixe”, tudo ocorre de tal forma que para nós leitores é como se estivesse acontecendo no momento mesmo em que lemos. A sequência de diálogos registrada entre os meninos dá vivacidade à trama. O conto faz um recorte do cotidiano daqueles meninos luandenses, da vida vivida do lado de fora de casa e da escola. Não há referências a questões raciais, mas a linha da divisão de classe, reflexo da posição econômica das famílias é sugerida quando o narrador destaca a fala de um menino “filho do dono da loja”, mas todos são igualados em sonhos e desejos de serem o melhor. Ao fim da narrativa, diz o narrador com poesia colorida “o Sol brilhava forte sobre os meninos, sobre os meninos filhos do Sol”. O fecho poetizante após uma sequência de descrições a exacerbação dos instintos e impulsos parece ser uma tendência no conto dos prosadores de Cultura.

Ainda no mesmo volume, na seção intitulada “Página dos Novos”, encontra-se o belíssimo conto assinado por Hélder Neto, “Reencontro”. Nele, chamam a atenção a simplicidade e a lentidão das ações, com o efeito pretendido de provocar uma pausa diante das pequenas coisas, dos pequenos mistérios que se escondem por trás de cada pessoa que conhecemos, e que de nós se aproximam. A escola é, no conto, um ambiente que proporcionou o encontro entre a personagem encantadora de João e a do menino, que, agora adulto, narra o “reencontro” motivador da trama que acontece num presente que desencadeia as lembranças do narrador, e o rumo ao passado distante. Essa suspensão da ação, ou este acontecimento da ação apenas dentro da memória é algo que, como técnica narrativa, corresponde a um processo também empregado por Luandino Vieira na sua produção posterior à revista e que será analisada no capítulo quatro. Mas voltemos ao conto de Hélder Neto. E é assim que ele começa:

Encontrei João.

João; o menino franzino e esquivo da escola, João, feito homem.

Os olhos, que eram vivos e brilhantes, estão baços. O corpo ágil tornou-se pesado. — Que é feito, João?

João não responde. Já não me conhece, penso.

— João, sou eu, o teu companheiro de carteira, não te lembras? Não me olha; os olhos continuam pesados, o corpo pesado.

— João, vamos às mandioqueiras? Que tal um tremuno? João, responde! Mas continua calado, o meu companheiro de escola.

Fico-o olhando. Através dos olhos parados, do corpo pesado, das mãos calosas, vai surgindo o João franzino e esquivo, dos olhos vivos e brilhantes, do sorriso sempre despontando nos lábios, agora calejados pelo contacto do alumínio da caneca de vinho.

O corpo pesado continua parado. Dele vai saindo o corpinho enfaixado na bata branca, sobre os calções passajados e o tronco nu. Lá está o João, companheiro de carteira, o amigo de todos, sem ser amigo de nenhum.

Era engraçado, nós não o entendíamos bem. Eramos todos da mesma idade, a mesma bata branca, as brincadeiras eram brincadas por todos nós, mas João, estava sempre longe. Brincava, ria conosco, mas sentíamos João longe.

A introspecção de João doa vários “não ditos” ao conto que acabam por enriquecê- lo. O fim da narrativa, em sua volta ao presente paralisante do “reencontro”, em que o narrador busca se religar ao seu colega, numa tentativa de identificação, deixa a sensação de que mesmo diferentes, eles eram iguais, cada um a seu modo.

João sem a bata branca, o corpo pesado, de mãos calosas, os olhos baços e os lábios calejados.

— Que é feito João? Que é feito? João, responde!

Então João olha pra mim.

Só os olhos se contraem um pouco para se recordar de qualquer coisa. Um fulgor passa rápido por eles.

— Pagas alguma coisa na taberna?

Fico-o olhando. E, pelo areal vermelho, caminhamos, lado a lado, como se fosse nos tempos antigos da escola. (CULTURA, 1958, p. 9)

A narração, executada em primeira pessoa consegue trazer para o presente ecos do narrado na mente do narrador. Há um senso notável de unidade entre as personagens e a trama. A estrutura de nostalgia memorialística construída pelo “novo”, Hélder Neto, e que dialoga com aqueles mestres mais velhos, António Jacinto e Agostinho Neto, aponta para um traço marcante nas composições da geração de Cultura e que vai se tornar uma marca também na obra Luandino Vieira, como se perceberá a partir das análises já anunciadas.

Nesta seção, é nosso intuito também apreciar os contos de Luandino publicados no periódico, pois estando o autor ainda sem livro publicado, tem neste suporte um espaço de exposição dos resultados de seus exercícios criativos que se materializam na poesia, na ilustração e no conto. Como escritor integrante da geração, Luandino propõe, através da narrativa “Companheiros”, reproduzida na página dez do volume, um recorte também questionador do universo da infância que vai se tornar tão caro a suas composições posteriores. Mas não é em um musseque de Luanda, vale destacar, que se passa a narrativa em questão. Huambo84 é o cenário escolhido, então Nova Lisboa, eis o centro urbano em que os três companheiros no conto se desdobram em suas tarefas:

Nova Lisboa companheira. Negro João, Armindo, mulato de corpo gingão, Calumango, rato do mato!

Negro João, a camisa de fora, os pés descalços, os olhos ingénuos. — Diáááário de Luanda! Diáááá...

Mulato Armindo, na esquina, os olhos malandros, os ditos malandros. — Graxa menino. Graxa. Pomada cobra!

Calumango chegou numa noite de chuva e ficou com eles. A caixa de sabão, a escova na mão, o pano batendo, sem prática ainda.

— Mais brilho, negro! Isso não é graxa!

Nova Lisboa, companheira. Alegre e triste. Aberta de noite ao luar, ao Sol de dia. Percorrendo-a com os pés descalços sobre os asfaltos, sobre areia, por entre os eucaliptos à noitinha lá pros lados do S. João, corriam os dias. Nova Lisboa amante,

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