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Capítulo III – A vítima da pornografia infantil na internet

2. Gestão protetiva: a questão protetiva e de gestão de imagens

2.1. Gestão de imagens

Tal como foi abordado, a centralidade do trabalho gecopiano encarnado na figura do analista reside no desafio de decifrar imagens, sob o eixo da caracterização da

menoridade e de produzir e controlar seu impossível apreendido na lógica do sexo. Está nítido que tal caracterização da menoridade diz respeito tanto a uma identificação de um

menor em contexto sexual, quanto à produção de conhecimento sobre ações e personalidades que engendra localizações e individualizações de um alvo, agora, resta aprofundar no que consiste esse decifrar imagens em termos gestionários.

Decifrar imagens consiste em extrair informações e indícios que levem à definição, conhecimento, controle e intervenção sobre uma situação “real”, sobre “pessoas reais”. A dimensão icônica dos conteúdos discursivos é o feixe de compreensão sobre como os elementos contidos em fotos, vídeos e textos podem ser transformados em objetos e ferramentas de gestão de análise e persecução da pornografia infantil na internet.

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O reenquadramento de uma interação entre maiores e menores como desenvolta na lógica do sexo e numa assimetria intolerável e impossível não é executado apenas mediante a definição de um material como “pornografia infantil”, mas ao longo de processos de catalogação, extração e interpretação de ícones, comparações e combinações entre dados, materiais e contextos, negociações de legitimidade e prioridade entre instâncias jurídico-penais. Processos estes que, como foi abordado, não residem apenas no objetivo persecutório penal, mas que se legitima num dever

protetivo. Para exercer uma gestão de caracterização e solução combativa e protetiva, as ações gecopianas incidem sobre fluxos virtuais de discursos que embasam a definição de um problema, mas inicia-se daí uma série de ações voltadas para as imagens retiradas dessa circulação, ou seja, sobre as imagens que agora serão controladas e analisadas em seus efeitos simbólicos.

Portanto, quando eu falo de uma gestão de imagens, tento dar conta do empreendimento de transformação e legitimação de significados em um universo de anonimato, assimetrias radicais e perigos, e que é posto em uma nova circulação dentro da qual sua verdade pode ser proclamada e sua potencialidade simbólica controlada. Deixo sublinhado que por objetos de gestão de imagens não estão limitados apenas materiais literalmente imagéticos, pois por imagens digo respeito à matéria de trabalho de meus interlocutores: enquadramentos interativos.

Inicio o presente tópico com a análise de uma atividade de edição de imagens de pornografia infantil que as aloca em um novo trânsito, o dos documentos persecutórios. Trata-se da colocação de “tarjas pretas” sobre os olhos de menores ou de cortes de partes do frame que poderiam identificar individualmente o menor em condição enquadrada como vexatória (como exemplo, a retirada da imagem da cabeça). Essa atividade foi abordada em campo como uma saída encontrada para o dilema de, por um lado, o combate à divulgação de imagens ser o princípio norteador do conjunto de ações de gestão e, por outro, ter-se a necessidade de utilização destas imagens como materialidade e provas de um crime 107. Para que haja essa veiculação interinstitucional e legítima, são realizadas tais edições procedimentais que visam proteger a identificação da criança e, assim, sua dignidade. Tais procedimentos, então, visam à exposição do

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Apesar de não estar prescrito no ECA, o sentido de violação legal da publicação de imagens e nomes de criança vítimas de pornografia infantil, por parte dos órgãos de persecução criminal (FERREIRA E DOI, p. 5), está amplamente atualizado na prática persecutória como um dever e na teoria persecutória é explicado pelo entendimento doutrinário da proteção integral.

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aviltamento da infância e da menoridade, ao mesmo tempo em que, visam reverter a exposição do aviltamento da criança em foco.

A partir do resultado de triagem exercida sobre materiais que caracterizam a situação a ser investigada, são escolhidas as imagens que se tornam objeto desse tratamento de edição para não identificação de menores que, por sua vez, passam a admitir uma importância específica enquanto ferramentas de gestão. Tal triagem é voltada para escolha das “imagens mais contundentes”, ou seja, para menores menores em posição que mais os exponha sexualmente. O conteúdo vai compor a Informação Policial, resultado documental central do trabalho dos/das analistas em que constam todas as possíveis informações por eles/elas obtidas e sistematizadas. Futuramente, essas imagens comporão também a Representação, que será enviada pelo/a Delegado/a ao Juiz e avaliado pelo Ministério Público para pedir a quebra de sigilo de dados cadastrais dos suspeitos junto às empresas de prestação de serviços de internet. O principal objetivo da alocação das imagens para os fluxos procedimentais persecutórios é o de “convencer o Juiz a dar a quebra”, já o principal objetivo do tratamento que incide sobre as imagens reside em um empreendimento protetivo:

Agente de Polícia 8: Então a nossa função é, basicamente, identificar essas pessoas que tão usando, ou tão ameaçando, ou, mesmo que não estejam ameaçando, tão postando alguma imagem de criança em contexto sexual, pra preservar, sempre lembrando que a gente tem que preservar aquela criança. Tanto é que quando a gente faz Informação, que a gente tem que botar a imagem, como que a imagem tá aparecendo na internet, a gente coloca tarja preta no olho, pra preservar, porque a primeira... antes da gente tentar pegar o criminoso, a primeira coisa que a gente tem que fazer é preservar a imagem da criança, tentar fazer com que o site retire aquela imagem... esse tipo de situação.

Mariana: Essa tarja preta vocês colocam aqui, como que é?

Agente de Polícia 8: Não, assim, na internet não tem muito o que a gente fazer. Na internet, a gente, através de pedido de ordem judicial, o juiz vai determinar que o site tire. Mas eu digo assim, até quando a gente vai fazer uma Informação pro Juiz, a gente coloca a imagem, só que a gente coloca a tarja preta pra preservar aquela imagem. Porque vai que o servidor lá do Tribunal de Justiça, quando pegar aquele processo, ele conhece aquela criança? Então, o principal é preservar a identidade da criança. Basicamente isso. Procurar a autoria de quem tá expondo a imagem de criança na internet. (grifos meus).

O primeiro ponto a ser considerado acerca do que chamarei por ‘procedimento das tarjas pretas’ é sua composição numa sequência de tratamentos de análise que

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incidem sobre as imagens. As imagens que chegam a ser escolhidas para exemplificar a materialidade do crime nos autos não só são objetos de uma “certeza” sobre a qualidade de pornografia infantil, mas configuram o resultado mais eficiente dessa “certeza” e os objetos da convenção produzida acerca de uma realidade intolerável. E, como procurei demonstrar ao longo desta dissertação, trata-se de uma convenção em vias procedimentais de legitimação. Então, as imagens selecionadas são aquelas que detêm maior força simbólica, eficazes no “convencimento” de outras instâncias que atuam no fluxo persecutório, acerca da existência de um crime, da qualidade do crime e urgência e necessidade de combatê-lo.

O segundo ponto a ser considerado é sobre o lugar das tarjas pretas na gestão de

imagens. Tais edições revelam o cuidado empírico com uma vítima e,

concomitantemente, assumem importância efetiva na tradução simbólica que está em jogo. Dentre uma série de mecanismos de ocultamento e interceptação que visam à segregação dessas imagens de olhares online e off-line, pela potencialidade producente de estados indesejáveis de afetação psíquico-emocional, esse material é impresso e “colocado no papel”, a partir do cálculo acerca de seus efeitos de “impactar” e “sensibilizar” quem avaliará o trabalho e as demandas investigativas e jurídicas

gecopianas. As imagens que advieram de um contexto de perigo e o compunham, agora, forjam-se em fotografias sensibilizadoras que acionam a legitimidade de intervenções persecutórias 108. Assim, de possíveis agenciadoras de desejos, normalidades e vícios, as imagens são transformadas em ferramentas de definição da realidade e de legitimações gestionárias.

Retirar a parte da cabeça da foto de um menor ou sobre seus olhos colocar uma linha preta que impeça sua identificação individual faz parte de um conjunto de questões priorizadas e calculadas para se apresentar a “pornografia infantil” às instâncias jurídicas superiores. A “tarja preta” aciona chaves centrais para a transformação e possibilidade de circulação do material entre instâncias jurídico-penais, fixa a assimetria e a vitimização, performando, ao mesmo tempo, uma gestão do

108 É interessante pontuar que o registro de tarjas pretas sobre olhos de menores por idade se faz presente também nas imprensas, porém são discursos de produtividades distintas a respeito da menoridade. Nos autos gecopianos, torna-se imprescindível acionar as imagens de pornografia infantil para construir uma legitimidade jurídica e empírica das investigações na internet, e esta demanda propicia uma série de tratamentos sobre as imagens para a apresentação de uma condição de menores em perigo, e as tarjas pretas empreendem tal enquadramento. Já nos meios jornalísticos, as tarjas pretas são acionadoras do retrato da infância e da adolescência perigosa, as imagens de ‘menores em conflito com a lei’ são acessórias para o relato de fatos, contudo, a vendagem dos olhos possibilita a exposição da menoridade desregrada sem ferir os preceitos legais de proteção à imagem destes indivíduos.

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impossível e uma gestão protetiva. A revelação da condição vexatória sem expor uma criança, delineia a posição da vítima como denunciadora do olhar sexual de seu próprio algoz sobre si, ou seja, como denunciadora da verdade de seu algoz.

E, o terceiro ponto a ser considerado é de que esse tratamento específico dado às imagens ilumina a produção reiterada de desindividualizações de menores no conjunto dos fluxos persecutórios: a interceptação de imagens, os cuidados cotidianos para sua não visualização por outras pessoas durante o trabalho da polícia, a prioridade de não confrontação das imagens com vítimas e seus familiares, bem como com familiares de pedófilos e, resultando, ao fim da sentença judicial, na ordem de destruição do conjunto de material encontrado em posse do suspeito 109. A produção de uma

desindividualização a partir da desidentificação de uma vítima para a caracterização da “vítima” é evidenciada no procedimento das tarjas pretas, mas é patente de um empreendimento de proteção reiterada que acompanha tal gestão do combate à pornografia infantil na internet.

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