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2 DIALÓGOS TEÓRICOS: O DISPOSITIVO, A ORALIDADE, A RACIALIDADE E A GENERICIDADE

2.3 GENERIFICAÇÃO E RACIALIZAÇÃO EM SUAS INTERSECÇÕES

2.3.2 Glória Anzaldúa e a mestiza

Se em um primeiro momento os estudos que tematizaram mulheres, especialmente no contexto norte-americano, observavam uma diferença inicial homens-mulheres, dada nos sistemas de sexo e gênero, os escritos de Glória Anzaldúa marcam a emergência das experiências marginais, de mulheres não brancas, lésbicas, fora dos países centrais, ou seja, a diferença intragênero, abordagem que marcou especialmente

10 As bibliografias cujas traduções para o português não estavam

os anos 1980 e que ainda repercute nas reflexões de gênero contemporâneas, percurso aberto por Glória Anzaldúa no que se chamou de “feminismo da diferença” e que, por sua vez, é uma abordagem teórica que abriu margens para, nos 1990, o que se chama de “Feminismo Interseccional”.

Em um dos trechos mais recorrentemente citados de “La Consciencia de la Mestiza” (2005, p.707), Anzaldúa afirma:

Como mestiza, eu não tenho país, minha terra natal me despejo, no entanto, todos os países são meus porque eu sou a irmã ou a amante em potencial de todas as mulheres. (Como uma lésbica não tenho raça, meu próprio povo me rejeita, mas sou a raça de todas as raças porque a

queer que existe em mim existe em todas as

raças.) Sou sem cultura porque, como uma feminista, desafio as crenças culturais/religiosas coletivas de origem masculina dos indo- hispânicos e anglos; entretanto, tenho cultura porque estou participando da criação de uma outra cultua, uma nova história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores com imagens e símbolos que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta. Soy um

amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não

apenas produz uma criatura tanto da luz quanto da escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e de escuro e dá- lhes novos significados

A mestiza situa-se uma zona de ambiguidade e indecidibilidade que perturba os binarismos culturais, visibilizando o fronteiriço, o sincrético e o diaspórico, uma ótica fronteiriça – da limiaridade e do interstício. Essa mulher mestiça permite criar, portanto, uma inteligibilidade que, a partir de uma experiência subalternizada nos oferece outro ângulo para observar a mestiçagem brasileira, especialmente, as mestiças brasileiras, em sua trajetória ambivalente que questiona certezas epistemológicas produzindo entendimentos que se dão nas zonas da tradutibilidade das diferentes experiências das mulheres em diferentes lugares das relações de poder no tecido social. Essa figura situada no interstício, no contraditório é uma metáfora produtiva para pensar a experiência de Aracy de Andrade especialmente, como já dito, no contexto brasileiro.

A mestiza, para Anzaldúa, é uma consciência e uma subjetividade: “[...] é um produto da transferência de valores culturais e espirituais de um grupo para outro. Ser tricultural, monolíngue, bilíngue, ou multilíngue, falando um patois, e em um estado de transição constante” (ANZALDÚA, 2005, p.705). Assim, encontra-se em um lugar ambivalente, sobrepostas as culturas tradicionais e as dominações brancas pela técnica. Apresenta, estrategicamente, uma tolerância à ambiguidade, sua consciência ambivalente mostra-se em sua flexibilidade: “Rigidez significa morte” (IDEM, 2005, p.705). A atuação da mestiza se dá fora das formações culturais cristalizadas, em uma amplitude que busca incluir em vez de excluir – tolera, portanto, contradições e ambivalências para sua sobrevivência.

Essa flexibilidade orienta-se a um equilíbrio entre culturas, posição da mulher mestiça. Nessa operação pluralística, antitética do atávico, “nada é posto de lado, o bom o ruim, e o feio. Nada é rejeitado, nada abandonado. Não apenas sustenta as contradições como transforma a ambivalência em outra coisa” (IDEM, p.706). Essa união daquilo que se dá separadamente, de forma não fragmentária, diferentemente de um equilíbrio entre faces opostas que caracteriza a figura mestiça delineada por Anzaldúa, dialoga com o conceito de crioulidade de Eduard Glissant. Ambos veem a potência que as hibridizações latino-americanas oferecem às ambivalências e fraturas coloniais perpetuadas pela hegemonia branca (atávica, para Glissant).

Outro diálogo interessante que se dá entre construções teóricas brasileiras e a chicana Anzaldúa está na imagem cartográfica da encruzilhada. A mestiça, para Anzaldúa, incorpora a espiritualidade de suas ancestralidades e torna-se, nesse potente e complexo ser que é, “a sacerditosa mor nas encruzilhadas”, propulsora de movimentos e desdobramentos. A epistemologia de exu, proposta por Leda Maria Martins (1995), em diálogo com as religiosidades afro-brasileiras, também se propõe como uma epistemologia das encruzilhadas, dos encontros, dos hibridismos. Ambas as óticas, tão próximas de si, documentam lutas e reinterpretam a história e o presente à luz de novos símbolos, moldando outros mitos.

Finalmente, a lesbianidade, outra experiência fronteiriça no interior de todos os marcadores de identidade, sejam de classe, gênero ou raça, é afirmada como uma potente forma de trânsito. O mestiço e o queer são para ela, almas similares:

Por serem os/as maiores cruzadores/as de fronteiras, os/as homossexuais têm laços fortes com os queers brancos, negros asiáticos,

ameríndios, latinos, e com os queers na Itália, na Austrália e no resto do planeta. Vimos em todas as cores, todas as classes, todas as raças, todas as épocas. Nosso papel é o de conectar pessoas entre si – os/as negros/as com os/as judeus/ias com os/as índios com os/as asiáticos com os/as brancos/as com os/as extraterrestres. Isso é transferir ideias e informações de uma cultura para outra. Homossexuais de cor têm mais conhecimentos de outras culturas; já que sempre estiveram na linha de frente (ainda que muitas vezes no armário) de todas as lutas pela liberação nesse país; têm sofrido mais injustiça e têm sobrevivido a todas, apesar das dificuldades. Os chicanos precisam reconhecer as contribuições artísticas e políticas do seus queers. Povo escute o que sua jotería está dizendo. (IDEM. p. 712).

Se a figura mestiça no Brasil foi lida sobretudo à luz de teorias que respondem à tentativa de explicar as relações raciais no Brasil sob uma ótica pacificadora, essa leitura combativa, desestabilizadora e potente que nos oferece Anzaldúa também pode ser redimensionada para se entender a experiência mestiça brasileira. Se há fronteira física entre México e Estados Unidos e se os chicanos são para a autora corporificações e trânsitos dessa fronteira, Anzaldúa também afirma categoricamente a existência de experiências de fronteira toda vez que se estabelecem relações binárias – homem e mulher, negros e não negros, hetero e homossexuais. A figura mestiça, em sua consciência e pluriculturalidade, é uma forma de suplantar binarismos.

Aracy de Almeida, seja sob a forma das discursividades que a tomam ou a seu cantar por objeto, sejam seus próprios enunciados e performatividades em muito pode ser apreendida a partir dessas experiências dos limiares, da tradutibilidade e da ambivalência com as quais a mulher mestiça foi enunciada. É possível que Aracy fosse uma mestiza e uma queer antes mesmo que esses efeitos de subjetividade fossem aglutinados e materializados sob a forma de um discurso que os nomeasse. Como veremos a partir dos capítulos seguintes, Aracy transitava entre diferentes mundos e discursos: entre os universos brancos da intelectualidade modernista e o universo de Noel Rosa e Vila Isabel, assemelhandos em alguns sentidos, e o universo da malandragem suburbana carioca; entre os corais das igrejas batistas e os pontos das casas afro-brasileiras; entre seus estudos eruditos e seu dialeto angariado

nas ruas, cheio de gírias e palavrões; entre os marcadores de gênero e marcadores raciais (em um momento histórico em que tais marcadores eram muito mais fixos do que na contemporaneidade). Mais ainda, como veremos, é no seio das próprias contradições da música popular brasileira e do samba que Aracy se subjetiva.

Na próxima e última subseção observamos os processos de racialização e generificação dos corpos e das subjetividades, atentando para seus entrecruzamentos, as analogias possíveis entre um e outro e também para suas diferenças.