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O Libera e os movimentos anticapitalistas no Brasil e no mundo (1995-2000)

“La lucha es como un círculo, se puede empezar en cualquier punto, pero nunca termina.”

Subcomandante Marcos

“E, no centro da própria engrenagem, inventa a contra-mola que resiste.”

Passado o primeiro terço da história do Libera, vamos avançar ao período em que foram publicados os números 51 ao 100. Nesse contexto, os editores vão reverberar e apoiar os movimentos antineoliberalismo que começavam a despontar no mundo: Zapatismo, Ação Global dos Povos, protestos nas reuniões da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do Fundo Monetário Internacional (FMI), entre outros acontecimentos que animaram os militantes ácratas. O motivo? Muitos daqueles movimentos compartilhavam ideias historicamente defendidas pelos anarquistas, tais como ação direta, recusa a partidos políticos, democracia direta e autonomia.

Essa fase do Libera coincide com o início do período de dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), cuja principal característica foi o aprofundamento da política neoliberal iniciada por Collor (1990-1992). Como difusores ideológicos privilegiados, os meios de comunicação hegemônicos vão tentar forjar um consenso da opinião pública em torno do projeto da “globalização”, vendendo um mundo cheio de benesses e progresso. O Libera, contudo, vai fazer uma leitura crítica desse processo, produzindo um contradiscurso que visava desnudar as “verdades” propaladas nas páginas da grande imprensa. Assim, o informativo se voltou contra o desmonte do Estado, apesar do histórico antiestatismo defendido pelos anarquistas. Obviamente que os editores não consideravam gerenciamento estatal como um modelo, mas, na lógica do “melhor perder os anéis do que os dedos”, buscaram defender a manutenção de direitos dos trabalhadores e serviços públicos básicos.

Nessa fase, o Libera também volta sua carga contra setores da esquerda que almejavam ocupar postos de comando na estrutura da democracia liberal-burguesa. Nesse aspecto, não vai economizar nas críticas ao Partido dos Trabalhadores (PT), que então experimentava uma ascensão eleitoral na medida em que as crises econômicas

globais dos anos 90 diminuíam a popularidade dos políticos afinados com a agenda neoliberal. Um processo que levou ao poder, em toda a América Latina, líderes de uma esquerda neodesenvolvimentista, entre os quais Luís Inácio Lula da Silva, no Brasil.

Mas, apesar da disposição do coletivo editorial, o informativo vai continuou a enfrentar, nesse período, as velhas dificuldades da imprensa independente. Dessa forma, as páginas da publicação traziam, por vezes, uma situação “bipolar”. Ou seja: por um lado, celebrava-se a revitalização do Círculo de Estudos e do próprio periódico; mas, por outro, cobrava-se mais participação de seus militantes, além de pedir apoio financeiro dos leitores.

Nesse contexto, o Libera ia resistindo... e persistindo. Para sobreviver, entretanto, teve de se adaptar. Assim, no intervalo 1995-2000 a publicação sofreu a primeira alteração em sua periodicidade, que não fora modificada nas primeiras 91 edições, publicadas todos os meses entre 1991 e 1998. De mensal para bimestral, o informativo se recusava a parar, cumprindo a missão de botar mais lenha na “chama negra” do anarquismo.

Por fim, veremos, neste capítulo 3, que os anarquistas do Libera vão paulatinamente tomar contato com as tecnologias da informação que começavam se popularizar no país. Dessa forma, também podemos acompanhar nas páginas do periódico como os libertários passaram a se comunicar num novo espaço: o “ciberespaço” da rede mundial de computadores.

3.1. O Libera diante da conjuntura fin de siècle

Em nosso recorte cronológico, o “segundo terço” da história de 150 números do Libera começou em agosto de 1995, quando foi lançada a edição 51. Aquele ano também marcava o início do período de dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), cuja principal característica foi o aprofundamento da política neoliberal já iniciada por Collor (1990-1992) e Itamar Franco (1992-1994). Virgínia Fontes resumiu assim a conjuntura da era FHC no Brasil:

O período FHC (1995-2002) caracterizou-se [...] pelo ataque concentrado [...] aos direitos sociais e, sobretudo, às organizações mais combativas dos trabalhadores, seja de maneira abertamente violenta contra entidades de trabalhadores que resistiam (caso, por exemplo, do sindicato dos petroleiros), pela permanência e aprofundamento da truculência policial, seja pela violência indireta – privatizações a toque de caixa e estímulo às demissões. (FONTES, 2010, p.264).

Em sua análise, a historiadora não deixa de chamar a atenção para o papel central da ação ideológica das classes dirigentes em diversos terrenos, entre os quais os meios de comunicação. O objetivo seria forjar o consenso da opinião pública em torno do projeto neoliberal (“pedagogia da hegemonia”).

À violência somava-se uma nova “pedagogia da hegemonia” difundida pelas entidades empresariais e governamentais, abrangendo o universo sindical, escolar (em todos os níveis, do elementar ao ensino superior), igrejas, entidades associativas e culturais e praticamente toda a mídia, agindo intensamente para espraiar a dinâmica do capital em todos os espaços organizativos. (Ibid. p.264).

Nesse processo de “reconfiguração do neoliberalismo” – com atuação coordenada das classes hegemônicas para “captar corações e mentes” para seu tipo

peculiar de sociabilidade – a reconfiguração do Estado vai fomentar “uma expansão seletiva da sociedade civil voltada para desmontar, pelo interior, as organizações populares”. Além disso, tal ação assegurava “novos setores de atividade capitalista que precisavam gerenciar força de trabalho desprovida de direitos e expandir a direção dessa burguesia altamente concentrada sobre o conjunto das atividades sociais” (Ibid. p.264).

A conjuntura internacional dos anos 90 pode ser encarada como o aprofundamento do que Castoriadis chamou, já nos anos 80, de “crise das sociedades ocidentais”. O filósofo revisitou seu texto justamente no ano de 1995, constatando que a análise anterior ainda era pertinente. Vejamos o que ele disse a respeito:

A entrada da economia capitalista [...] em uma fase de expansão não modifica essencialmente a análise que precede. Essa expansão moderada tem lugar, de resto, sobre o pano de fundo de novas evoluções carregadas de consequências. Há 15 anos, a profunda regressão mental das classes dirigentes e dos agentes políticos, que conduziu à “liberalização” total da economia [...] e à globalização cada vez mais efetiva da produção e das trocas, tiveram como resultado a perda do controle dos Estados nacionais sobre suas economias. Elas foram acompanhadas, como seria de prever, por uma explosão da especulação, que transforma cada dia mais a economia capitalista em cassino. (CASTORIADIS, 2002b, p.26. Grifos meus.).

Transitando por vários domínios inter-relacionados (economia, sociedade, política e cultura), Castoriadis propõe uma reflexão global sobre os rumos do capitalismo depois da Segunda Guerra Mundial, onde devemos buscar as raízes do que ainda hoje reverbera nas sociedades ocidentais. Nesse sentido, a despeito das lutas que emergiram nos anos 60 – contestando justamente o modelo de progresso tecnocrático tanto do bloco capitalista quanto do “socialista” – o mundo pós-guerra vem experimentando, para Castoriadis, um “vasto movimento de despolitização e de privatização”, com “esfacelamento do poder entre lobbies de toda espécie” e crescente “burocratização dos aparelhos políticos (partidos)” (Ibid. p.13). Sobressaem, nesse

contexto, os limites da democracia liberal-burguesa.

Num cenário assim, o significado de “política” se restringe ao território institucional controlado (eleições, partidos, políticos profissionais, etc.) – o que é prontamente disseminado pela mídia hegemônica como o ponto máximo da participação “cidadã” e “livre”.

No plano “político” stricto sensu, os partidos, inteiramente transformados em máquinas burocráticas, não obtêm mais do que um apoio puramente eleitoral de cidadãos que eles se tornaram incapazes de “mobilizar”, em qualquer sentido que se dê ao termo. Esses mesmos partidos morrem de inanição ideológica, repetem incansavelmente as ladainhas nas quais ninguém mais acredita (socialistas e comunistas na Europa Ocidental), ou então camuflam em “novas teorias” e “novas políticas” superstições antiquadas (Thatcher, Reagan, etc.). (Ibid. p.15).

Podemos supor que esse quadro tenha sido um dos motivadores dos movimentos de contestação à ordem neoliberal e à globalização capitalista que emergiram a partir da segunda metade dos anos 90. E, frente à homogeneização cada vez maior da política institucional, não é de espantar que o anarquismo, como ocorrera nos anos 60, tenha sido uma das ideologias a compor um heterogêneo caldeirão de protestos contra a ordem vigente. Em comum, esses coletivos contra-hegemônicos traziam demandas que o anarquismo clássico já enunciara no passado: ação direta, autonomia e democracia direta.

Nesse contexto, o Libera se posicionou ao lado dessas lutas globais contra o neoliberalismo. Em nível local, também se voltou contra o desmonte do Estado, a despeito do histórico antiestatismo da ideologia ácrata. Não por considerar o gerenciamento estatal como modelo a seguir, mas justamente para defender a manutenção de direitos dos trabalhadores e serviços públicos básicos. Nesse aspecto, o

governo FHC fora atacado pelo periódico, num movimento que incluía desmistificar o que a vigente “pedagogia da hegemonia” apresentava como positivo, omitindo as principais contradições de suas práticas e discursos.

Seguindo essa linha, a edição 51 do informativo analisava o primeiro aniversário do Plano Real, “menina dos olhos” de FHC. Na capa, o editorial “O Real apaga sua primeira velinha...” destilava ironia ao chamá-lo de “panacéia macroeconômica” – embora também reconhecesse que “logrou êxito ao comemorar o 12° mês com índices inflacionários modestos” (LAM, n.51, ago.1995, p.1).

A história do Plano Real tem suas raízes no mandato do presidente Itamar Franco (1992-1994), o vice que ocupou o cargo depois do impeachment de Collor. Em maio de 1993, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso foi chamado para assumir o Ministério da Fazenda. Sob seu comando, o Plano Real foi lançado em 1° de julho de 1994, com o objetivo de enfrentar a alta inflação. Para termos uma ideia, no governo Itamar o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) subia, em média, 24,3% por mês. (SINGER. In: REIS FILHO, 2014, p.221).

Como parte de sua estratégia, o Plano adotou como unidade monetária um indexador da inflação, que “manteria os preços mutuamente alinhados por inércia”. (Ibid. p.221). Uma nova moeda foi criada no final de 93 – a Unidade Real de Valor (URV) – pela qual salários e preços passaram a ser reajustados. Obviamente que o receituário neoliberal, sacramentado pelo Consenso de Washington e recomendado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), também comparecia como um dos preceitos a serem seguidos. Nesse sentido, pregava-se a redução dos gastos públicos e do papel do Estado.

[…] o plano previa eliminar o déficit do orçamento do governo federal, porque o gasto público maior que a receita fiscal criaria uma demanda adicional […]. Para tanto, o governo enviou ao Congresso um projeto de lei para a criação do Fundo Social de Emergência, que autorizava o governo a reduzir os gastos determinados pela Constituição. (Ibid. p. 221-223).

O efeito sobre os preços foi imediato. Antes da estreia do Plano, a inflação de junho foi de 49,10%. No mês seguinte, quando foi lançado, ela foi reduzida para 32,45%; em agosto, uma queda ainda mais acentuada para 2,60%; e, em dezembro de 1994, caiu para 1,11%. (Ibid. p.223).

Com ou sem estabilização inflacionária, o Libera não poupou críticas ao Plano que, segundo o jornal, tinha “caráter eleitoreiro”, garantindo uma “eleição tranquila para FHC”. Pondo em prática um tipo de jornalismo interpretativo,178

o periódico expunha fatos que, na maioria das vezes, não eram veiculados pela grande mídia. Para os anarquistas do CEL, ela omitia que a estratégia econômica era um “pacto do governo com os capitalistas”, através de uma “majoração absurda dos preços antes da implantação do Plano, em troca de uma segurada nos aumentos nos meses seguintes” (LAM, n.51, ago.1995, p.1).

Para o informativo libertário, era preciso apresentar, sem máscaras, as desvantagens macroeconômicas do Real, como déficits na balança comercial e queda de reservas cambiais. Nesse aspecto, o jornal procurava ser didático, mostrando ao leitor que, para reverter o quadro, o governo elevara taxas de juros para atrair “o capital (especulativo) externo”. “Em contrapartida”, explicava o Libera, “aumenta seu endividamento, o que pode acarretar desequilíbrios contábeis e alimentar a inflação”. (Id. p.1).

178 Segundo Alberto Dines, o jornalismo interpretativo apresentaria “a dimensão comparada, a remissão ao passado, a interligação com outros fatos, a incorporação do fato a uma tendência e a sua projeção para o futuro” (Apud RABAÇA, BARBOSA, 1978, p.267).

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