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3. PARADIGMA PÓS-MODERNO: NEOLIBERALISMO, GLOBALIZAÇÃO E

3.2 A GLOBALIZAÇÃO E A EXPANSÃO MUNDIAL DO SISTEMA

3.2.2 GLOBALIZAÇÃO E A QUESTÃO DA AUTONOMIA DO DIREITO

No capítulo anterior, mostrou-se que a globalização e sua lex mercatória agem no enfraquecimento do binômio estado-direito, sobretudo no campo da política, mas e no campo jurídico? Quais fatores facilitam e possibilitam essa influência? Não que isso ocorra de forma igual em todo o mundo, mas nos próximos parágrafos serão expostas algumas ideias mostrando como isso ocorre, ou pelo menos é facilitado, tendo como o exemplo o caso brasileiro. Antes de adentrar em tais problemáticas, faz- se necessário um adendo.

Importante ressaltar que concernente à expressão “autonomia do Direito”, aqui utilizada, não se estar referindo à autonomia epistemológica do Direito, ou seja, do

77 GROSSI, Paolo. Globalização, Direito, ciência Jurídica. Revista Espaço Jurídico Journal

of Law. Chapecoense. ISSN: 2179-7943. n.º 1. 2009. p. 159.

78 NETO, Alfredo; FISCHER, Ricardo. Estado de Direito Garantista, Neoliberalismo e

Globalização: Os Direitos Fundamentais como limites e vínculos aos poderes econômicos desregulados. Revista Direitos Fundamentais & Democracia. ISSN: 1982-0496. n.º 18. 2015. p. 9.

“purismo kelseniano”. Na própria abordagem da presente pesquisa, inclusive, o Direito é estudado, enquanto um fenômeno humano no espaço e no tempo e que, por isso, possui manifestações históricas, sociológicas, políticas etc (que podem perfeitamente serem objetos de estudos científicos, como aqui o são). O sentido, então, de “autonomia do direito” aqui utilizado, diz respeito à sua aplicação.

A interpretação e aplicação do Direito sempre foi um calo para o positivismo jurídico. Kelsen, por exemplo, no famoso capítulo 8, do seu clássico teoria pura do direito, afirma que não há possibilidade de estudo científico a respeito da interpretação e aplicação do Direito, uma vez que destes resultam muito mais de um ato de vontade do que de conhecimento79 - ou seja, seriam questões de filosofia prática e que, por isso, não poderiam ser abordados no âmbito do conhecimento puro. Para o referido jurista, a partir da forte influência do Círculo de Viena, notadamente do lógico Wittgenstein (na denominada primeira fase de sua obra) “o que não se pode falar, deve-se calar”, ou seja, “o que a ciência jurídica não pode descrever, deve omitir”80. Tal característica do normativismo kelseniano abre espaço para arbitrariedade, pois na medida que não há nenhum parâmetro, nenhuma teorização acerca da aplicação do Direito, qualquer fundamento pode ser considerado jurídico.

A partir da experiência histórica das guerras mundiais, diversos autores, bastantes diferentes entre si, que passam a ser denominados de pós-positivistas, a exemplo de Robert Alexy, Ronald Dworkin, Karl Larenz etc os quais, apesar dos traços distintivos em suas abordagens, possuem em comum a preocupação com a indeterminação do Direito e com o problema prático da decisão judicial. Assim, como bem sintetiza ABBOUD, CARNIO e OLIVEIRA:

[...] nos quadros do chamado pós-positivismo, o conceito de direito é determinado a partir do inexorável elemento hermenêutico que acompanha a experiência jurídica. O que unifica as diversas posturas que podem ser chamadas de pós-positivistas é que o direito é analisado na perspectiva da sua interpretação ou da sua concretização. 81

79 KELSEN, Hans. TEORIA PURA DO DIREITO. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

passim.

80 FERRAZ JUNIOR, Tercio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação.

6. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 229

81 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique; OLIVEIRA, Rafael. Introdução à Teoria e à

A partir das atrocidades cometidas na primeira metade do século XX, uma metodologia jurídica que fosse indiferente a tudo isso, concebendo um Direito outro que não fosse um instrumento impeditivo da desumanidade e que permitisse, ainda que pela indiferença, que eventos semelhantes ocorressem novamente, passou a ser inaceitável. Daí, então, a mudança de perspectiva científica. Essa mudança de paradigma do positivismo normativista para o pós-positivismo, no âmbito da teoria do Direito, é também uma mudança de prioridades dos que pensam o Direito: “abre-se mão de uma determinada certeza epistemológica para uma maior certeza política”82. Falar em autonomia do direito contemporaneamente, portanto, não é referir-se a uma autonomia epistemológica (paradigma do purismo normativista) e sim de uma autonomia no que diz respeito à sua aplicação. Nesta globalização jurídica acelerada, debruçar-se sobre o que venha ser a autonomia do Direito equivale a procurar soluções para a solidificação de sistemas jurídicos capazes suficientemente de proteção dos direitos fundamentais e das garantias democráticas. Nessa conjuntura, a Lex Mercatoria destaca-se como uma das mais danosas manifestações da globalização, desvirtuando as tradicionais estruturas de direito público. 83

Autonomia do Direito não é dos assuntos mais é fáceis e simples, tampouco resolvido no Brasil. Pelo contrário. Muitos, inclusive, denunciam que a tão propagada

crise do Direito é justamente a maneira como essa falta de autonomia do sistema

jurídico manifesta-se em solo nacional. A Constituição de 1988 inaugurou toda uma ordem jurídica que dista bastante da tradição jurídica brasileira anterior, conforme explica STRECK:

Em 1988, o Brasil recebeu uma nova Constituição, rica em direitos fundamentais, com a agregação de um vasto catálogo de direitos sociais. A pergunta que se colocava era: De que modo podemos olhar o novo com os olhos do novo? Afinal, nossa tradição Jurídica estava assentada em um modelo liberal-individualista (que opera com os Conceitos oriundos das experiências da formação do direito privado germânico e francês), em que não havia lugar para direitos de segunda e terceira dimensões. [...] essas

82 Expressão utilizada pelo professor da Universidade Federal da Bahia, Wálber Araújo

Carneiro, na aula do componente curricular Lógica e Argumentação Jurídica, no segundo semestre do ano de 2017.

83 BORGES, Bruna [et al]. Apontamentos Sobre a Relação entre Autonomia do Direito e

Lex Mercaoria. in: Luis Rosenfield. Transnacionalismo, Globalização e Direitos Humanos.

carências jogaram os juristas brasileiros nos braços das teorias alienígenas. Consequentemente, as recepções dessas teorias foram realizadas, no mais das vezes, de modo acrítico, sendo a aposta no protagonismo dos juízes o ponto comum da maior parte das teorias. 84

Um dos exemplos citados pelo referido autor, referente às teorias alienígenas recepcionadas de forma acrítica no Brasil, é a teoria da argumentação de Alexy e sua principiologia. O exagero e uso acrítico foi tanto que é como se não houvesse mais a obrigação de observância das leis (lato sensu). Tornou-se algo normal a invocação de um ou mais princípios para afastar regras, ainda que não se trate de uma antinomia, lacuna, tampouco omissão legislativa. Tal situação é bastante delicada na medida que é totalmente contrária ao pacto democrático: - magistrados não são eleitos.

O judiciário brasileiro é marcado, portanto, salvo exceções, de toda uma sorte de solipsismos, voluntarismos e arbitrariedades. Não raro, juízes mudam seus critérios metodológicos conforme a direção dos ventos e para cada posicionamento invocam alguma teoria, muita das vezes, conforme aludido, importadas e sem nenhuma reflexão: - somente para fundamentar o que se quer decidir. Problemática, inclusive, exposta pelo professor Wálber Carneiro:

[...] se utilizam dos estudos filosóficos de modo alegórico, com o intuito único de levar a cabo as pretensões estratégicas dos atores sociais em conflito. Esse desencontro faz com que qualquer coisa possa ser sustentada no direito, [...] retirando-lhe sua função regulatória, decisiva em sociedades complexas.85

Esse estado de coisas, quase que autofágica, do mundo jurídico atual, todo esse ativismo e protagonismo exacerbada do judiciário, invadindo a seara dos outros poderes é algo que não se resume somente ao Brasil, é mundial86, muito embora receba aqui contornos especiais. Mas seria ele um facilitador da pulverização que a globalização opera no estado de direito e suas instituições ou uma consequência dela? Segundo Vieira, “o fortalecimento da autoridade dos tribunais tem sido uma

84 STRECK, Lenio. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias discursivas.

4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 47

85 CARNEIRO, Wálber. Hermenêutica Jurídica Heteroreflexiva: Uma teoria Dialógica do

Direito. Rio Grande do Sul: Livraria do Advogado, 2010. p. 11.

86 VIEIRA, Oscar. Supremocracia. Revista Direito GV. São Paulo. ISSN: 2317-6172. n.º 8.

consequência imediata da expansão do sistema de mercado, em plano global”87, e segue e referido autor: “Aos olhos dos investidores, os tribunais constituiriam um meio mais confiável para garantir a segurança jurídica, estabilidade e previsibilidade do que legisladores democráticos, premidos por demandas “populistas” e necessariamente pouco eficientes, de uma perspectiva econômica [...].88

A grande problemática de usurpação da autonomia jurídica contemporânea que a Lex Mercatoria opera, segundo Ferrajoli89, então, seria solucionada a partir de um esforço no sentido da fortificação das garantias constitucionais dos próprios Estados nacionais, algo que seria focado no curto prazo, e a partir da elaboração de uma grande ordem constitucional de amplitude global, a posteriori. Tal constitucionalismo de amplitude planetária seria uma resposta estratégica à globalização econômica.

A globalização impõe limites na atuação do estado, tanto em relação aos fluxos do capital, aos tratados internacionais, bem como à ausência de instituições democráticas, de âmbito global para solução dos conflitos oriundos desse processo, posto que a globalização da economia fora mais rápida que a globalização jurídica e política, o que reflete um sistema “de governança global sem governo global”.90

O atual contexto do constitucionalismo perfaz-se, então, numa situação de forte crise. A constante tensão existente entre política e mercado perante o campo jurídico está efetuando profundos danos na sistemática de proteção dos direitos fundamentais. Tais danos impactam no enfraquecimento numa das principais conquistas da democracia constitucional que é o caráter vinculante da constituição, que, entre diversos outros ditames, estabelece limites nos campos de atuação da política e mercado.

O crescimento da economia mundializada exige “uma nova ordem jurídica internacional com relação aos direitos humanos e uma nova ordem jurídica constitucional com relação aos direitos fundamentais. ”91 Os direitos fundamentais e

87 VIEIRA, loc. cit.

88 VIEIRA, loc. cit.

89 FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no mundo moderno. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,

2002. passim.

90 NETO, Alfredo; FISCHER, Ricardo. Estado De Direito Garantista, Neoliberalismo e

Globalização: Os Direitos Fundamentais Como Limites e Vínculos aos Poderes Econômicos Desregulados. Revista Direitos Fundamentais & Democracia. Curitiba. ISSN: 1982-0496. n.º 18. 2015. p. 262.

91 SCHAEFER, Fernanda. Direito Humanos e Globalização Econômica: Compatibilidade de

Princípios?. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba. ISSN: 2177- 8256. n.º 1. 2009. p. 89.

os direitos humanos são cruciais à configuração do Estado Democrático de Direito e tendo qualquer violação a esses ditames terá que ser tida como uma afronta a própria à democracia.

A reiterada positivação das liberdades nas constituições mostra-se, portanto, insuficiente, em si, para se ter a garantida de sua efetividade. Tal situação denota que mesmo os Direitos Humanos sendo historicamente concebidas como um instrumento de defesa dos cidadãos perante o arbítrio estatal, eles podem ser enfraquecidos, posto que é este próprio Estado Nacional que os regulamenta.

3.3 CRISE DO ESTADO NACIONAL MODERNO

Pensando em termos de política, uma das maiores marcas da contemporaneidade é a chamada crise do estado nacional. Esse fenômeno é crucial para a presente pesquisa uma vez que se estar a falar de efetividade dos Direitos Fundamentais e estes vinculam-se intimamente com o ente estatal.

Segundo BALBÉ, “O Estado Moderno, enquanto entidade racionalmente construída para conjugar e organizar os fatores sociais, tem sido reconhecido como dotado de soberania”92 e continua “com a legitimidade e autoridade para fazer impor, dentro de seu território ou, em alguns casos, fora deste, sob seus cidadãos (indivíduos que possuam com ele vínculo jurídico-político) o ordenamento jurídico nacional.”93 No Estado Moderno existe um só único Direito: o Direito positivo editado pelo próprio estado. Essa forma de ser e pensar o Estado e o Direito, típica do século XIX, vem sofrendo mudanças, sobretudo, a partir da Segunda Guerra Mundial.

A expressão “crise do Estado” designa, em suma, um processo gradual de extinção da soberania estatal, e, consequentemente, também, o status do estado de provedor de Direitos Humanos e fundamentais, sua incapacidade de afirmar-se como protagonista e centro único de poder. Porém, inegavelmente seu modelo organizacional e estruturas, continuam sendo cruciais para a regulação social e prestação de serviços à população. Grossi descreve muito bem tal estado de coisas: “O legislador estatal é lento, distraído, vulgarmente dócil aos desejos dos partidos

92 BORGES, Bruna [et al]. Estado e(m) Crise: Como Garantir Direitos?. in: Paulo Valdemar

da Silva Babé. Transnacionalismo, Globalização e Direitos Humanos. Santa Catarina: 2015. p. 133.

políticos; a justiça estatal não está em condições de corresponder às exigências de rapidez e de concretude da práxis econômica. ”94 E continua: “Ademais, o Estado e a justiça estatal se colocam, ainda, em uma ótica territorial que é asfixiante para a construção capitalista, já global. ”.95

De antemão, faz-se importante mencionar que quando for utilizado, aqui, a expressão “crise do Estado” equivalerá ao reconhecimento de suas limitações atuais, a situação precária ou a própria superação de suas configurações originais para enfrentar os desafios de hoje. No entanto, não há, no curto prazo, probabilidades reais de que este modelo de Estado, ainda que em crise, seja extinto.

O mundo atual é cada vez mais complexo e com esta crise não é diferente. Suas causas, bem como manifestações, portanto, não são unívocas, são múltiplas. No que diz respeito às manifestações, STRECK96 as separa em três grupos principais. O primeiro deles diz respeito à crise que atinge as características conceituais básicas do Estado Nacional: povo, território, e, em particular, sobretudo, a ideia de soberania. A segunda não seria a ideia própria de Estado, mas uma de suas configurações: o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State). A terceira, por sua vez, relaciona-se com a forma moderna de racionalização do poder: o Estado Constitucional. O autor aponta ainda para uma quarta manifestação da crise que atingiria a tradição da separação funcional do poder estatal.

Acerca da primeira manifestação, quando discorre sobre soberania, STRECK afirma que “caracteriza-se, historicamente, como um poder que é juridicamente incontrastável, pelo qual se tem a capacidade de definir e decidir acerca do conteúdo e aplicação das normas de um determinado espaço geográfico” e continua, o referido autor, “bem como fazer frente a eventuais injunções externas. Ela é, assim, tradicionalmente tida como una, indivisível, inalienável e imprescritível”. Quando se diz, portanto, acerca de uma crise de soberania, fala-se que o estado, enquanto centro exclusivo de fonte de poder, encontra atualmente diversos concorrentes, nesse âmbito.

94 GROSSI, Paolo. Globalização, Direito, ciência Jurídica. Revista Espaço Jurídico Journal

of Law. Chapecoense. ISSN: 2179-7943. n.º 1. 2009. p. 168.

95 GROSSI, loc. cit.

96 STRECK, Lenio e MORAIS, Jose. Ciência política & Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre:

Os denominados Entes Supranacionais – UNIÃO EUROPEIA, NAFTA, MERCOSUL etc. ditaram uma nova ordem nas relações internacionais e, por consequência, alcançaram com certo sucesso a pretensão de uma soberania sem qualquer limitação ou vínculo à um estado nacional específico. Isso significa uma profunda mudança nos poderes dos Estados-Nacionais membros, sobretudo concernente à aplicação de regras jurídicas de direito internacional, as quais estão sujeitas à serem apreciadas pelas Cortes de Justiça Internacional, acordos comerciais, emissão de mesma moeda, alianças militares etc.97

Desenvolver uma sistemática de defesa dos direitos humanos num mundo globalizado evidenciado pela preponderância da Lex Mercatoria seria o melhor a se fazer? Tal questão vem da incessante imprescindibilidade de se preservar a coisa pública, bem como a democracia, os direitos fundamentais e a soberania do povo, posto que a seara pública gradativamente passa a não ter mais o monopólio perante os Estados nacionais. Conforme referido anteriormente, o que se tem hoje inegavelmente é uma paulatina erosão das soberanias dos estados. Essa penumbra, sobre a esfera pública, que nesta situação, se situa, em grande parte, além do Estado nacional, joga muitas dúvidas, muita imprevisibilidade em como passará a ser geridas os avanços da civilização perante o avanço do poderio dos entes supranacionais e entidades transnacionais.

Quando se fala em descentralização no que diz respeito ao poder do Estado Nacional, imprescindível mencionar um ator importantíssimo nesse cenário: as denominadas empresas transnacionais. Elas não têm vínculo com nenhum Estado, em especial. Por terem altíssimo poder financeiro, suas decisões podem afetar drasticamente a situação de diversos países, especialmente no tocante aqueles estados nacionais mais vulneráveis economicamente, ou, utilizando-se de terminologia, bastante presente nesta pesquisa, países periféricos. Não raro, o valor de mercado destas transnacionais ultrapassam o PIB de alguns países.

As empresas transnacionais possuem, atualmente, importante papel na sistemática da ordem internacional e, justamente por não se vincularem a territórios físicos específicos, podem dispor de uma série de atuações e medidas que, diferentemente dos estados nacionais e seu localismo, são limitados através da

97 Cf. exemplo de conflito jurídico resolvido em Corte Internacional, ver subseção 1, do capítulo

soberania estatal alheia. STRECK98 afirma que “o sério crescimento do poder econômico, a ponto de escapar ao controle dos governos nacionais e até de órgãos multinacionais, como a União Europeia, esvazia de poder as autoridades eleitas, deixando-as mesmo sem comporem um Poder de Estado”. É como se não houvesse mais a quem recorrer, a quem se queixar e completa: “o poder efetivo está tão confiscado por esses circuitos mais ou menos anônimos, quase inidentificáveis de poder financeiro, que a autonomia do Estado praticamente se desfez”.99

Outra peça importantíssima nesse cenário de completa transformação do conceito de soberania são as Organizações Não Governamentais (ONGs). Estas instituições, que estão ali num espaço intermediário transitando entre o público – cujo principal representante são os entes Supranacionais e o privado – que é representado pelas transnacionais, agem em diversos setores, como: relações de trabalho (Organização Internacional do Trabalho), desenvolvimento econômico (Organização para cooperação e o Desenvolvimento Econômico), saúde (Médicos Sem Fronteiras) etc.

As funções das ONGs vêm modificando-se e intensificando-se, com o passar do tempo, não raro, “sendo imprescindíveis para que certos Estados tenham acesso a programas internacionais de ajuda, possam ser admitidos em determinados acontecimentos da ordem internacional etc.”100 Estes vínculos, apesar de irem de encontro com a noção de poder soberano, perfazem-se na realidade da contemporaneidade. Os relatórios destas instituições podem denotar reconhecimento ou ojeriza a nível internacional, com inevitáveis impactos na ordem interna desses países, principalmente, conforme dito alhures, naqueles situados na periferia mundial e demasiadamente dependentes da “ajuda” internacional.

Por essa razão, Luigi Ferrajoli afirma que esta crise da soberania do estado provem, sobretudo, do deslocamento de suas tradicionais funções para entidades supranacionais que terminam, de uma forma ou de outra, por vincular o Estado Nacional, que por outro viés, “é grande demais para a maioria de suas atuais funções administrativas”101, demandando formas novas de organizar-se que fujam da

98 STRECK, Lenio e MORAIS, Jose. Ciência política & Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre:

Livraria do advogado, 2014. p.110.

99 STRECK, loc. cit. 100 Ibid., p. 111.

101 FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no mundo moderno. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,

tradicional centralização destas funções, assim como “é pequeno demais com respeito às funções de governo e de tutela” perante às conformações contemporâneas, provenientes da globalização econômica.

Essas modificações de paradigma na configuração Estatal e a gradual mudança da sistemática internacional desembocam, claramente, numa relativização da ideia clássica de soberania, posto que os entes estatais perdem a centralidade e a exclusividade que outrora lhes eram próprias. A redefinição da ideia de soberania estatal significa o enfraquecimento de sua própria autoridade, o esgotamento do equilíbrio entre os poderes e a perda de sua independência. Tal situação é oriunda, sobretudo, da submissão estatal perante os entes econômicos, os quais almejam: abertura comercial, desregulamentação do mercado, a adesão de políticas de desestatização, a 'flexibilização' das leis trabalhistas etc.

Essa problemática ganha maior relevo perante a falência dos entes internacionais, que não foram exitosos na imposição das regras jurídicas durante os últimos anos, permitindo o predomínio do que Rosenfield chama de anarquia, no direito internacional público e continua, o referido autor:

Anarquia [...] onde as violações aos direitos humanos mais básicos e elementares fazem parte do quotidiano global [...]. Diante dessa grave e prolongada crise, as relações conflituosas entre Direito e economia se agravam de modo acelerado,

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