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A Gnosiologia de António Sérgio: Razão e Idealismo

2.1 – O anti-empirismo sergista

Quando exclama que “um filósofo (ao que me parece) não é um sujeito sabedor num certo número de matérias a que se dá o nome de «filosofia»: é um homem com capacidade de elucidar ideias – em qualquer domínio; mais particularmente: creio que filosofar é lançar certa luz nos domínios das ideias fundamentais”359, António Sérgio poderia estar também a falar sobre si próprio. Afinal, como escreve Vasco de Magalhães-Vilhena360, na sua obra António Sérgio – O Idealismo Crítico e a Crise da Ideologia Burguesa, “António Sérgio ocupa na história das ideias filosóficas em Portugal uma posição singular. Única. (...) Pode aceitar-se ou recusar-se, em bloco, ou com destrinças, a doutrina filosófico-sociológica de Sérgio. Impossível, porém, em Portugal, ignorá-la. (...) A sua doutrina é, em primeiro de tudo, um racionalismo. (...) O rasgo da mentalidade racionalista é o reconhecimento da necessidade das fundamentações racionais, é o tentame de buscar a harmonia e a organização inteligível.

O que lhe é próprio é o critério da inteligibilidade das relações, a afirmação de que o critério supremo de todo o valor é a razão, valor incondicional § O que o caracteriza, pois, não é um ideário, mas sim um método”361. Uma atitude, dirá até. Contudo, para além da metodologia e da postura filosófica, o ensaísta apresenta igualmente, no nosso ponto de vista, um idealismo epistemológico ou uma gnosiologia, ainda que de cariz racionalista, que não podem ser substimados em detrimento da sua eficaz e arguta disciplina. Sérgio também tem um ideário. Por mais que se inscreva, tal como anunciámos no primeiro capítulo, num neokantismo crítico ou num idealismo de feição platónica, cartesiana e espinosista.

359 SÉRGIO, António, Migalhas de Filosofia: Em palestra amena com realistas comuns, com bergsonistas e com empiristas lógicos, p. 187.

360 Vasco de Magalhães-Vilhena (1916-1993) foi um filósofo que estudou nas universidades de Lisboa, Coimbra e Sorbonne. Da vasta obra que deixou publicada, destacamos Aspectos do Pensamento Grego - A Luta pela Inteligibilidade (1935), A Arte e a Vida Social (1936), Unidade da Ciência - Introdução a um Problema (1941), Pequeno Manual de Filosofia (1942) e António Sérgio e a Filosofia (1960).

361 VILHENA, Vasco Magalhães. António Sérgio – O Idealismo Crítico e a Crise da Ideologia Burguesa.

Lisboa: Seara Nova, 1964, pp. 3-4.

Quando os críticos, num sentido geral, se reportam à sua pedagogia, à sua ideologia política ou até à sua hermenêutica histórica, assumem, incontestavelmente, a existência de um ideário consistente, questionador, fértil e complexo, que não é de imediato reconhecido quando se referem à sua filosofia e, especificamente, à sua teoria do conhecimento. Para estes, nesse caso específico, Sérgio é apenas um instigador e um mestre orientador, não possuindo uma gnosiologia relevante e original. O que faremos nós, no entanto, com as categorias e com os conceitos de natureza epistemológico- gnosiológica que o ensaísta apresenta sistematizados em toda a sua obra? Fechamo-los numa gaveta tão simplesmente porque estão em sintonia com determinadas correntes filosóficas da primeira metade do século XX e porque, em si só, não se manifestam de forma magnânima? Ocultaremos propositadamente a sua teoria do conhecimento tão-só porque a sua filosofia da educação e a sua historiografia são mais expressivas e mais célebres? Parece-nos que ao ignorarmos ou descurarmos um segmento do corpus literário-filosófico de um autor, impedimos não só que a hermenêutica da sua obra se revele como um todo, bem como podamos um ou outro sentido fundamental do seu ideário, impossibilitando até a sua contribuição para a comunidade científica. No fundo, o não reconhecimento da gnosiologia sergiana significa, para muitos intérpretes, a comprovação da sua inexistência ou a insipiência da sua cientificidade. Contudo, ela existe e, no nosso ponto de vista, é até muito característica e peculiar. Só ainda não foi devidamente estudada e evidenciada362.

Uma das portas de entrada para o estudo da gnosiologia e da epistemologia de António Sérgio poderá ser aquela que constata, desde logo, o seu anti-empirismo. Isto é, aquela que denuncia que o seu anti-empirismo sensista se manteve desde os seus primeiros escritos de juventude até aos seus últimos textos. Ainda que, nem sempre, determinadas categorias gnosiológicas tenham permanecido conceitualmente semelhantes. Ao assumir-se um anti-empirista convicto, António Sérgio opõe-se, naturalmente, aos pensamentos de John Locke e de George Berkeley, embora se debruce muito mais sobre o do filósofo irlandês. No seu entender, o empirismo “é a tese de psicologia-do-intelecto que adescreve ao entendimento a iniciativa mínima; e eu,

362 Neste ponto, concordamos inteiramente com TEIXEIRA, António Braz. António Sérgio, Filósofo. In:

AAVV, António Sérgio: Pensamento e Acção, Vol. I, p. 15: “Um dos mais perturbantes paradoxos da nossa cultura contemporânea é, decerto, a enorme desproporção que nela se regista entre o elevado prestígio intelectual de que gozou e goza ainda António Sérgio como pensador e escritor de ideias e a escassa atenção que suscitou e continua a suscitar a interpretação do seu pensamento filosófico”.

pelo contrário, atribuo ao entendimento a iniciativa máxima, o máximo de espontaneidade na criação do saber”363.

Apesar de António Sérgio se referir criticamente ao pensamento daquele que é considerado o principal representante do empirismo inglês, o que é certo é que o nosso ensaísta reflecte mais amplamente a ideologia berkeleiana. E se, a priori, tal procedimento poderá parecer estranho, numa segunda análise constatamos que o método que Locke utiliza para discutir a questão gnosiológica na sua obra, sobretudo no Ensaio Sobre o Entendimento Humano364, não é o mais estimulante para Sérgio. Parece-nos que, à partida, não interessa grandemente ao seareiro o modo como a matéria é apresentada aos leitores e intérpretes do filosófo britânico, ainda que a inflexão dessa dita matéria, em si mesma, o pudesse motivar. Julgamos que o problema é o seguinte:

Locke dedica uma parte considerável do seu Ensaio Sobre o Entendimento Humano à discussão dos princípios e das ideias inatas (essencialmente nos três capítulos do Livro I) e, na perspectiva sergiana, o cerne da problemática gnosiológica, provavelmente até da doutrina empírica, não reside nesse ponto. Não obstante se considere um platónico e um cartesiano ideal, o que é certo é que a teoria das ideias inatas explanada por estes seus filósofos de eleição é reflectida e exposta por si de modo diverso. Ou seja, na sua obra, António Sérgio não se preocupa em apresentar conceitual e sistemicamente uma doutrina que explore tais princípios a priori, embora manifeste que é um apologista das formas; que, para si, a ideia platónica de Bem é um postulado moral; que o Deus cartesiano, o qual segue e procura, é tão-só o Deus metodológico e racional; e que a sua ideia de uno (-unificante) só pode ser entendida inata e universalmente. Ainda assim, esclarece: “Ao contrário do que pensa o Professor Saraiva365, os filósofos que admitiram as «ideias inatas» (a que mais tarde se chamou «princípios a priori») não duvidaram da existência do «mundo exterior», nem sonharam com uma ciência sem recurso à experiência”366. No ponto de vista do ideólogo dos Ensaios, todos os homens nascem com a faculdade e com a pré-disposição para o universal, para a unidade e para a unificação, na medida em que são racionalmente aptos. Não é, pois, a experiência em estrito senso que lhes confere esse sentido. Na revista Ver e Crer, em Maio de 1946, António Sérgio resume claramente essa visão: “Tal convencimento de que as coisas

363 SÉRGIO, António, Prefácio a Três Diálogos entre Hilas e Filonous, de Jorge Berkeley, p. 231.

364 LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. 3.ª ed. 2 vols. Trad. Eduardo Abranches do Soveral, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

365 António Sérgio está a referir-se ao professor António José Saraiva.

366 SÉRGIO, António, Notas de Esclarecimento II – Com forçados lances de olhos sobre o “moi haïssable” e alegações enjoativas “pro domo mea”, p. 223.

reais se revelam imediatamente pela vista ou tacto, imprimindo-se pois no pensar do indivíduo como se imprime o sinete sobre o lacre quente, – é tão arraigada, é tão

«natural», tão viva e espontânea na convicção do vulgo, que não poucos leitores me têm escrito cartas, em atitude irónica de superioridade, sorrindo dos passos dos meus escritos onde leram que os objectos do pensamento são sempre inventados pelo intelecto humano, que estão sempre no pensamento como ideias (não como imagens, não como sentires, não como algo que é dado), não vindo estampar-se na sensibilidade do eu por um simples processo de recepção sensível”367. Neste mesmo artigo, o ensaísta chegará até a proferir que “o único Mundo de existência real é o conjunto ordenado dos objectos reais, isto é, o inteligível sistema dos inteligíveis. Existe um só Mundo, que é o Mundo inteligível, – a realidade entendível que provoca em nós um acervo incoerente de impressões sensíveis. Mas estes vários sensíveis não constituem um Mundo, porque não têm ligação nem unidade alguma. Para Platão, por conseguinte, há um único Mundo, que é o Mundo inteligível. Só esse é real; e o acervo incoerente das impressões sensíveis é o conjunto dos sinais que nos ele envia. É naquele Mundo inteligível que a inteligência crê, sabendo muito bem que se não pode ver”368.

Pelo contrário, John Locke está convencido de que as fontes do conhecimento se sustentam em dois ramos fundamentais, a saber: a experiência sensível e a reflexão. São elas, aliás, que facultam à mente os materiais para o conhecimento. Estes materiais, também chamados de ideias369, podem ser entendidos como ideias de sensação (porque são oriundas do exterior) e como ideias de reflexão (porque provêm do interior do indivíduo)370. Contudo, e apesar do filósofo inglês ter a intenção de estudar o limite e a extensão do entendimento humano, o seu principal objectivo é criticar arduamente a teoria das ideias inatas – na sua concepção, esta não passa de uma doutrina de preconceito que conduz ao dogmatismo e ao individualismo – e comprovar que todo o conhecimento deriva da experiência. Poder-se-á até afirmar que, a partir do momento em que Locke intenta desvelar os elementos que constituem todo o processo cognitivo

367 Idem. A realidade é o que se vê ou é o que se supõe? Ver e Crer. Cada assunto vale um livro. Lisboa, n.º 13, Maio de 1946, p. 35.

368 Ibidem, p. 42.

369 Embora também discorde da acepção de “ideia” que Locke apresenta, Sérgio não ignora, no entanto, a importância que o conceito de “realidade” tem para o acto do conhecimento – Idem, Notas de Esclarecimento II – Com forçados lances de olhos sobre o “moi haïssable” e alegações enjoativas “pro domo mea”, p. 224: “As ideias são livres criações do espírito; e, apesar de o serem, descrevem a realidade do nosso mundo. Isto diz o Einstein, e é exactamente o que eu disse”.

370 Vf. LOCKE, John, Ensaio sobre o entendimento humano, Livro II, cap. VII.

(isto é, as suas origens, a sua formação, a sua dimensão e a sua aplicabilidade371), tem o fito de, em simultâneo, negar a existência dos princípios universais a priori na mente humana e de afirmar a inevitabilidade da teoria da tábua rasa. Todos os homens nascem, portanto, livres de quaisquer ideias inatas e prontos para formar o seu conhecimento a partir do zero, estimulados, ainda assim, pelas ideias sensoriais372 e pela atracção empírica. Não nos esqueçamos que, no último Livro do Ensaio Sobre o Entendimento Humano, mais especificamente no cap. XVII, para além de exultar o conceito de Razão373, Locke defende que o grau mais alto do conhecimento é o grau intuitivo – aquele que não conta com a presença do raciocínio e da faculdade discursiva374. Esta doutrina revela-se, naturalmente, por todos os motivos que já expusémos ao longo desta dissertação, insipiente e infantil aos olhos de Sérgio. É provável, também por este motivo, que o nosso autor não se detenha com demasiada profundidade sobre o pensamento empirista de Locke: “Temo-me e vexo-me, perante mim mesmo, de poder ser petulante perante um Locke; a veracidade, porém, compele-me a confessar que na doutrina dele (que foi o ponto de arranque da compele-meditação berkeleiana) propendo a julgar que o característico e básico, – o que confere ao filósofo a sua fisionomia própria, – é o mais fraco e o mais falso; e por isso a utilidade de um

«lockismo ideal» não é a de salientar o que há de bom no Locke (como num

«platonismo ideal», num «kantismo ideal», se eu não estou transviado) mas a de fazer sobressair a invalidez do sensismo, o que há de mau no lockismo”375. No que diz respeito a Berkeley, por outro lado, já não podemos afirmar semelhante coisa. O

371 Vf. Ibidem, Livro IV, caps. I-IV.

372 SÉRGIO, António, Prefácio a Três Diálogos entre Hilas e Filonous, de Jorge Berkeley, p. 244: “O emprego lockiano da palavra «ideia» significou um retrocesso dos mais lamentáveis em relação a uma luminosa distinção cartesiana – a de ideia e de imagem – num passo interessantíssimo das Meditações Metafísicas”.

373 Vf. LOCKE, John, Ensaio sobre o entendimento humano, Livro IV, cap. XVII. Logo no início deste capítulo, John Locke começa por se questionar quanto à necessidade da existência da razão num contexto de uma gnosiologia empirista, na qual o conhecimento se define enquanto acordo entre as ideias do sujeito e as coisas exteriores. Alega o autor, nesse sentido, que tal necessidade se revela enorme na medida em que é a razão que permite a ampliação do conhecimento, bem como a sua organização. Além disso, é ela que auxilia todas as outras faculdades intelectuais. No fundo, na perspectiva lockiana, a actividade racional tem uma função essencialmente encadiadora, relacionadora e intermediadora, ou, em outras duas palavras, organizativa e disciplinadora. Não tem, todavia, um papel inventivo, activo e criativo tal como propõe António Sérgio, na linha das filosofias idealistas.

374 Vf. Ibidem, Livro IV, cap. XVII. Mesmo no fim deste capítulo, o empirista inglês afirma que algumas das ideias que existem na mente humana são de tal ordem evidentes que não precisam da ajuda do raciocínio ou da faculdade discursiva. São conhecidas por um grau superior e mais alto de evidência – o intuitivo.

375 SÉRGIO, António, Prefácio a Três Diálogos entre Hilas e Filonous, de Jorge Berkeley, p. 242.

ensaísta demora-se consideravelmente na análise da filosofia berkeleiana do conhecimento. Entendamos porquê.

Em 1948, António Sérgio traduz a obra Três Diálogos entre Hilas e Filonous376 do irlandês George Berkeley trazida à estampa pela editora coimbrã Atlântida. Logo no início do prefácio377, o ensaísta português demarca-se radical e profundissimamente da filosofia empirista exposta naquele livro (“pois divirjo em absoluto da conclusão metafísica e da própria psicologia do intelecto humano que se encontra na origem destes Três Diálogos, – cujas análises, no entanto, (...) poderão ser utilíssimas para um aprendiz de filósofo, por desatá-lo das insuficiências do pensamento rudo e da vulgar escravidão a concepções simplórias”378), contudo, realça que o que mais importa, para além de aceitá-lo ou rejeitá-lo, é compreendê-lo inteiramente: “o que vale no Berkeley, como nos demais doutrinários, é o que há de esclarecedor e de excitador nas análises, o ensaísmo psicológico e epistemológico, e não já as suas teses de teor metafísico, a cúpula ontológica do seu sistema”379. O que importa, no fim de contas, é a sua atitude filosófica, a sua postura metodológica.

Se as discrepâncias que sentia relativamente ao sistema filosófico de Berkeley não impediram que Sérgio realizasse a tradução de Três Diálogos entre Hilas e Filonous, por sua vez, o prefácio que a acompanhou denunciava as suas críticas veementes e as suas divergências epistemológicas perante o pensar “idealista”380 (moderno) do homem do Tratado dos Princípios do Conhecimento Humano381. Se António Sérgio se insurge, em praticamente toda a sua obra, contra as filosofias empiristas em geral, esta tradução e este prefácio fazem com que o mesmo se debruce sobre um pensador e uma doutrina

376 BERKELEY, George. Três Diálogos entre Hilas e Filonous. Trad. de António Sérgio. Coimbra:

Atlântida, 1948. Nesta obra, Berkeley estabelece um confronto entre Hylas (defende que existem coisas materiais independentemente do espírito que as compreende) e Filonous (sustenta que as coisas materiais só existem a partir do momento em que há um espírito que as pensa e percebe). Para além da tradução de António Sérgio (reeditada em BERKELEY, George. Tratado do Conhecimento Humano (trad. e prefácio de Vieira de Almeida) / Três Diálogos (trad., prefácio e notas de António Sérgio). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000), consultámos ainda: BERKELEY, George. Three Dialogues between Hylas and Philonous. Chicago: The Open Court Publishing Company, 1909.

377 Apesar da tradução ter saído em 1948, o prefácio vem assinado com data de Dezembro de 1943.

378 SÉRGIO, António, Prefácio a Três Diálogos entre Hilas e Filonous, de Jorge Berkeley, p. 229.

379 Ibidem, p. 229.

380 Ibidem, p. 230: “Visto da posição em que encaro estas coisas, o epíteto de «idealista», dado ao pensar berkeleiano, resulta de um erro a respeito da «ideia» por parte da escola em que ele se filia: a do empirismo sensista. E qual erro, vamos? Em grosseira expressão, o de fazer do intelecto um «polipeiro de imagens»”.

381 BERKELEY, George. A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge. Edited by Jonathan Dancy. New York: Oxford University Press, 1998. Usámos também a tradução portuguesa: BERKELEY, George. Tratado do Conhecimento Humano (trad. e prefácio de Vieira de Almeida) / Três Diálogos (trad., prefácio e notas de António Sérgio). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.

empiristas em particular. É essencialmente por este motivo que Berkeley e o seu pensamento se destacam mais nas reflexões anti-empiristas do seareiro, todavia, tal não significa que não tivesse lido ou não conhecesse as obras de John Locke ou de David Hume, por exemplo.

Ao divergir da proposta filosófica de Berkeley – daquilo a que o nosso ensaísta chama de empirismo sensista –, está a denunciar os equívocos de cariz gnosiológico que pululam na obra berkeleiana, ou seja, refere-se ao erro de identificação entre ideia e sentir, entre ideia e vivência, entre ideia e imagem382. Ao fim e ao cabo, entre a relação inteligível como um todo e a figuração sensível. Mas mais do que isso, António Sérgio está a demarcar-se do imaginismo ou do realismo da imagem, do psico-fenomenismo e está, simultaneamente, a acentuar que acredita “na espontaneidade criadora da mente, que constrói na percepção e nas concepções científicas, embora admitindo a existência de um algo (de uma actividade, de um X, de um nómeno qualquer que não é coisa-em-si, mas o limite do trabalho relacionador do espírito), independente da psique de cada um de nós, que nos obriga a interpretar os sinais que nos manda”383. Em uma só palavra, está a colocar-se do lado dos amigos das Formas e a distanciar-se dos amigos das Imagens, tal como já havíamos notado no primeiro capítulo da tese. Esta apologia da ideia face à renúncia da imagem, ou melhor, este acerto de pensar os problemas do espírito como se eles não fossem da natureza da imagem, implica defender-se que a ideia é “uma relação inventada pelo nosso espírito e posteriormente abonada por um experienciar que a confirma”384 e que “a imagem é construída pelo dinamismo mental, a partir de uma acção que é inimaginável, – a partir de um algo que não é dado à mente, e

382 BERKELEY, George. A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge, On the Principles of Human Knowlwdge, part I, §1, p. 103: “It is evident to any one who takes a survey of the objects of human knowledge, that they are either ideas actually imprinted on the senses, or else such as are perceived by attending to the passions and operations of the mind, or lastly ideas formed by help of memory and imagination, either compounding, dividing, or barely representing those originally perceived in the aforesaid ways. By sight I have the ideas of light and colours with their several degrees and variations. By touch I perceive, for example, hard and soft, heat and cold, motion and resistance, and of all these more and less either as to quantity or degree. Smelling furnishes me with odours; the palate with tastes, and hearing conveys sounds to the mind in all their variety of tone and composition. And as several of these are observed to accompany each other, they come to be marked by one name, and so to be reputed as one thing. Thus, for example, a certain colour, taste, smell, figure and consistence having been observed to go together, are accounted one distinct thing, signified by the name apple. Other collections of ideas constitute a stone, a tree, a book, and the like sensible things; which, as they are pleasing or disagreeable, excite the passions of love, hatred, joy, grief, and so forth”.

383 SÉRGIO, António, Prefácio a Três Diálogos entre Hilas e Filonous, de Jorge Berkeley, p. 230.

384 Ibidem, p. 236.

que é a própria psique, a própria mente humana, no seu nível mais baixo de actividade”385.

A diferenciação entre ideia (forma) e imagem apresenta-se, no pensamento do homem dos Ensaios, a partir do seguinte postulado: “A verdade, digo, não se nos oferece: inventa-se”386. Cremos que, através dele, Sérgio clarifica essencialmente dois assuntos, ainda que estejam intrinsecamente relacionados: no primeiro identifica conhecimento e invenção (“Conhecer, por outra, é essencialmente inventar: não é ligar coisas anteriormente dadas; e o que chamamos descobrimentos são realmente invenções”387) e no segundo esclarece que a verdade ou o acto do conhecimento são aqueles que a experiência, no fim do processo cognitivo, confirmou e revalidou. Afinal, segundo lhe parece, não é a experiência, em si, que presenteia os homens com a verdade, é antes a criação mental que o faz. Poder-se-á dizer, em pouquíssimas palavras, que a experiência é um resultado da acção intelectual (“a experiência é uma só, e toda ela psíquica”388) e consiste, no fim de contas, em seleccionar as várias interpretações (provavelmente até fantasias389) que o intelecto lhe propõe ou lhe apresenta. Ora, tal só será possível se houver, segundo o pensamento sergiano, uma oposição ao fenomenismo da imagem e ao realismo da matéria (protagonizado sobretudo por Berkeley) e uma adesão ao idealismo formal e matemático de inspiração platónica. Numa curta expressão, trata-se de abandonar a “mentalidade imagética pela mentalidade platónica”390.

Quando António Sérgio afirma que a teoria do conhecimento de George Berkeley é imaginista e fenomenista391 (à qual nós acrescentamos o adjectivo de nominalista392), quererá, porventura, relembrar que dois dos principais objectivos do filósofo irlandês são erradicar a imagem substancialista e materialista que o universo tinha ganho com o

385 Ibidem, p. 231.

386 Ibidem, p. 255.

387 Idem, Um problema anteriano, p. 271.

388 Idem, Cartas de Problemática, Carta n.º 1, p. 314.

389 Idem, Prefácio a Três Diálogos entre Hilas e Filonous, de Jorge Berkeley, p. 255: “Nunca a experiência nos presenteia a verdade: selecciona entre as interpretações que lhe nós propomos, fantasiadas por nós”.

390 Ibidem, p. 237.

391 Poder-se-á dizer que o fenomenismo é a concepção segundo a qual os objectos físicos são entendidos unicamente a partir das qualidades fenoménicas experienciadas pelo sujeito, como a cor e o sabor, por exemplo.

392 No caso da filosofia berkeleiana, poder-se-á defini-la enquanto nominalista no sentido em que as ideias abstractas são ilusórias e em que as ideias gerais são puros nomes. Neste caso, o conhecimento é um tecido de ideias ou sensações concretas e individuais.

desenvolvimento da ciência moderna em geral e com os postulados de Newton393 em particular e criticar a noção lockiana de “ideias abstractas”394. Todavia, essas tentativas revelaram-se, quer para Sérgio quer para os anti-empiristas num sentido genérico, infrutíferas, na medida em que Berkeley acabou por sustentar que todo o conhecimento se baseia no conhecimento das ideias (que, por sua vez, são sensações) e não de factos.

Ou seja, embora o objecto do conhecimento sejam as ideias, elas provêm dos sentidos – são sensações. Para já, o nosso ensaísta tem mais do que motivos suficientes para recusar a doutrina berkeleiana: que espécie de idealismo é este que se funda a partir dos sentidos e das sensações exteriores? Como pode, aliás, partindo desse pressuposto enfrentar a filosofia de Newton ou demarcar-se até da de Locke?395 Mas Sérgio terá ainda mais razões para denunciar o empirismo do autor dos Três Diálogos entre Hilas e Filonous se tivermos em conta o seguinte raciocínio: o fito do conhecimento berkeleiano são ideias, no entanto, na medida em que elas são sensações (oriundas do exterior), os objectos ou as coisas tornam-se combinações constantes de sensações concretas e individuais que, em última análise, existem apenas na mente – se, ao usar estes argumentos, Berkeley pretende refutar a lockiana noção de “ideia abstracta”396 (se as ideias, enquanto sensações, são sempre concretas e individuais, estas não poderão ser logicamente abstractas397), está a colocar em causa também a questão da universalidade.

O que o filósofo de Kilkenny parece afirmar é que a mente humana não tem a capacidade de abstracção e de universalização. Ela percebe apenas ideias que são sensações singulares. Entende, por exemplo, “este homem” ou “esta cadeira” mas não compreende “o homem” ou “a cadeira”. Ou seja, “It is I know a point much insisted on, that all knowledge and demonstration are about universal notions, to which I fully

393 Isaac Newton (1643-1727), cientista inglês.

394 SÉRGIO, António, Prefácio a Três Diálogos entre Hilas e Filonous, de Jorge Berkeley, p. 242: “Pois bem: no meu entender, a filosofia do Berkeley é um «lockismo ideal», – ou, por uma definição mais precisa: um lockismo ideal do primeiro grau (pois que o de segundo grau, ou lockismo acabado, é o que Hume destilou da destilação berkeleiana)”.

395 Ibidem, p. 243: “Como já atrás consignámos, uma moda introduzida pelo Ensaio do Locke entre os escritores filosóficos logo depois sobrevindos foi o uso ambíguo da palavra «ideia». § Para o Locke e o Berkeley, «ideias» são essencialmente os aconteceres sensíveis, os dados dos sentidos, os sentires, os perceptos, – não distinguindo o sentir do respectivo conceito, da respectiva ideia”.

396 BERKELEY, George, A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge, Introduction, § 12, p. 94: “By observing how ideas become general, we may the better judge how words are made so. And here it is to be noted that I do not deny absolutely there are general ideas, but only that there are any abstract general ideas”.

397 Sérgio também pensa, quanto a este ponto, como Berkeley. SÉRGIO, António, Prefácio a Três Diálogos entre Hilas e Filonous, de Jorge Berkeley, p. 251: “Consideradas as ideias pela maneira do Locke (como passivos sentires, e da natureza da imagem, e não como conceitos que o intelecto cria, como relações que da imagem nos fazem passar para um objecto, – objecto da percepção ou da ciência física) a ideia abstracta é um puro impossível, um deslize do lockismo”.

agree: but then it doth not appear to me that those notions are formed by abstraction in the manner premised; universality, so far as I can comprehend, not consisting in the absolute, positive nature or conception of any thing, but in the relation it bears to the particulars signified or represented by it: by virtue whereof it is that things, names, or notions, being in their own nature particular, are rendered universal”398.

Aquilo que George Berkeley pretende demonstrar nas suas obras não é muito complexo, embora seja naturalmente consequente. Nenhum intérprete da história da filosofia ocidental poderá acatar com passividade e simplismo a aniquilação do conceito de “universal”. Mesmo que, a esse respeito, o filósofo replique que é necessário ter

“bom senso” ou que é possível fazer-se uso da “ideia geral”399. De qualquer modo, quando Berkeley se refere ao “homem” está a referir-se a uma só palavra. Na sua perspectiva, as ideias (em forma de sensações, de imaginações ou até de recordações) são relativas a um homem particular400. A ideia universal de homem não existe, é uma ilusão. Poder-se-á até tornar perigosa na medida em que induz à criação de substâncias (de mundos fantásticos) que não existem. O único trabalho da mente consiste em receber sensações e em combiná-las. Não vai nem consegue ir além delas.

Resumidamente, poder-se-á afirmar que uma coisa só existe porque a percebemos, isto é, a sua existência consiste apenas em ser percebida401: o esse das coisas é um percipi402. No entanto, Berkeley não vai ontologicamente tão longe quanto se poderia esperar quando profere uma afirmação desta natureza. Se, por um lado, as coisas só existem na medida em que são percebidas, por outro, parece haver dois modelos ontológicos: um que corresponde ao do espírito pensante e outro que diz respeito aos

398 BERKELEY, George, A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge, Introduction, § 15, p. 96.

399 Esta “ideia geral” distingue-se da “ideia particular” no sentido em que é usada para representar todas aquelas ideias que se assemelham. Contudo, não poder ser entendida como “ideia abstracta” ou como

“ideia universal”.

400 George Berkeley explicita este argumento através da ideia de “triângulo”: “Thus when I demonstrate any proposition concerning triangles, it is to be supposed that I have in view the universal idea of a triangle; which ought not to be understood as if I could frame an idea of a triangle which was neither equilateral nor scalenon nor equicrural. But only that the particular triangle I consider, whether of this or that sort it matters not, doth equally stand for and represent all rectilinear triangles whatsoever, and is in that sense universal” (BERKELEY, George, A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge, Introduction, § 15, p. 96).

401 Ibidem, Of the Principles of Human Knowledge, part I, § 2, p. 103: “But besides all that endless variety of ideas or objects of knowledge, there is likewise something which knows or perceives them, and exercises divers operations, as willing, imaginig, remembering about them. This perceiving, active being is what I call mind, spirit, soul or my self. By which words I do not denote any one of my ideas, but a thing entirely distinct from them, wherein they exist, or, which is the same thing, whereby they are perceived; for the existence of an idea consists in being perceived”.

402 Ibidem, Of the Principles of Human Knowledge, part I, § 3, p. 104: “Their esse is percipi, nor is it possible they should have any existence, out of the minds or thinking things which perceive them”.

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