A disseminação das ideias de um suposto atraso e pobreza de Goiás foi veiculada por meio dos livros de narrativas dos viajantes oitocen- tistas, como Auguste de Saint-Hilaire (Voyage aux sources do Rio de
S. Francisco et dans la province de Goyaz) e Emanuel Pohl (Viagem no interior do Brasil). Outro veículo importante na divulgação da deca-
dência de Goiás foram os documentos oficiais e memórias deixados por militares e funcionários públicos, que percorreram a província na primeira metade do século XIX, tais como Cunha Matos, Joaquim Te- otônio Segurado, Francisco Barata e José Martins Pereira Alencastre, publicados na revista do IHGB.
Imagens que expressariam sinais de uma suposta decadência em Goi- ás tiveram como princpal referência o declínio da produção aurífera em finais do século XVIII e pelo século XIX afora. Nesse sentido, pelo papel social exercido como viajante autorizado pela coroa portuguesa, Sain- t-Hilaire poderia ser considerado um dos agentes principais na constru- ção e divulgação de tais representações sobre a província de Goiás. Tal processo consistiria em associar a decadência da exploração do ouro àquela geral da província, esse foi o recurso adotado pelos governa- dores e cronistas para explicar os sérios problemas que atravessava a administração. Tal situação começaria a se alterar, conforme Adriana Oliveira, a partir de 1804, quando as atividades agropecuárias passariam a fazer parte do discurso oficial e a receber incentivos do governo pro- vincial231. Não obstante, segundo Nasr Chaul, não houve florescimento
agrícola na primeira metade do século XIX e a agricultura ficou restrita ao plano da subsistência. A dificuldade dos meios de transporte e a fal- ta de excedentes exportáveis condicionavam a agricultura a um lugar secundário, enquanto a pecuária passaria a representar um meio de a economia goiana sair da situação de uma suposta decadência232.
Je n’ai pas besoin de dire que celle du principal propriétaire diffère à peine des autres; elle diffère même fort peu des cases des nègres esclaves: ce genre d’égalité, général dans cette partie de la provin- ce, ne prouve autre chose qu’une égale grossièreté de moeurs245.
Saint-Hilaire não leva em conta o fato de que o padrão das casas obe- decia a uma tradição vernacular de construir, baseada no despoja- mento e na utilização de meios disponíveis, na qual diferenças cons- trutivas não seriam significativas, o que mudava eram as dimensões. Quanto ao fato de considerar quase todas semi-arruinadas, pode ser tributado ao padrão de exigência do naturalista quanto à habitabili- dade das casas, como a falta de pintura ou a necessidade de manu- tenção dos telhados246. O naturalista tributa o ar de decadência que
apresentava as povoações a suas construções em terra, facilmente degradáveis, principalmente no exterior, sendo que a facilidade de se construir seria proporcional à facilidade com que se destruiriam es- sas habitações247. Para o botânico, esses aspectos revelariam que os
modos grosseiros da população se refletiriam em suas habitações e
Figura 27. Casas de fazenda. Fonte: Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich von Martius. Atlas zur
reise in Brasilien
comum era a de “deserto”, a qual era usada para designar lugares vastos e pouco habitados240, mas que também podia se referir ao lugar das gentes
bárbaras ou a morada do “outro”, o que demonstrava, portanto, o estranha- mento e a falta de parâmetros para a percepção da alteridade de quem en- xergava as coisas de fora. Para expressar a decadência de algumas locali- dades de Goiás, continua a autora, o vocabulário se desdobrava em termos como “mísero arraial”, “miserável lugarejo”, “deplorável igrejinha”, “lastimável lugar”, “lugar ermo”, “lugar desabitado e inculto” e “lugar de penúria dos ha- bitantes”241, constantes nos relatos de viagem a Goiás no século XIX.
Expressões como as enumeradas acima estão presentes nos relatos de Saint-Hilaire. Embora em grande parte de sua narrativa sobre Goiás recorra aos termos “decadência” e correlatos para expressar o estado em que encon- tra a província, justifica que tal estado de penúria seria devido, principalmen- te, a um erro inicial: uma exploração aurífera mal orientada, que não soube aproveitar a riqueza proporcionada pela descoberta do metal242, colocando
a questão da decadência já no princípio da ocupação de Goiás pelos paulis- tas. A ideia de uma pobreza que seria anterior à queda da produção aurífera também é compartilhada por Pohl: “Queixam-se aqui, de todos os lados, da pobreza, mas ao observador é custoso crer que ela fosse menor no auge da produção de ouro. De certo, então não era maior o luxo dos vestuários”243.
Apesar disso, em Meia Ponte, Saint-Hilaire encontra um modelo civilizador entre os goianos quando conhece o comandante Joaquim Alves de Oliveira, morador dessa cidade. O naturalista acredita que o comandante poderia in- centivar os demais habitantes a seguir novos rumos, a exemplo dele próprio que cultivava algodão para exportar, no que já seria seguido por inúmeros agricultores. Porém, essa condição privilegiada não seria comum a toda a província, estava restrita ao eixo Goiás–Meia Ponte e representava o esforço de agricultores, capitaneados por Joaquim Alves de Oliveira, em uma diver- sificação de culturas, de relações com praças mercantis dinâmicas, por uma diminuição no custo dos transportes e pela capacidade de mobilizar capital, o que tornou possível uma aceleração da integração do Centro-Sul244.
A decadência da província de Goiás, segundo Saint-Hilaire, manifesta- ria-se tanto no aspecto moral dos habitantes, como na sua cultura ma- terial. Para o naturalista,a “precariedade” das casas, inclusive as dos proprietários mais abastados, seria resultado simplesmente da pobreza do lugar. Tal homogeneidade das construções pode ser observada na gravura de Martius (Figura 29).