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CAPÍTULO 3: O ÉTHOS EM TEXTOS ATUAIS DA UNE

3.1. Análise dos textos

3.1.9. O golpe no Paraguai

Em junho de 2012, o então presidente do Paraguai Fernando Lugo foi deposto pelo Poder Legislativo do país, via processo de impeachment que durou cerca de 24 horas. No contexto de uma crise político-institucional, a destituição de Fernando Lugo foi considerada um golpe pelos países vizinhos, o que resultou no isolamento político do Paraguai no relacionamento com a maioria das nações latino-americanas. Apesar de o Tribunal Superior Eleitoral paraguaio ter considerado legítimo o processo de impeachment votado pelo

parlamento, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos28 considerou-o ilegal e ilegítimo

28

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com sede em Washington, nos Estados Unidos, é um órgão consultivo da Organização dos Estados Americanos (OEA) que cuida da promoção e da proteção dos direitos humanos no continente americano.

por não respeitar o direito ao contraditório e à ampla defesa, uma vez que foram dadas apenas 2 horas para que os defensores do presidente Fernando Lugo recorressem da decisão.

Nesse contexto, a UNE publicou a Nota contra o golpe no Paraguai (Anexo I) em que se posiciona contra a atitude do parlamento paraguaio em relação a Fernando Lugo. Para a entidade, o episódio ocorrido no Paraguai constituiu um golpe de Estado, que deve, portanto, ser condenado. O tema central do texto, portanto, é a situação política do país vizinho, tema a princípio distante da realidade estudantil mais imediata. À semelhança do tema uso dos agrotóxicos, porém, a UNE buscará legitimar a presença dessa temática em seu discurso, como procuraremos explicar.

Por meio do vocabulário utilizado, percebemos que a UNE denuncia, por trás da aparente legalidade na destituição de Fernando Lugo, um golpe disfarçado, o que podemos perceber pelo uso dos lexemas “branco” e “relâmpago” para caracterizar o “golpe”. Em função disso, a UNE se coloca de forma firme contra o processo ocorrido, pois “condena” o golpe; “repudia” a decisão do Congresso Paraguaio; e se “indigna” com o ocorrido.

Essas escolhas apontam para um movimento estudantil atento, perspicaz e engajado no que diz respeito à preservação da democracia. Revelam ainda uma entidade atenta às políticas externas e que se opõe aos privilégios de grupos poderosos, o que inclusive é realçado pelo modo de enunciação, marcado por um tom firme e enérgico empregado para condenar a destituição de Lugo. A nosso ver, essas duas características podem ser compreendidas como a expressão de dois éthe que temos destacado ao longo das análises: o cidadão e o revolucionário.

Isso fica mais evidente quando percebemos que a UNE, ao denunciar o “golpe”, insere aí o tema da reforma agrária, que é indiretamente defendido por ela. Segundo a nota da entidade, Lugo vinha “buscando avançar [...] na reforma agrária” e “conduzindo um enfrentamento com os grandes proprietários de terras”, motivo pelo qual as elites reagiram e financiaram o seu golpe. Assim, observamos, pela inserção desse tema, um enunciador preocupado com reformas sociais (como é o caso da reforma agrária) e que se coloca plenamente favorável a elas, o que nos remete a um éthos de engajamento por mudanças sociais ou, como temos postulado, um éthos revolucionário.

Para o enunciador, a destituição de Lugo é uma resposta ilegítima das elites à busca de reforma agrária no Paraguai pelo então presidente. Para a entidade, o governo do “primeiro

presidente popular eleito após mais de seis décadas”, sobretudo em relação à questão agrária,

destituição de Lugo no discurso da UNE configura-se, assim, como uma medida conservadora e antidemocrática contra um presidente legítimo.

Para justificar seu discurso e a tematização da situação política paraguaia, o enunciador se vale do éthos dito, fazendo referência não apenas ao tempo de existência da entidade, mas também às suas atitudes durante o período da ditadura militar no Brasil, que, como foi comentado mais de uma vez, corresponde ao apogeu das mobilizações estudantis: “A UNE – que em seus 75 anos de vida em defesa da democracia lutou contra o nazi- facismo, combateu com bravura uma ditadura militar no Brasil, colocou-se firme contra o neoliberalismo e outras tentativas de golpes de uma elite nacional” (ANEXO I). Diante disso, podemos dizer que o enunciador/UNE, como está em busca de se legitimar e de dar credibilidade ao seu discurso, enaltece a participação da entidade na luta contra a ditadura, pois não foi uma simples oposição ao regime, mas um combate “com bravura”.

O enunciador usa, portanto, o argumento da “idade” para reforçar seu discurso. Esse

éthos dito nos permite depreender não somente um éthos de coragem e bravura, mas também

– e principalmente – de credibilidade e legitimidade, pois a UNE tem vida longa e já participou de acontecimentos importantes na história do Brasil. As escolhas lexicais revelam, com nitidez, a construção dessa imagem: a entidade “lutou” contra o nazi-fascismo, enfrentou com “bravura” uma ditadura e posicionou-se de maneira “firme” contra tentativas de golpe. Assim, ela se coloca como guardiã da liberdade e da democracia, podendo, por isso, tratar da questão paraguaia em seu discurso.

Com isso, a UNE se mostra “antenada” em relação ao que ocorre não somente no Brasil, mas também no mundo, revelando sua preocupação com ações democráticas, que respeitem os direitos humanos e que promovam transformações significativas nas estruturas sociais. Isso nos remete a um enunciador que busca se relacionar com seu destinatário pelo compartilhamento de outras fontes de saber; não apenas aquelas relacionadas às bandeiras mais imediatas levantadas pela UNE no domínio acadêmico. Trata-se, em suma, de estatutos do enunciador e do destinatário ligados a valores de um mundo mais justo, menos desigual.

Nesse sentido, cumpre destacar também a dêixis enunciativa construída no/pelo texto, que aponta para um espaço-tempo de (pré)revolução, à maneira do que vimos em outros

textos. Veja-se que o texto fala, em relação ao Paraguai, em “mudanças que começaram a ser

engrenadas pelo presidente paraguaio”, que “vinha conduzindo um enfrentamento com os

grandes proprietários de terras”. Isso é relacionado a um processo mais amplo “um processo de início de revoluções democráticas na América Latina”, o que nos mostra um aqui-agora de (pré)revolução, o que inclusive gera as ações conservadoras denunciadas pelo texto.

Há, portanto, um discurso que podemos caracterizar como de esquerda, como já observamos ao longo de outras análises, o que nos permite depreender o éthos de uma entidade estudantil que luta, acima de tudo, por justiça social dentro de um contexto de ordem democrática: numa mescla de éthos cidadão e revolucionário. Já adiantamos essa relação em análise anteriores, o que será retomado na discussão dos dados à frente.