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5 Governabilidade: o deslocamento do poder

“Na prática, tanto o Estado como o mercado são frequentemente dominados pelas mesmas estruturas de poder. Isto sugere uma terceira opção pragmática: a de que o povo deveria guiar tanto o Estado como o mercado, que precisam funcionar de maneira articulada, com o povo recuperando suficiente poder para exercer uma influência mais efetiva sobre ambos.” - Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 199360

Vimos nos capítulos anteriores que as novas dinâmicas da tecnologia são impressionantes, mas que as instituições correspondentes, indispensáveis para torná-las úteis, ainda estão nas fraldas. Vimos que a globalização abre novos horizontes económicos, mas que no plano político nos encontramos, com os nossos tradicionais governos nacionais, e na falta de instrumentos globais de regulação, simplesmente sem respostas para os novos desafios. Surgem assim os dramas da pobreza e do desemprego, macro-efeitos que desarticulam o nosso desenvolvimento.

As pessoas não são intrinsecamente más ou intrinsicamente boas. Há estruturas sociais que favorecem a solidariedade e a cooperação, como há outras que favorecem a competição destrutiva. As questões se colocam portanto menos em termos de maldade das pessoas, do que em termos de dinâmicas institucionais frente às quais as pessoas e os atores sociais encontram-se em boa parte impotentes. De certa forma, a sociedade deixou de ter instrumentos de decisão correspondentes aos problemas que enfrenta, e na falta de respostas busca culpados.

Os atores econômicos e políticos buscam sem dúvida gerar formas mais adequadas de organização institucional. As multinacionais, por exemplo, que nos anos 60 ainda exigiam que cada unidade de produção situada nos diversos países pedisse autorização à matriz para qualquer iniciativa, hoje trabalham com ampla autonomia das empresas. A própria IBM, depois de constituir a sua gigantesca pirâmide de poder, descobriu que o tempo não é mais de pirâmides, mas de redes flexíveis, e está tentando reformular completamente a sua arquitetura organizacional. Na área da administração pública, buscando compensar a ausência de governo mundial, reúnem-se quase em permanência chefes de Estado, grupo dos Sete, ministros de finanças, além desta conferência quase permanente que reúne as autoridades do globo para discutir os dramas do meio ambiente (Rio, 1992), da população (Cairo, 1993), da pobreza (Copenhague, 1995), das cidades (Istanbul, 1996). Os sindicatos estão sendo repensados frente à transformação da estrutura produtiva e à globalização. Hoje, dificilmente se encontra um país onde não haja um ministério ou uma secretaria da reforma administrativa. Todos estão repensando as instituições. Simplesmente porque as instituições herdadas já não respondem às nossas necessidades.

60 - “In practice, both state and market are often dominated by the same power structures. This suggests a

more pragmatic third option: that people should guide both the state and the market, which need to work in tandem, with people sufficiently empowered to exert a more effective influence over both”- UNDP, Human Development Report 1993, New York, p. 4

É importante notar que o que está em jogo é menos o conteúdo das decisões substantivas – que tipo de medidas econômicas, que tipo de necessidades sociais e assim por diante – do que a capacidade de gerar os instrumentos de decisão correspondentes, o que Aldaíza Sposati chama de “mapa dos processos decisórios”, hoje profundamente confusos. A perda de governabilidade se traduz numa impotência generalizada frente ao que está acontecendo. E frente à insegurança que a perda de governabilidade gera, multiplicam-se as atitudes corporativas de autodefesa que prejudicam o conjunto, ao reduzir a própria capacidade de adaptação das instituições.

Não há solução mágica para este problema, algum tipo de “mão invisível” institucional capaz de assegurar os equilíbrios. Os atores econômicos e sociais são hoje tão desiguais, que a imagem da “livre concorrência”, capaz de equilibrar os processos de desenvolvimento econômico, é hoje tão utópica e antiquada quanto a visão de “bom selvagem” que ainda sobrevive em certas visões da esquerda. A liberdade sobrevive quando há um mínimo de equilíbrio de poder entre as partes, pois liberdade entre desiguais significa liberdade do mais forte, e resulta na erosão das instituições.61 Quando se desarticulam os instrumentos institucionais de governo, ficam mais frágeis os instrumentos políticos de compensação, perdem-se de vista o longo prazo e os interesses humanos.

A dimensão dos desafios que enfrentamos se reflete nas próprias obras que surgem sobre o problema da governabilidade. Alvin Toffler, por exemplo, apresenta uma visão de deslocamento do poder baseada na revolução informática: o poder pertencia a quem tinha os maiores exércitos, depois passou para os que têm maior poder econômico, e agora está se deslocando para quem tem o controle da informação. Pierre lévy apresenta um cenário extremamente sugestivo de uma sociedade que passa a se organizar em rede, de forma muito mais horizontal, com um papel chave desempenhado também pelos sistemas de informação.62 André Gorz, conforme vimos no capítulo sobre desemprego, apresenta propostas globais de revisão do próprio conceito de trabalho e da organização social correspondente.

Há pouca dúvida de que estamos assistindo ao parto de uma nova sociedade. É também bastante evidente que nesta transformação a tecnologia, a informação e o conhecimento de forma geral desempenharão um papel central. E tem provavelmente razão Alvin Toffler ao considerar que a informação é muito mais fluida do que as antigas fontes de poder, havendo assim maiores chances de evoluirmos para uma sociedade mais democrática. Mas basta olhar para a guerra que se trava pelo controle mundial da informação, a histeria que hoje cerca as discussões referentes à legislação sobre a propriedade intelectual, a vertiginosa privatização dos sistemas de telecomunicações e a rapidez com a qual as mega-empresas mundiais estão colocando “catracas” ou “pedágios”

61 - Jean Jacques Rousseau resumiu este problema de maneira magistral, no Contrato Social: a condição da

democracia é que nenhum homem seja tão rico que possa comprar os outros, nem tão pobre que seja obrigado a se vender.

62 - Alvin Toffler, Powershift: knowledge, wealth and violence at the edge of the 21st century, Bantam

sobre a produção e circulação do conhecimento, para se dar conta que esta democratização é apenas uma possibilidade. Hoje já não se discute se a informação é ou não um elemento essencial de poder do século XXI. O essencial, é entender que configuração de forças está presidindo às transformações.