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PARTE II – ESTUDOS DE CASO

2. O CASO DA ARGENTINA

2.3. O governo Menem

Carlos Menem assume em 1989 o governo argentino em um contexto de hiperinflação e crise política. Nesse panorama, as pautas de direitos humanos e busca por justiça foram postas em segundo plano (NOVARO, 2008). Todavia, a questão militar não saiu de foco, mas sua abordagem diferiu enormemente daquela traçada por Alfonsín, como veremos nessa seção.

Antes de referir-se às medidas de justiça de transição aplicadas no governo Menem, é válido apresentar o perfil do presidente. Membro do Partido Justicialista, Menem foi eleito com uma plataforma de pacificação nacional, a qual parecia agradar os militares que durante a campanha eleitoral o procuravam para tratar de possíveis indultos. Ao ser eleito, Menem

68 afirmou que faria o possível para que a “página dolorosa” da história argentina ficasse para trás (RESDAL, [2016]).

Para Novaro (2008) o que Menem queria era que os militares fossem incorporados como subordinados às estratégias de governo, e para isso, sua estratégia de pacificação envolvia dar fim aos julgamentos e qualquer outra forma de revisão do passado. Para o presidente, tais medidas fariam com que a obediência dos militares fosse assegurada e, com isso, os militares se tornassem parte da integração ao mundo unipolar que surgia com a queda do muro de Berlim (NOVARO, 2008).

Seu plano de governo, que cada dia mais tomava um tom neoliberal muito diferente do que era esperado de um membro do Partido Justicialista, envolvia a reorganização do Exército. Nessa reorganização estavam incluídos o ajuste geral das despesas militares e a privatização de empresas militares. Ou seja, se o que se esperava de um governo justicialista era o cunho nacionalista que agradava parte dos militares, o que ocorreu de fato foram decisões cada vez mais controversas, como a desativação do míssil Cóndor II27 e a inclusão de empresas como a Fabricaciones Militares no plano de privatização (NOVARO, 2008).

Os militares se tornavam cada vez mais insatisfeitos com Menem e é nesse contexto que são promulgados os primeiros indultos em outubro de 1989. Os indultos foram firmados sob os decretos 1002/89 e 1003/89, beneficiando mais de 200 militares processados por violações aos direitos humanos e outros 64 ex-guerrilheiros. Pode-se dizer que os indultos foram uma forma encontrada por Menem de prevenir atritos com os setores sociais afetados por suas reformas. Todavia, o preço pago por essa estratégia foi muito alto: sua popularidade e a lealdade de diversos setores ao seu governo estavam profundamente abaladas (NOVARO, 2008). Em 1989, cerca de 150.000 pessoas marcharam contra os indultos em Buenos Aires e outras 50.000 protestaram em outras partes do país (EL PAIS, 1989). Novamente, a sociedade argentina se mobilizava em busca de justiça.

Os indultos não conseguiram apaziguar as relações entre o governo e os setores militares, que se deterioravam cada vez mais. Em 1990, o novo plano de carreira e aposentadoria militar fez com que o governo rompesse de vez com os grupos Carapintadas.

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Míssil de alcance médio financiado pelo governo Alfonsín como tentativa de aproximação da Força Aérea e para manter equilíbrio estratégico com os países vizinhos (NOVARO, 2008).

69 Era o sinal de que Menem não queria acordos, mas sim a subordinação militar (NOVARO, 2008).

Em dezembro de 1990, mais uma sublevação militar ocorre, agora liderada pelo Coronel Seineldín. O governo reprime o levante rápida e brutalmente, resultando em mais de uma dezena de mortos, diversos feridos e prisão dos militares responsáveis. Essa repressão rápida e brutal fez com que Menem encontrasse uma nova forma de justificar os indultos, agora como uma política de pacificação nacional. Mesmo que seus indultos continuassem com baixa popularidade dentre a população, o governo afirmava que os usava para tirar os militares do campo político e evitar novas sublevações castrenses (NOVARO, 2008; MERA, 2015).

Nesse sentido, é promulgada uma segunda leva de indultos, agora destinados aos postos mais altos. Essa segunda fase fora justificada pela ideia de que era necessário conseguir a obediência do alto-escalão. Inclusive, a origem dessa proposta de indultos a altos cargos ocorreu ainda no governo Alfonsín. Alfonsín afirma que seu ex-Ministro da Defesa, Horacio Jaunarema, ofereceu a Menem a implementação de indultos destinados a um grupo de militares selecionados. Todavia, Menem recusou a proposta, o que parece representar sua vontade política de usar tais indultos como instrumento de barganha.

Com esses planos, Menem seguia com seu objetivo de inaugurar um tempo novo na Argentina. Todavia, esse ideário encontrava obstáculos. O primeiro deles se deu no processo de reorganização interno das Forças Armadas, que iniciavam um processo de modernização quase que natural pela troca geracional dos quadros (RESDAL, [2016]). Dois pontos aqui são destacáveis: a iniciativa de tornar o serviço militar obrigatório em facultativo e profissional e a declaração do então chefe do Estado-Maior do Exército Argentino, o General Martín Balza em assumir publicamente a responsabilidade das Forças Armadas sobre os crimes cometidos durante a ditadura (QUINTAR; ARGUMEDO, 2000).

Além da declaração oficial sobre os crimes ocorridos na ditadura, Balza também afirmou que era ilegítima a aplicação do princípio da Obediência Devida frente a ordens ilegais e imorais. As declarações de Balza foram acompanhadas de uma série de confissões de militares que haviam participado da repressão, sendo a mais emblemática delas o testemunho de Adolgo Sclingo, que fora responsável pelos chamados “voos da morte”. As declarações de

70 Balza e as ondas de confissões mostraram que a memória dos crimes da ditadura não poderia ser apagada pelos indultos, como queria Menem (NOVARO, 2008).

Outro contraponto ao ideário refundacional de Menem veio dos tribunais argentinos. Mesmo com as leis do Ponto Final e da Obediência Devida, havia uma brecha para o julgamento dos crimes de actos aberrantes (roubos de bebês e apropriação ilícita de propriedades), os chamados juicios por la verdade, que não resultavam em consequências penais. Os movimentos do judiciário para o prosseguimento dos julgamentos serviram também para apoiar a inclusão de temas de direitos humanos na reforma constitucional de 1994 e no programa de reparações criado posteriormente (Novaro, 2008). A reforma constitucional de 1994 deu status constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos assinados durante a gestão de Alfonsín (Sikkink, 2011).

Como se pode ver, no governo Menem houve menos espaço para as medidas de justiça de transição. Mas menos espaço não quer dizer que elas não estavam presentes. A ação de indultar militares já condenados e em fase de prossecução demonstrou mais uma vez que a justiça seguia como uma questão central na Argentina, mesmo que usada como instrumento de barganha política. Como já indicado, O’Donnell e Schmitter (1986), pode-se dizer que os militares em um contexto pós-repressivo fariam o máximo para conseguirem se resguardar de punição, e foi com esse artifício que Menem tentou subordiná-los ao seu governo.

Por outro lado, os indultos não conseguiram barrar totalmente as buscas por justiça. Os juízes conseguiram encontrar brechas para prosseguir com alguns julgamentos, demonstrando um ativismo judicial. Enquanto as Leis do Ponto Final e da Obediência Devida, somadas aos indultos de Menem e o caos econômico instaurado no país pareceriam colocar em segundo plano as demandas por direitos humanos e justiça, Sikkink (2011) afirma que isso não ocorreu. Para Sikkink (2011) foi a resiliência dos grupos de direitos humanos argentinos que buscaram instituições regionais e internacionais, notadamente o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, para seguirem com seus os pleitos por justiça.

A busca por aliados estrangeiros para ajudar a pressionar os atos domesticamente fez com que a Argentina passasse por um movimento de “efeito bumerangue”, tal como caracterizado por Keck e Sikkink (1998). Em 1992, a CIDH emitiu o Informe 28/92, o qual afirmou que as Leis do Ponto Final e da Obediência Devida e os Indultos promulgados pelo

71 Decreto 1002/1989 eram incompatíveis com a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e com a Convenção Americana de Direitos Humanos. O Informe também recomendou que a Argentina prestasse compensação aos peticionários que levaram os casos à Comissão e que o governo tomasse as medidas necessárias para esclarecer as violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura (CIDH, 1993).

Esse Informe fora feito como resposta da Comissão Interamericana a seis petições relacionadas aos casos Caso Nº 10.147, 10.181, 10.240; Nº 10.262; Caso Nº 10.309; e Caso Nº 10.311 recebidas desde 1987, todos ocorridos durante a ditadura iniciada em 1976. As seis petições, feitas por indivíduos (vítimas e seus familiares) em associação a organizações de direitos humanos, como o Centro de Estudios Legales e Sociales (CELS), eram todos direcionados contra o Estado argentino. A denúncia se baseava na promulgação das leis do Ponto Final, da Obediência Devida promulgadas pro Alfonsín e, nas petições mais recentes, aos indultos promulgados por Menem (CIDH, 1993).

O Informe de 1992 não surgiu efeito imediato na revogação das referidas leis, mas mostrou que a sociedade argentina seguia mobilizada para que os crimes ocorridos durante a ditadura fossem julgados. Já em 1998, juízes federais da Argentina pediram a prisão preventiva de Videla e Massera. Ambos haviam sido beneficiados pelos indultos de Menem e não poderiam ser julgados a segunda vez pelos mesmos crimes, mas dessa vez foram condenados pelo sequestro de bebês e pela falsificação de documentos públicos, crimes que não haviam entrado no rol dos crimes indultados. Segundo Sikkink (2011), no contexto em que foram presos se sugere que houve influência dos tribunais da França e Espanha.

Também, foi no governo Menem que se realizou uma reforma constitucional. Na época, a constituição vigente era ainda a de 1957, que já havia sido modificada pelas ditaduras que se seguiram a ela. A Constituição de 1994 representou mais um marco na transição argentina. Foi a Constituição de 1994 que positivou a supremacia dos tratados internacionais (inclusive os de direitos humanos) no ordenamento jurídico interno da Argentina (FONTOURA, 2000).

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