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Graciliano Ramos: um caso específico

A realidade econômica do subdesenvolvimento mantém a dimensão

regional como objeto vivo, pois as tendências regionalistas já estariam transfiguradas pelo realismo social. A noção de subdesenvolvimento trouxe à cena a figura dos marginalizados, o papel do escritor muda, deixa de lado o paternalismo, e começa a ser construído um espaço peculiar na narrativa para o personagem que representaria o excluído. O escritor dá voz a seus personagens, mas, ao mesmo tempo se utiliza desse espaço, ora se posicionando como intelectual letrado, ora representando o personagem iletrado, nesse caso funcionando como uma espécie de porta-voz, e é nesse ponto que se destaca o romancista Graciliano Ramos.

A obra romanesca de Graciliano Ramos abarca o inteiro processo de formação da realidade brasileira contemporânea. No romance graciliânico o mundo exterior do romancista e o próprio romancista estão esplendidamente entrosados. Nada existe nele em comum com aquele estreito regionalismo, que foi uma das manifestações concretas em que se encontram inseridos os personagens caricatos. No “regional”, a Graciliano interessa apenas o que é comum a toda a sociedade brasileira, o que é “universal”, o que pudesse ser concreto, alimentando-se da temporalidade social e histórica. A obra de Graciliano Ramos, em sua totalidade, nos apresenta um painel de diferentes “heróis emblemáticos”, ou seja, uma análise literária das diversas atitudes típicas das classes sociais brasileiras em face de um mundo alienado.

A voz do marginalizado aparece em VS, único romance do autor em 3ª pessoa, de uma maneira peculiar. Na tradição romanesca brasileira, geralmente o personagem iletrado é construído como pitoresco e exótico, cabendo ao narrador um

papel paternalista, em que descreve-se a trama com estilo culto, enquanto os personagens são compostos de forma caricata. Mas no romance de 30, o personagem deixa de ser pitoresco e passa a ser crítico, podendo, às vezes, o personagem iletrado ascender ao status de narrador. É o que podemos perceber em VS por meio do discurso indireto livre. O romance de 30 modifica a relação entre narrador e personagem.

No capítulo de VS intitulado “O mundo coberto de penas”, fala o personagem, fala o narrador/escritor:

Suspirou. Que havia de fazer? Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar, recomeçar a vida. Levantou a espingarda, puxou o gatilho sem pontaria. Cinco ou seis aves. Caíram no chão, o resto se espantou, os galhos queimados surgiram nus. Mas pouco a pouco se foram cobrindo, aquilo não tinha fim. (VS: 2003, 111)

O silêncio de sinha Vitória é rompido pelo raciocínio que sustenta a relação entre a seca e as arribações. Esse silêncio das personagens vai aos poucos contaminando a fala do narrador. Uma sintaxe perfeita, parágrafos curtos, poucos diálogos, e um narrador letrado que convive com o silêncio dos personagens. Não há em

VS o paternalismo costumeiro do intelectual para com o marginalizado. Quando o texto

apresenta o questionamento “Que havia de fazer?”, não há como saber se se trata do pensamento do narrador ou do personagem. O narrador não é detentor de verdades. Assim, quando Antonio Candido fala de narrador procurador, ele se refere a um personagem que está ausente e presente. Nesse capítulo de VS, o autor utilizou-se do recurso do discurso indireto livre, não há ali somente um monólogo interior e sim uma espécie de negociação entre personagem e narrador. O questionamento de Fabiano acerca da idéia de sinha Vitória sobre a morte do gado por culpa das aves não é restrito àquele determinado capítulo, àquele determinado romance. Não é Fabiano que deve responder essas questões, pois o problema, já não é Fabiano, é Graciliano, o conflito é do escritor. A partir do momento em que o narrador/escritor interage com a personagem, ele começa a participar do texto literário.

A identidade do escritor no romance de Graciliano Ramos não é pacífica, o escritor está em questão a todo o momento. Há um olhar atento que sonda as condições do escritor. Isso produz uma contradição: um escrito que critica os escritores?

Teríamos uma literatura que critica a sociedade e, com ela, a literatura. Haveria um limite para a crítica literária? Essas e outras questões a respeito da relação entre narrador/escritor e personagem serão amplamente discutidas no capítulo II deste trabalho.

No fim da década de 30, Graciliano Ramos estava morando na capital da República. Sua ficção já o havia distinguido como homem de letras. Vítima sofrida do autoritarismo getulista, o autor aparecia como combatente digno contra o Estado, ao menos na literatura, não se assumia comunista, apenas simpatizante do movimento. Antes da prisão, ele viera equilibrando as funções de político profissional público com a função secundária e diletante de escritor/intelectual. Essa alternância de funções desaparece depois da prisão, quando foi preso sob suspeita de subversão. Ele acaba pendendo para a exclusiva condição de escritor/intelectual.

Também em MC há o autoquestionamento relativo ao papel de escritor associado à condição da nação, mas agora o gênero textual é outro. Em MC, há o caráter de depoimento, o escritor é narrador e também personagem. O romance, como gênero do inacabamento, servira a Graciliano de modo apropriado para descrever sua condição na sociedade e no período histórico em que se encontrava. Depois, o romance dá lugar à memória na obra do autor, abrindo mais espaço para as indagações do intelectual, pensando o subdesenvolvimento da nação. Para Hermenegildo Bastos:

Graciliano Ramos retirou-se do universo da ficção por desconfiar da capacidade da literatura de se realizar como crítica da sociedade conservadora, da possibilidade de quebrar as barreiras da instituição literária, de criar uma literatura por intermédio da qual se fizesse ouvir a voz dos vencidos. (BASTOS: 1998, 142)

Assim, misturam-se em MC, testemunho e Arte. O escritor experimenta a experiência de ser uma espécie de “oprimido” em sua posição de personagem. Essa sua nova condição o expõe mais do que nunca à crítica, já que sua história, agora, é real. Como personagem, se vê sem perspectiva tanto quanto os personagens de seus romances. Mas para Hermenegildo Bastos a pergunta, que direciona seu livro Memórias do cárcere:

literatura e testemunho, persiste: “a obra assim construída pôde dar conta do projeto?”,

Ramos construiu MC, uma espécie de “releitura” de sua obras anteriores; já, o projeto mencionado seria a emancipação pela arte. Em MC, o autor analisa a si próprio enquanto personagem e repensa seu posicionamento de classe e seu papel enquanto escritor de esquerda de 30.

Crítico e inimigo da sociedade capitalista, o personagem/autor repensa, ao longo dos dois volumes, sua posição na sociedade. O mais interessante é que mais uma vez o escritor constata suas limitações de intelectual. Novamente, discute-se o romancista e sua crise em relação ao ato de representar. As questões sobre o campo do romance, em destaque em VS, e as questões sobre a crise do intelectual, em destaque em

CAPÍTULO II