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Gramaticalização e mudança linguística

No documento LUIZA FRANCISCA FERREIRA DA SILVA (páginas 54-57)

4. ANÁLISE VARIACIONISTA

4.1 Gramaticalização e mudança linguística

Visões já consolidadas no campo da linguística têm assumido a gramaticalização como um importante fenômeno de mudança. Para Martelotta, Votre e Cezario (1996, p. 7), “o surgimento de elementos gramaticais a partir da extensão do uso de itens lexicais diz respeito à gramaticalização”. Nesse sentido, os autores consideram que a gramaticalização estaria ligada a sete diferentes tipos de mudança linguística, exemplificadas no PB da seguinte forma: a) A trajetória de elemento linguístico do léxico à gramática, que compreende, por exemplo, a passagem de verbo pleno a verbo auxiliar, como ocorre com o verbo de movimento ir (de perto para longe do falante), que passa a designar futuro como auxiliar (vou à praia X vou viajar para a praia).

b) A trajetória de vocábulo a morfema, que ocorre, por exemplo, com a passagem

amar +hei > amarei e tranquila + mente > tranquilamente.

c) A trajetória de elemento linguístico da condição de menos gramatical (ou menos regular) para mais gramatical (ou mais regular), como acontece, por exemplo, com

seja > seje e menos > menas, por influência forte da analogia.

d) A trajetória de elemento linguístico de mais referencial a menos referencial, caracterizada pela perda de significação de referentes extralinguísticos e aquisição de significados baseados em dados pragmáticos, relativos a estratégias comunicativas dos participantes, e em dados textuais, relativos à organização interna dos argumentos no texto, como ocorre com o operador argumentativo logo, que inicialmente apresentava valor de advérbio espacial (do latim locu-), passando, posteriormente, a assumir função argumentativa como conjunção conclusiva.

e) A trajetória que leva uma construção sintática a se especializar em expressar função gramatical, como, por exemplo, a construção verbo-sujeito, que funciona como introdutora de informação nova e de sujeito não-tópico (Maria, o carro dela quebrou [KATO, 1989, p. 109]).

f) A trajetória dos processos de repetição do discurso, no âmbito da criação e da intenção, em direção à gramática, através de sua regularização e sistematização (vossa

mercê você cê... [VITRAL; RAMOS, 2006]).

g) A trajetória que leva construções negativas relativamente livres a se tornarem mais fixas em função de estratégias discursivas determinadas: (não num nữ n’ [SOUSA; VITRAL, 2010].

Kuteva (2008, p. 193) considera que uma mudança linguística gramatical pode ser atribuída a processos universais, cognitivos e internos à língua, que culminariam na gramaticalização, o que tornaria esse fenômeno um processo natural de mudança. Por outro lado, ela avalia que o contato linguístico, também responsável por mudanças, seria um processo de mudança externo e não natural:

linguistic changes may come in two different types. Some forms of linguistic change may be relatively ‘natural’, in the sense that they are liable to occur in all linguistic systems, at all times. (KUTEVA, 2008, p. 193)

Nota-se que essa visão de Kuteva reforça inclusive o fato de a gramaticalização, conforme dito, ser um processo bastante produtivo e frequente não só no PB, mas em todas as línguas, dado o seu caráter universal. Para Vitral, Viegas e Oliveira (2010, pp. 201-202), “a produção das formas de uma língua pelos falantes pode ser variável”, isto é, dada a heterogeneidade que se observa nas línguas em geral, os falantes podem recorrer a diferentes formas para expressar uma mesma mensagem. Essas diferentes formas de se dizer a mesma coisa são o pressuposto para a variação linguística. Se duas formas são intercambiáveis, se têm o “mesmo valor de verdade no mesmo contexto”, pode-se dizer que essas formas concorrem numa língua. Essa concorrência pode se manifestar de duas formas distintas. Se os itens simplesmente se alternam na fala dos falantes, que podem optar ora por um ora por outro, diz-se que há uma variação linguística estável. Por outro lado, se, num determinado momento, os falantes passam a optar por uma forma em detrimento da outra, diz-se que há mudança linguística, segundo a qual um termo suplanta o outro.

Ao analisar a mudança linguística no português brasileiro, Coelho (apud Vitral; Viegas; Oliveira, 2010, p. 202) a exemplifica pela aparente eliminação da forma sintética dos

verbos do pretérito mais-que-perfeito em favor da forma analítica, isto é, a preferência por formas como “eu tinha saído quando você entrou” em detrimento de “eu saíra quando você entrou”, por exemplo. Ela também considera a formação dos verbos auxiliares ter e haver na língua portuguesa. No português arcaico, esses verbos eram empregados com o conteúdo semântico de posse, como em:

(38) com nouas e melhores estiduras que cada huum tinha; e

(39) os reis cristãos houverom seu acordo que fossem partidos em duas partes. Como previsto pelo processo de gramaticalização, esses verbos perderam exclusivamente esse conteúdo de posse e ganharam um caráter gramatical, ao funcionarem como auxiliares, como em:

(40) ele tinha feito as entregas. (41) ele havia feito as entregas.

Portanto, nota-se inclusive que esse processo está em conformidade com os princípios da divergência e da estratificação de Hopper (1992 apud Vitral, Viegas e Oliveira, 2010, p. 206). Em relação à divergência, que pressupõe que o novo item gramatical conviva com a forma lexical que lhe deu origem, nota-se, sobretudo quanto ao verbo ter, pois estão presentes no PB contemporâneo tanto o uso lexical de posse (42), quanto o uso mais gramatical, de auxiliar (43):

(42) Pedro tem duas bicicletas.

(43) Pedro tem comprado muitas coisas.

Em relação à estratificação, que prevê que o novo item gramatical conviva com outro gramatical de mesma função, percebe-se inclusive a coexistência de ter e haver como auxiliares em um mesmo contexto, conforme demonstram os exemplos (40) e (41). Há que se observar ainda que esses dois princípios de Hopper podem inclusive ilustrar nossa perífrase conjuncional. Isso porque só que convive com a partícula denotadora de exclusão só, que lhe

deu origem, evidenciando a divergência, além de variar com outra forma de adversatividade, a conjunção mas, o que mostra a estratificação. Sobre esses processos, os autores concluem:

é possível, assim, considerar que, em relação à estratificação, haja fenômenos de variação estável no sentido laboviano que, como se admite, podem persistir por tempo indeterminado ou, a partir de um certo momento, começar a se desenvolver na direção de eliminar uma das formas equivalentes. (VITRAL; VIEGAS; OLIVEIRA, 2010, p. 206).

Conforme veremos na seção 4.3 Metodologia e Análise dos Dados, ainda não temos evidências suficientes que nos permitam afirmar seguramente que a variação entre só que e

mas irá evoluir a ponto de a forma inovadora suplantar a conservadora. O que sabemos até

agora é que a forma conservadora é bem mais frequente que a inovadora. Em nosso corpus, encontramos um total de 198 ocorrências de mas em contraste com 14 ocorrências da perífrase conjuncional só que. Sabemos ainda que a frequência é um importante instrumento para a análise variacionista e também para os processos de gramaticalização. Nesse sentido, como vimos no capítulo 3, quanto mais frequente é um item, maiores as chances de ele se desgastar semanticamente. Esse desgaste faz com que a forma aos poucos tenha o seu significado básico enfraquecido, sendo usual a cooptação de um novo item que a substitua nesse significado básico.

Se esse processo se confirmar na variação entre só que e mas, estaria ele dentro do esperado: mas, sendo bem mais frequente que só que, desgastar-se-ia por esse uso frequente, já que é a conjunção prototípica da língua portuguesa para a quebra de expectativa. A língua já tratou, assim, de criar uma forma inovadora só que, vindo do adjetivo latino sola e da conjunção integrante que, com mesmo valor de verdade que mas. Como mostramos, mas e só

que já coocorrem na língua portuguesa. Portanto, falta-nos agora avaliar se há a possibilidade

de, futuramente, uma forma suplantar ou não a outra. Vejamos nosso corpus de análise.

No documento LUIZA FRANCISCA FERREIRA DA SILVA (páginas 54-57)

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