Os verbos, como categorias primárias, merecem destaque no processo de gramaticalização. Observarmos, no esquema abaixo, o continnum de mudança, a partir de um verbo pleno.
Verbo pleno > verbo funcional > verbo auxiliar > clítico > afixo
Segundo Castilho (1997, p.33), um verbo pleno funciona como predicado, enquanto que um verbo funcional transfere esse papel para constituintes a sua direita, tornando-se portadores de Pessoa, Número, Tempo e Modo. Em português, essa mudança pode ser exemplificada pelos verbos sedere > ser e stare > estar, os quais, nos primeiros estágios da língua, eram locativos. Esses locativos deram surgimento aos existenciais e possessivos, passando de verbos plenos a verbos funcionais. Assim, em português arcaico, temos construções como Alma que é no inferno e O servo de Deus estando em sa cela31. Entretanto, no seu desenvolvimento histórico, ser perde o traço semântico de locativo para estar e passa para existencial.
Da mesma forma, Clark (1978 apud Ribeiro, 1993) propõe que construções existenciais, locativas e possessivas foram, originalmente, construções locativas, pois essas construções descrevem a localização de um objeto ou de um ser animado em um espaço físico ou na posse de alguém. A partir disso, como vimos anteriormente, o local é cognitivamente mais concreto que a existência e a posse. Assim Clark (op. cit.)
distingue quatro tipos de construções locativas, ilustrando-as com exemplos do francês e do inglês:
Existencial: Il y a um livre sur la table. There is a book on the table.
Locativa: Le livre est sur la table. The book is on the table.
Posse 1: Jean a un livre. Tom has a book.
Posse 2: Le libre est à Jean. The book is Tom’s.
No processo de gramaticalização, um verbo funcional pode transformar-se em um verbo auxiliar, e este em afixo. Os verbos auxiliares acompanham verbos nucleares em categorias nominais, atribuindo-lhes as categorias de Pessoa e Número e especializando-se na codificação de Tempo, de Modo, de Aspecto e de Voz.
Lehmann (2002, p.37) sintetiza a criação das categorias Tempo, Aspecto e Modo, a partir do esquema abaixo:
Verbo modal Marcador de modo
Verbo pleno Verbo auxiliar
Marcador de aspecto Verbo serial
Advérbio Marcador de tempo
Tomando como exemplo a expressão do tempo futuro em Latim, observamos o futuro latino amabo, concorrendo com a perífrase formada por um auxiliar de tempo
amare habeo, que inicialmente codificava o Modo, com a idéia de obrigatoriedade. Assim, segundo Bortoni e Simon (1994), na România, a perífrase estabeleceu-se como locução volitiva e a interpretação de amare habeo era tenho de amar.
Desse modo, no processo de gramaticalização, observou-se a passagem de
amabo para amare habeo: amabo > amabo/ amare habeo > amare habeo. Segundo Ilari (2000), ao apresentar o paradigma verbal do latim, afirma que construções do futuro simples do latim clássico, com desinência modo-temporal em –am, desapareceram no latim vulgar, sendo substituídas pelo presente do indicativo de habere
+ infinitivo.
A gramaticalização desta continuou no Português. Atingindo o grau elevado de gramaticalização, levou à criação de um afixo, com em amarei, passando de auxiliar modal (habere) a uma desinência de tempo. De acordo com Bortoni e Simon (1994, p.77), “do ponto de vista formal, houve a aglutinação de dois vocábulos com a redução fonética das formas de habere (cantarei)”. Esta forma, por sua vez, passou a concorrer
com uma nova perífrase, constituída por ir + infinitivo (vou amar), retomando o processo de gramaticalização.
No que concerne diretamente aos nossos estudos, Mattos e Silva (2001), aborda a gramaticalização do grupo verbal ser, estar, ter e haver, passando pelas seguintes etapas:
(i) A variação de ser e estar e o avanço deste em estruturas atribuitivas; (ii) A variação entre haver e ter e o avanço deste em estruturas possessivas;
(iii) A variação singular/plural e a perda da concordância no particípio passado em estruturas com ter/haver analisáveis como tempo composto.
Barros (1540, p.20) já reconhecia o tempo composto como uma mudança verbal, segundo o autor:
Chamamos tempo per rodeo quando simplesmente nam podemos usár d'algum; entám pera ô sinificár tomamos este vérbo tenho, naquele tempo que é máis confórme ao vérbo que queremos conjugár, e, com o seu partiçípio passádo, dizemos: tivéra amádo, como se póde ver, no tempo passádo e máis que acabádo, no módo pera desejár, o quál suprimos per este rodeo, por nam termos simples com que ô sinificár. E no módo infinitivo nam acabádo, por nam termos tempo passádo e vindoiro, ambos simples, sinificamos per rodeo o passádo, dizendo: ter amádo, lido, ouvido, sido; e o vindoiro:[h]aver d'amár, ler, ouvir, ser.
A partir do trecho acima, o autor afirma que por, não existir um forma verbal simples, no passado acabado e no passado mais que acabado do modo para desejar, o sistema tem como alternativa o uso dos verbos per rodeo – tempos compostos. A partir desse exemplo, observa-se que o autor correlaciona forma e função para explicar a existência e o campo de codificação dos verbos per rodeo, a partir das categorias TAMR.
Dessa forma, investigaremos mudanças nas categorias TAMR no percurso de gramaticalização de ter/haver + particípio, uma vez que acreditamos serem essas categorias a força motriz que impulsionou a mudança linguística.
SÍNTESE CONCLUSIVA DO CAPÍTULO
Neste capítulo, abordou-se o verbo como classe verbal objeto de nossa pesquisa. A partir do verbo, apresentamos as categorias de Tempo, Aspecto, Modalidade e Referência (TAMR), definições e características. A partir dessa apresentação, no capítulo a seguir, serão expostos os fatores de controle que motivaram a mudança no percurso de gramaticalização do pretérito perfeito composto nos capítulos a seguir.
Além das categorias verbais, abordamos as peculiaridades da gramaticalização do grupo verbal, por ser o verbo uma categoria primária. Assim, a partir de Lehmann (2002 [1982]), percebemos a mudança categorial inerente a essa classe verbal.
As considerações feitas nesse capítulo serão retomadas nos capítulos posteriores ao apresentarmos, em nossos procedimentos metodológicos, os fatores controlados e, no capítulo de análise, ao discutirmos a relevância das categorias TAMR no processo de gramaticalização do pretérito perfeito composto.
CAPÍTULO QUARTO
DOS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A Linguística histórica pode ser concebida como a arte de fazer o melhor uso dos maus dados. (William Labov, 1994, p.11)
Este capítulo apresenta a metodologia adotada por nós e divide-se em três seções: a primeira corresponde aos procedimentos na seleção e na análise de dados, enquanto que as seções seguintes dão conta das etapas estudadas, a primeira corresponde à gramaticalização de ter/haver (pleno) + particípio adjetival > ter/haver
(auxiliar) + particípio verbal e a segunda corresponde à variação linguística na codificação do aspecto perfectivo, apresentando a variável dependente e as variáveis independentes32. Por fim, abordaremos a análise estatística dos dados realizada pelo programa GOLDVARB X.