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3 GRAMSCI E A NOVA HEGEMONIA

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[ ] Fora precisamente Marx quem primeiro descobrira a grande lei da marcha da história, a lei segundo a qual todas as lutas históricas,

3 GRAMSCI E A NOVA HEGEMONIA

Escrever um capítulo analítico sobre o conceito de ideologia desenvolvido por Antonio Gramsci é um ato de coragem. Essa afirmação se deve ao reconhecimento da complexidade da obra produzida por esse autor e do risco de reducionismo que se corre ao apresentar, em poucas linhas, fragmentos de um pensamento que necessita ser analisado em sua totalidade.

Tendo como ponto de partida a preocupação que se apresenta neste trabalho sobre o papel a ser desempenhado em uma escola contra-hegemônica, de forma que se possa identificar nos pensamentos de Gramsci e Freire o conceito que eles atribuem à ideologia e o reconhecimento da existência entre as camadas populares – ou, na expressão gramsciana, entre os “simples” – de um núcleo válido presente no senso comum, próprio das classes oprimidas, marca a possibilidade de contribuição desta tese, à práxis pedagógica.

Para autores como Grisoni e Maggiori (1973), o pensamento desenvolvido por Gramsci representou a ampliação da análise marxista sobre a importância da luta política e ideológica em um processo revolucionário, objetivando que as classes trabalhadoras pudessem lutar pela conquista hegemônica. De acordo com alguns estudiosos, esse autor pode ser considerado como o teórico da superestrutura.

O pensamento gramsciano possuiu forte influência da teoria revolucionária leninista e aprofundou os princípios enunciados por Lênin sobre o fato de que um verdadeiro processo revolucionário não pode se efetivar sem que se processe uma transformação nas “mentalidades” (ideologia) de tais atores.

Sobre as contribuições de Gramsci ao pensamento marxista, Grisoni e Maggiori (1973) apresentam a seguinte afirmação de M.A. Macciochi48:

Sou da opinião que a sua fórmula49 de que Gramsci politiza o ideológico é de grande alcance teórico e político. Com efeito, Gramsci coloca a política no lugar de comando e, a partir dessa deslocação, torna-se evidente que a política será ideológica, filosofia, “filosofia da práxis”. Deixa, portanto, de existir uma dicotomia

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Entrevista de Maria Antonietta Macciochi cedida a Grisoni e Maggiori para o Prefácio da obra “Ler Gramsci” (1973).

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falaciosa. Gramsci representa um regresso à extraordinária unidade do combate marxista-leninista, o combate da prática política que só se actualiza e avança mediante a constituição paralela de uma concepção do mundo, de uma filosofia da práxis capaz, com a ideologia proletária, de se opor e suplantar a ideologia burguesa, de derrubar a cadeia de fortalezas e casamantas de que fala Gramsci [...] (p. 22, grifos dos autores)

A produção teórica de Antonio Gramsci não deve ser estudada linearmente, pois tal ação seria contraditória à perspectiva dialética, cuja metodologia subsidia suas contribuições. A historicidade do seu pensamento está estreitamente relacionada com os desafios que a realidade material de sua existência social e política o condicionaram, sem, no entanto, predeterminá-lo. Vale afirmar, portanto, que somos frutos de uma temporalidade histórica.

Nesse sentido, apresenta-se a concepção de bloco histórico, ou seja, a compreensão do contexto histórico global como gerado e gerador de dada realidade.

Todo sistema social se edifica por relações de poder (hegemonia), exercidas pela classe social dominante, que se utiliza das “vozes” dos intelectuais para legitimar o bloco histórico.

A esse respeito, Portelli (1977) descreve que:

Um sistema social só é integrado quando se edifica um sistema hegemônico, dirigido por uma classe fundamental que confia a gestão aos intelectuais: realiza-se aí um bloco histórico. O estudo desse conceito não pode, pois, ser isolado do de hegemonia do bloco intelectual. Só essa concepção do bloco histórico permite captar em sua realidade social, a unidade orgânica de estrutura e superestrutura. (p. 16)

No entendimento deste autor, três conceitos-chave são estruturantes para o marxista italiano: a) o estudo da relação entre estrutura e superestrutura; b) o ponto nevrálgico da relação entre estrutura e superestrutura que se encontra na realidade; c) o vínculo orgânico entre as dimensões estruturais e superestruturais com a realidade, que é realizado em nível superestrutural, pelos intelectuais, de forma a atribuir um papel relevante à ideologia.

Tais aspectos permitem afirmar que os Cadernos do Cárcere expressam a maturidade reflexiva de Antonio Gramsci. Os textos foram redigidos entre 1929 e 1937, por meio de estudos e anotações do autor sobre diferentes assuntos e tinham

como fio condutor das análises, a luta pela hegemonia política das classes populares. Para efeito do presente estudo, foi utilizada a edição brasileira, organizada por Carlos Nelson Coutinho, que está estruturada em seis volumes, contendo o que Gramsci denominou como “Cadernos Especiais” e notas que se encontram nos “Cadernos Miscelâneos”, além de mais dois volumes denominados como “Escritos Políticos”.

Os seis volumes da edição brasileira dos Cadernos do Cárcere foram organizados como os seguintes conteúdos: a) volume 1: Introdução ao estudo da filosofia e a filosofia de Benedetto Croce; b) volume 2: Os intelectuais. O princípio educativo e o jornalismo; c) volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política; d) volume 4: Temas de Cultura. Ação Católica. Americanismo e Fordismo; e) Volume 05: O Rissorgimento Italiano. Notas sobre a história da Itália; f) volume 06: Literatura. Folclore. Gramática.

É de grande relevância, para se compreender o conceito de ideologia atribuído por Gramsci, o estudo do caderno temático em que o autor denomina de Introdução ao estudo da filosofia. Escrito entre 1932 e 1933, este texto originalmente é parte integrante do caderno de número 11 e que na edição brasileira de Carlos Nelson Coutinho, compõe o volume de número 1.

A ideologia, para o autor estudado, encontra-se dentro de um “guarda-chuva” conceitual denominado de compreensão do mundo. Paulo Freire, conforme pode ser visto no próximo capítulo, aproxima-se do pensamento gramsciano ao identificar ideologia com a terminologia “leitura de mundo”. Para ambos, todos os seres humanos são portadores de algum grau de consciência, logo, de ideologia.

Todo ser humano é um filósofo, pois não é possível estabelecer uma profunda fragmentação entre trabalho e reflexão, ou seja, entre teoria e prática, na medida em que toda ação envolve um pensamento. Os diferentes níveis de consciência manifestados pelos estratos sociais possuem vínculos com o real e guardam, desde uma percepção superficial das dimensões estruturais e superestruturais, com graduações diferenciadas de ideologia. É preciso potencializar os germes de consciência de classe, presentes na cultura popular, por meio de uma ação pedagógica, coordenada por lideranças revolucionárias.

No livro “Política e História em Gramsci” (1978), Franco Ferri, afirma que Antonio Gramsci realizou o aprofundamento de algumas premissas básicas do pensamento marxista:

Não se trata de substituir o conhecimento pela práxis. Na célebre XI Glosa a Feuerbach, Marx afirma incisivamente que “os filósofos apenas interpretaram o mundo de modo diferente; porém trata-se de mudá-lo”. Gramsci se pergunta se esse célebre aforisma sugere o abandono da filosofia a favor exclusivamente da práxis revolucionária. A sua crença é a de que não se deve atribuir esse sentido à afirmação de Marx, e que, ao contrário, ela deve ser interpretada como uma articulação de um novo modo de conceber a unidade de teoria e prática. Isto é, o conhecimento não pode ser abandonado. Na atividade real do homem, também está contido o conhecimento, que só na atividade prática é conhecimento real e não escolasticismo. O caráter específico dessa interpretação gramsciana do conhecimento e da sua unidade com a prática é o de que a atividade cognoscitiva individual não pode ser concebida a não ser em favor da política, onde o termo política é entendido em relação ao conceito de sociedade civil, e, portanto, à ideia-força do coletivo [...] (FERRI, 1978, p. 19-20)

Embora reconhecendo que os seres humanos são filósofos, admite que nem todos exercem essa função na sociedade. Aqueles que realizam um trabalho mais elementar, que compõem as camadas simples, não possuem plena consciência da ação produtiva que desenvolvem, vivendo dialeticamente duas consciências, uma de ordem prática, que procura responder aos desafios colocados pela realidade e outra, mais teórica, que foi formada e herdada historicamente, influenciada por ideologias de outras classes sociais, a qual Gramsci denomina de consciência verbal. Ambas as consciências colocam-se em permanente contradição e confronto.

A consciência real é a que tem a capacidade de unir os simples por meio de uma identidade de classe, diante dos desafios a serem enfrentados em relação aos problemas colocados pelo processo produtivo, que impede os oprimidos de terem acesso aos bens materiais e culturais produzidos. Por sua vez, a consciência verbal é uma consciência “hospedada” (termo freiriano), acrítica, que intervém na consciência real, despotencializando-a50.

Se por um lado é possível afirmar que os seres humanos são filósofos, por outro é necessário destacar a existência de diferentes formas consciência. De forma geral, as camadas populares fundamentam suas concepções de mundo em uma

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Paulo Freire aconselha a leitura de Lucien Goldmam a respeito do tema “consciência”. Goldmam distingue “consciência real” da “consciência possível”.

consciência espontânea, que pode ser identificada na linguagem, no senso comum, e na visão folclórica.

Toda linguagem contém elementos ideológicos, que representam a visão de mundo de determinado grupo social. Por meio da linguagem é possível identificar o grau de consciência (ideologia) que possui o indivíduo e seu grupo social. A investigação sobre a linguagem popular constitui-se em uma metodologia fundamental a ser realizada pelo intelectual orgânico, na medida em que por meio dela poderá adentrar no âmago da ideologia popular. Para tanto, buscar nas metáforas populares o significado atribuído ao real, seus diversos sentidos e transgressões é essencial, uma vez que a linguagem não é neutra, ao contrário, ela guarda ideologia e historicidade.

A linguagem é sempre metafórica. Talvez não se possa dizer exatamente que todo discurso seja metafórico em relação à coisa ou ao objeto material e sensível referido (ou ao conceito abstrato), a fim de não ampliar demasiadamente o conceito de metáfora; contudo, pode-se dizer que a linguagem é metafórica com relação aos significados e ao conteúdo ideológico que as palavras tiveram nos períodos anteriores da civilização (GRAMSCI, 2014a, p. 145)

A linguagem é uma das expressões da ideologia que também se manifesta na ação. Como afirmado, a consciência possui estágios diferenciados, desde uma percepção fragmentada do real, elementar, denominada por Gramsci de visão folclórica, passando por um estágio intermediário contidos no senso comum, chegando a uma perspectiva mais crítica ou filosófica.

[...] Isto significa que um grupo social, que tem sua própria concepção de mundo, ainda que embrionária, que se manifesta na ação e, portanto, de modo descontínuo e ocasional – isto é, quando tal grupo se movimenta como um conjunto orgânico -, toma emprestado a outro grupo social, por razões de submissão e subordinação intelectual, uma concepção que não é sua, e a afirma verbalmente, e também acredita segui-la, já que a segue em “épocas normais”, ou seja, quando a conduta não é independente e autônoma, mas sim submissa e subordinada. É por isso, portanto, que não se pode separar filosofia de política; ao contrário, pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de uma concepção de mundo são também elas, fatos políticos. (GRAMSCI, 2014a, p. 97, grifos do autor).

O senso comum é a filosofia dos não filósofos. Corresponde à interpretação do mundo que é absorvida acriticamente e influenciada por diferentes ambientes sociais e culturais, ao mesmo tempo, e contraditoriamente, em que a realidade

vivida é embrionariamente percebida. Daí a afirmação de sua vulnerabilidade crítica. O principal elemento constitutivo do senso comum é a visão religiosa.

A religiosidade, mesmo que dirigida politicamente por uma Instituição (igreja), não consegue absoluto controle sobre a maneira em que os fiéis absorvem, interpretam e vivenciam tal religiosidade.

[...] Os elementos principais do senso comum são fornecidos pelas religiões e, consequentemente, a relação entre senso comum e religião é muito mais íntima do que a relação entre senso comum e sistemas filosóficos intelectuais. Mas, também em relação à religião, é necessário distinguir criticamente. Toda religião, inclusive a católica (ou antes, sobretudo a católica, pelos seus esforços de permanecer superficialmente unitária, a fim de não fragmentar-se em igrejas nacionais e em estratificações sociais) é, na verdade, uma multiplicidade de religiões distintas e frequentemente contraditórias: há um catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequenos burgueses e dos operários urbanos, um catolicismo das mulheres e um catolicismo dos intelectuais, também este variado e desconexo. Sobre o senso comum, entretanto, não só as formas mais toscas e menos elaboradas desses vários catolicismos, atualmente existentes, como influíram também e são componentes do atual senso comum as religiões precedentes e as formas precedentes do atual catolicismo, os movimentos heréticos populares, as superstições científicas ligadas às religiões passadas, etc. (GRAMSCI, 2014a, p. 115).

Gramsci declara existir uma ideologia (original) das massas populares, que se encontra no interior do senso comum (filosofia real), detentora dos germes ou do fermento da transformação social, mas que por ser embrionária, logo, a-crítica, sofre a despotencialização por meio da ideologia dominante, que se hospeda na “consciência verbal”.

A ideologia das classes dominantes exerce sobre a filosofia popular uma força política externa, levando os simples a subordinarem-se a essa força hegemônica, limitando o “pensamento original” das massas. De acordo com Portelli (1977):

A ideologia, concepção do mundo da classe dirigente, deve difundir- se por toda a sociedade. Assim, não é homogênea em todos os níveis: a ideologia difundida nas camadas sociais dirigentes é, evidentemente, mais elaborada que seus fragmentos encontrados na cultura popular. Gramsci distingue, pois, diversos graus qualitativos que correspondem a determinadas camadas sociais: na cúpula, a concepção de mundo mais elaborada: a filosofia; ao nível mais baixo, o folclore. Há entre esses dois níveis extremos, o “senso comum” e a religião (p. 24, grifos do autor)

Conforme mencionado, o pensamento original das massas possui como marca principal a fé, decorrente da religiosidade. Na análise gramsciana, a importância dessa religiosidade a partir da análise sociológica, se dá na laicidade. Em outras palavras, é a certeza de que se reveste a ideologia popular com a possibilidade da existência de um mundo diferente e justo.

[...] O elemento mais importante, indubitavelmente, é de caráter não racional: é um elemento de fé. Mas de fé em quem e em quê? Sobretudo no grupo social ao qual pertence, na medida em que este pensa as coisas também difusamente, como ele: o homem do povo pensa que tantos não podem se equivocar tão radicalmente, como o adversário argumentador queria fazer crer; que ele próprio, é verdade, não é capaz de sustentar e desenvolver as suas razões como o adversário faz com as dele, mas que, em seu grupo, existe quem poderia fazer isto, certamente ainda melhor do que o referido adversário; e, de fato, ele se recorda de ter ouvido alguém expor, longa e coerentemente, de maneira a convencê-lo, as razões da sua fé. Ele não se recorda concretamente das razões apresentadas e não saberia repeti-las, mas sabe que elas existem, já que ele as ouviu expor e ficou convencido delas. O fato de ter sido convencido uma vez, de maneira fulminante, é a razão da permanente persistência na convicção, ainda que não saiba mais argumentar. (GRAMSCI, 2014a, p. 109)

Em síntese, para esse intelectual italiano, a ideologia está vinculada às atividades práticas e cotidianas, geradoras de representações interessadas do mundo, e tem na sua composição interna diferentes estratificações, tais como a filosofia, o senso comum e a visão folclórica. Enquanto concepção do mundo, a ideologia se manifesta nas diferentes linguagens humanas, inclusive na arte e no direito.

Segundo Portelli (1977), existe em Gramsci uma ampliação do conceito marxista de ideologia, tendo em vista que ao afirmar que ela está relacionada à concepção de mundo dos indivíduos e das classes sociais, inclui nessa concepção a ciência. Para explicar tal inclusão, utiliza a expressão ideologia científica, que segundo o autor, relaciona-se ao método investigativo que nunca é neutro.

A consequência dessa concepção tão ampla de ideologia é que nela são incluídas todas as atividades do grupo social dirigente, mesmo aquelas que aparecem menos ideológicas, particularmente as ciências. Gramsci declara, com efeito, que mesmo a ciência é parte integrante da superestrutura, que ela forma uma categoria histórica. Analisando a metodologia histórica, Gramsci distingue a “ideologia científica”, isto é, as teorias científicas do método de investigação experimental, que atravessaram numerosas crises. Somente os

dados reais estabelecidos por esse último são independentes da ideologia. O próprio método de investigação não é totalmente independente da superestrutura. Os “principais instrumentos” do progresso científico são de ordem intelectual (e igualmente política), metodológica, e Engels tinha razão aos escrever que os instrumentos intelectuais não surgiram do nada, não são inatos ao homem, e sim adquiridos; desenvolveram-se e desenvolvem-se historicamente. (p.23)

O que se discute neste trabalho, isto é, o seu cerne de interesse, é o que Grisoni e Maggiori (1973) chamam a atenção dos leitores, sobre a existência de um “germe” de cisão, presente no seio da ideologia, localizado no bom senso, mas também presente na visão folclórica, que caso seja problematizado criticamente, poderá se constituir em um potencial revolucionário. Trata-se aí do reconhecimento na teoria gramsciana de uma ideologia específica das classes trabalhadoras.

[...] Mas por tomada de consciência no seio da ideologia também se deve compreender “espírito de cisão” que é, segundo Gramsci, a “aquisição progressiva de consciência da própria personalidade histórica” [...] e que, em si, é um trabalho ideológico complexo cuja primeira condição é o exato conhecimento do campo a despejar do seu elemento de massa humana (ibid). Isto significa, portanto, que existem na ideologia “germes” suficientes, isto é, um material conceptual mediatamente utilizável, que não atinge o “espírito de cisão” – a experiência histórica do proletariado e o seu lugar no seio do modo de produção, ou ainda, o seu “bom senso”, e que, tendo, previamente, sido submetido a um trabalho crítico, pode tornar-se um elemento de conhecimento, e, portanto, de emancipação. (p. 292, grifos dos autores)

A visão folclórica do mundo pode ser traduzida como um dos elementos constitutivos da ideologia popular. O estudo das características dessa “leitura do mundo” representa outra grande contribuição de Antonio Gramsci, uma vez que procura analisar o interior da ideologia e identificar seus aspectos elementares.

Para o autor, a necessária interpenetração dos intelectuais orgânicos na cultura popular precisa realizar-se por meio da compreensão dos diferentes estágios de consciência apresentados, no cotidiano, pelo povo, pois é nessas dimensões que se encontra ancorada a moral popular.

A ação revolucionária, não deve prescindir de um estudo metodológico sobre tais níveis de consciência, vencendo possíveis preconceitos dos intelectuais sobre o tema. A compreensão do mundo, demonstrada de forma mágica ou mística, é transgressora da “concepção oficial” do mundo.

Com efeito, o folclore é uma concepção do mundo e da vida, em grande medida implícita, de determinados estratos (determinados no tempo e no espaço) da sociedade, em oposição as concepções oficiais do mundo [...]. Esta formulação reveste-se de grande importância, pois as classes subalternas – que não efetuaram a sua tomada de consciência – são incapazes de elaborar a sua própria concepção de mundo, isto é, uma filosofia coerente que se possa opor as outras. Ora, o folclore vai desempenhar essa função oposicional; graças a ele, as camadas baixas da pirâmide social vão poder, em parte, resistir à finalidade das filosofias superiores e formular uma crítica grosseira. Por conseguinte, através dele, exprime-se o que poderíamos designar por pré-consciência difusa dos elementos incultos da sociedade, constituída por estratos sobrepostos – sendo cada um deles uma resistência às diferentes filosofias que se sucederam ao longo da história – estabelecendo no decurso da história, acrescidos da justificação de elementos actuais. Daí, a fisionomia desarmônica, arcaica, incoerente, que lhe serve de aparência, e em que tropeçam os sábios. (GRISONI; MAGGIORI, 1973, p. 261)

Na ideologia popular, a visão folclórica, mais do que ideias que revestem de sentido a realidade, constitui-se como prática de vida, embasada pela compreensão do mundo dos sujeitos coletivos, e assume profunda permanência no âmago da cultura popular, uma vez que não nasce casualmente, mas como resposta aos desafios da cotidianidade.

As ideologias são contraditórias e historicamente apresentam paradoxos. Para exemplificar essa compreensão, Gramsci (2010) analisa o papel dos mitos, presentes na visão folclórica popular. Segundo ele, os mitos deveriam criar um conformismo em relação às diferenças sociais, pois ao atribuir a condução da vida

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