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CAPÍTULO 2 – OS SANTOS FORAM CHEGANDO PARA AMPARAR A SANTA E AS

2.8 A Casa Grande e Senzala do Carmo

A Casa Grande do Carmo e sua senzala anexa são os índices materiais mais evidentes do passado de escravidão que liga os atuais moradores do Carmo e seus descendentes de escravos e ex-escravos da antiga Fazenda do Carmo ou Sorocamirim. Por conta dessa história de escravidão, este é um local que ainda assombra os pretos do Carmo.Todavia, a presença dos santos neste local foi de fundamental importância, inclusive para resguardar a memória escravocrata – e assim, os santos são capazes até mesmo de amenizar a dor de um passado marcado por enormes tristeza e sofrimento.

Bem ao lado da Casa Grande reside o senhor Tadeu, com sua esposa e seu neto. Apesar de ter passado grande parte de sua infância no Caetê, um bairro próximo a vila, Tadeu conta que seus antepassados nasceram no Carmo, que sua mãe ajudou na construção da capela da Santa, e que sua avó era uma das relíquias da vila, até o dia em que faleceu, aos cento e cinco anos.

Tadeu sempre trabalhou na roça e durante muitos anos um casal de japoneses foi seu patrão e dono da Casa Grande e das terras ao redor. Segundo alguns moradores do Carmo, os japoneses foram bastante marcantes na história da vila, pois era em suas lavouras de alcachofra que muitos trabalharam desde pequenos e, como acusa Tadeu, por muito pouco dinheiro: naquela época, nós ganhávamos trinta cruzeiros por dia, que hoje equivale a trinta centavos. Ele também conta que, em 2005, a prefeitura comprou desse casal o casarão e o terreno em que se localiza e, desde então, Tadeu passou a ser o caseiro responsável pelas edificações e a residir ao lado da Casa Grande.

Apesar de pertencer à prefeitura da Estância Turística de São Roque, a Casa Grande e o prédio da senzala anexo não são administrados de uma maneira que contemple

os desejos dos moradores do Carmo e, ainda que não represente uma ameaça de fato às fronteiras das terras da vila, a prefeitura tem se mostrado um empecilho para que os moradores possam utilizar seu próprio território, além de não oferecer a manutenção necessária para o casarão histórico, bastante danificado (a senzala estando em ainda piores condições). Tadeu argumenta que é perigoso entrar na Casa Grande, pois o prédio precisa de uma restauração no teto e nas paredes, que estão caindo e, porconta disso, mantém tudo fechado. Além disso, a prefeitura estimularia os moradores a terem uma horta no terreno em torno do edifício, mas fazendo-o sem fornecer os insumos necessários: adubo e materiais para cercar e telar ou sementes. E, quando os moradores do Carmo fizeram a horta naquele espaço por conta própria, a prefeitura interferiu para que o projeto fosse interrompido por estar sendo feito de maneira inadequada, como comentam. Portanto, enquanto a cerca do condomínio e o gado da fazenda Icaraí avança sobre as terras do Carmo, a administração pública do terreno da Casa Grande e da Senzala também acaba contribuindo, em um cenário que já é bastante ruim, para que o território dos moradores seja cada vez menos deles.

Imagem 11: A Casa Grande e Senzala. (Fonte: acervo da pesquisadora)

Fui ao casarão acompanhada por Carlos e D. Helena. O caminho até lá é bastante utilizado pelos moradores para caminhadas, uma atividade física que eles argumentam ser bastante importante. Carlos conta que viu muitas coisas no casarão, mas que não é bom falar sobre assombração de pretos. Ainda assim, relembra:

A quaresma desse ano [2016] foi complicada: a molecada não respeita e abusa das almas, isto não é certo. É importante preservar a história dos pretos, porque a vida deles foi muito sofrida, pode ir lá ver, a senzala é cheia de marcas, de sangue, de dor. E tudo isso faz os espíritos ruins ficarem vagando pelo Carmo

Muitas angústias e sofrimentos despertam a fúria dos lobisomens, da mula sem cabeça e da caipora, entre outros seres não humanos maléficos que habitam os entornos do Carmo. Mas Carlos revela uma vontade de viver ali no casarão, para que seus antepassados possam contar exatamente como era nos tempos dos antigos, e revela que sempre sonha com os pretos.

O local, contudo, não guarda somente memórias ruins. Os moradores contam que, nos tempos de suas mães e de suas avós, as procissões de Nossa Senhora do Carmo e de Nossa Senhora do Rosário seguiam da vila até o casarão, onde, segundo consta, havia um cruzeiro bem em frente. Uma moradora do Carmo explicou à antropóloga Rebeca Ferreira (2011, p. 7) a dinâmica das antigas peregrinações na vila: “Pega a imagem e vai indo para outra casa, a primeira que a gente ia buscar era Nossa Senhora Aparecida, lá no casarão”, o que sugere que esta imagem residia na Casa Grande, de onde saía em procissão, assim como acontecia com os santos que habitavam, antigamente, as casas das famílias do Carmo (e que hoje moram na capela de Nossa Senhora do Carmo). Assim, a relevância deste local associa-se aos antepassados e também à religiosidade atual dos pretos, por ser um local em que a Santa e os santos percorriam junto com os moradores do bairro. D. Clara explica:

A procissão para o casarão era de tamanha importância, inclusive para acalmar as almas sofridas que viveram na época da escravidão, e por outro lado é também uma maneira de cuidar das almas vivas, dessa gente toda da vila. Os pretos de hoje também sofrem com a cerca do condomínio, com o gado, e com as casas espremidas, mas os santos ajudam a dor ficar mais leve. (D. Clara,2016)

Os santos auxiliam os moradores do Carmo a criarem estratégias de resistência e sobrevivência. E a Casa Grande aponta para um sofrimento antigo dos antepassados dos moradores do bairro que ainda persiste, conexão efetuada pela própria D. Clara em seu depoimento: Se outrora foram escravizados e perseguidos, atualmente se veem em situações precárias de emprego e de garantia de existência em seu próprio território, cercado por poderosos interesses contrários. Mas persiste, também, e felizmente, a presença da Santa e dos demais santos junto dessas pessoas. Santos dispostos a se sujar para ajudar na colheita de café, a fornecer proteção contra as ameaças do período da Quaresma, a amenizar as dores da escravidão no passado e as agruras da pobreza e da desigualdade hoje, além deserem capazes de conceder graças específicas para algumas

necessidades de cada família da vila. A vila do Carmo revela, portanto, uma história dos santos junto dos humanos e aponta para a necessidade de pensarmos em um território que é de ambos, pois são habitados, festejados e defendidos por todos eles. Foi em torno desse compartilhamento de vidas, histórias e do território que é assim produzido, por humanos e não humanos divinos, que desenvolvi este capítulo.

Este território pelo qual lutam (como sempre lutaram), hoje, os quilombolas do Carmo, é constituído por uma “geografia sagrada” feita nas e das relações entre os moradores da vila e seus santos e santas de devoção, tendo Nossa Senhora do Carmo como ponto central que agrega a vida religiosa no Carmo, materializada na centralidade, histórica e geográfica, de sua capela. A Santa, seus santos auxiliares, e as pessoas do Carmo, produzem o território que pretendem definir, oficialmente, como território da Comunidade Remanescente de Quilombo do Carmo. Ou, de Nossa Senhora do Carmo, poder-se-ia dizer, destacando o protagonismo desta santa, mulher e mãe, companheira e amiga. É com este protagonismo feminino, especialmente no que toca aos processos de constituição e de luta política em torno do território quilombola, que encaminho o terceiro capítulo e, em seguida, a conclusão destadissertação.

CAPÍTULO 3 - O TERRITÓRIO QUILOMBOLA: SANTA, SANTOS E