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Grupo Tortura Nunca Mais Rio de Janeiro – GTNM/RJ

Grupo Tortura Nunca Mais Rio de Janeiro – GTNM/RJ.

O espaço pesquisado não se definiu por limites geográficos, mas por conexões específicas, relacionamentos particulares, redes de circulação e fluxos de sentido que atravessam estas situações e as vinculam a outros fenômenos mais amplos (FLEISCHER, SCHUCH e FONSECA, 2007).

Nesse sentido, para além da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, que iniciou seus trabalhos em 1996, o trabalho de campo se estendeu para as atividades da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. E foi por intermédio dela que cheguei ao Grupo Tortura Nunca Mais/RJ.

Antes de ir ao GTNM/RJ, tinha pesquisado sobre o histórico da instituição. Entre vários materiais lidos, destaco a dissertação de mestrado “A Condição Inalienável da Dignidade Humana – uma análise sociopolítica do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ”, redigida por Moisés Augusto Gonçalves. Nesse trabalho, o pesquisador cita a defesa da dignidade da pessoa humana como um dos pilares para a fundação do referido grupo.

O GTNM do Rio originou-se no momento em que se realizava pelos meios de comunicação de massa um discurso contra os direitos humanos. Nesse espaço, segundo Cecília Coimbra, observava-se uma intensa movimentação em prol de,

uma competente campanha, principalmente via meios de comunicação de massa, que sutilmente falava do aumento da criminalidade associando-a ao fim da ditadura (...) em especial nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo (...) discursos, pregando a lei e a ordem, foram veiculados num momento de mudança.

Na leitura de Coimbra, a fundação do GTNM/RJ foi necessária porque, naquele contexto, havia se instalado um impasse criado, segundo ela, pelo pacto realizado entre as elites da época em prol do esquecimento forçado pela Lei da Anistia. Segundo ela,

a ditadura brasileira termina apesar de toda pressão popular, que já vem desde os meados dos anos 70- os chamados novos movimentos sociais – apesar das campanhas no início dos anos 80, apesar da participação em comitês e pastorais, em conselhos de saúde e educação que começam a surgir nas periferias das grandes centros urbanos, a passagem do regime para a Nova República foi um pacto. Esses pactos vêm desde o final dos anos 70, quando a gente vê a Lei da Anistia que vigorou. No governo Figueiredo ainda em 78, uma lei é editada, onde profissionais liberais que estejam participando das Três Forças Armadas não podem ser julgados por seus Conselhos Profissionais. Isso já era uma forma de estar resguardando advogados,

117 médicos, psicólogos, que atuaram durante a ditadura , atuando ao lado da repressão. Logo depois vem a Lei da Anistia, extremamente restrita, excludente.

Conforme o entendimento acima apresentado, tal “transição negociada” era sentida naquele momento como resultante do caráter “parcial” e “segregador” da Lei de Anistia e a proteção jurídica aos colaboradores do regime. Na análise documental realizada por Gonçalves (2002), identificava-se nos documentos do Grupo a crítica de que a contestação às arbitrariedades do regime passava por um progressivo “esvaziamento”.

Nesse sentido, era mencionada sempre a necessidade de organizarem-se institucionalmente em torno dessas questões de modo a mantê-las na agenda política do país. Portanto, nesses materiais também é citada como motor para o surgimento do GNTM/RJ a ausência de referências institucionais para a organização e para a procura dos desaparecidos políticos, uma vez que os CBAs tinham deixado de atuar.

É salutar mencionar os fragmentos da entrevista de uma das interlocutoras a Gonçalves (2002). Dª Dolores era membro-fundador do Grupo e tinha atuado nos anos 70 na Comissão de Mães em Defesa dos Direitos Humanos e nos CBAs do Rio de Janeiro e São Paulo. De acordo com a perspectiva por ela apresentada; com a dissolução dos CBAs, ficara uma lacuna. A ausência de uma referência organizativa para os familiares de desaparecidos e ex-presos enfraquecia qualquer tentativa de exigir o direito à verdade e à memória. Resume, dizendo que saia da cena política um movimento como o CBA, que enfrentava diretamente o regime militar, e em seu lugar nada se criou.

A presença da categoria esvaziamento nos discursos analisados pelo historiador leva-nos a reflexão de que havia pontos importantes para os dois grupos ainda não resolvidos com a transição política. A rigor, depois da Lei de Anistia, com o retorno dos exilados e a libertação dos presos políticos, a questão dos mortos e desaparecidos não foi levada `a frente, como mencionou outra interlocutora de Gonçalves (2002).

Neste contexto, com o fim da ditadura e restabelecido o exercício formal das liberdades políticas, o esvaziamento da luta contra o regime provocou o deslocamento de militantes para outros espaços e campos de atuação institucional.

Desse modo, o movimento Tortura Nunca Mais, inicialmente criado no Rio de Janeiro, se apresentava como uma dessas formas encontradas para promover a reorganização das lutas em torno das pautas ainda pendentes desde a Lei da Anistia.

118 A despeito do quadro acima, o episódio da nomeação de José Halfred Filho para o cargo de Secretário de Defesa Civil do estado do Rio de Janeiro foi o fator que desencadeou a formação do grupo. Conforme menciona Coimbra a Gonçalves (2002), o então secretário tinha sido ligado à repressão, atuou como carcereiro do Presídio São Judas Tadeu. Era ele, segundo Cecília, o encarregado das presas políticas. Isso acabou gerando um mal estar entre os familiares e ex-presos políticos.

Por conseguinte, o acontecimento narrado acima desencadeou uma reação imediata dos grupos já envolvidos com a luta política contra a repressão e/ou engajados na busca de familiares vitimados pela ditadura. A certeza de que um membro da repressão ocuparia um cargo de confiança tal cargo mobilizaram vários membros desses diversos grupos que passaram a se reunir com o propósito de se organizar institucionalmente para enfrentar situações como supracitada. Novamente, vale a pena a menção de um trecho da entrevista de Flora, transcrita na dissertação daquele pesquisador. Flora tinha sido militante nos anos 60 e 70, ex-presa política, ela tornara-se a presidente do Grupo entre 1985-1992. Comentando sobre a formação do Grupo, ela sintetiza,

vimos que era importante reunir as pessoas que tinham vivido, sofrido a repressão e que tinham consciência de que não bastava fazer uma denúncia, que a gente podia fazer uma coisa mais sistemática. Começamos a nos reunir e aí nasce o Grupo Tortura Nunca Mais.

Atualmente, o GTNM/RJ contabiliza aproximadamente 100 filiados no Rio de Janeiro. Embora, a princípio, o núcleo fundador do grupo tenham sido os familiares de desaparecidos e ex-presos políticos, hoje ele incorpora também militantes comprometidos com outras causas. Se observarmos a origem social dos membros fundadores e dos atuais, o Grupo aglutina militantes oriundos fundamentalmente dos segmentos médios da população. Além disso, não é incomum nas reuniões de segunda- feira a presença de observadores identificados ou não com a missão do grupo.

Depois desse breve histórico, a descrição de minha entrada no GTNM/RJ lança luz a forma como minhas relações foram se constituindo a partir dessa instituição. Dessa forma, dois meses depois do meu primeiro contato com o grupo por e-mail em que expus minhas pretensões de pesquisa, me reuni com os membros da instituição nos “famosos encontros” das segundas-feiras. Localizada em Botafogo, a sede do GTNM/RJ fica em uma região da cidade do Rio de Janeiro de difícil acesso para quem estava saindo de Niterói. Advertido sobre essa dificuldade por uma das secretárias, cheguei à reunião com duas horas de antecedência.

119 Enquanto esperava, estranhava a calma do lugar, estavam somente eu e dois secretários que, ocupados com os afazeres da profissão, limitaram-se a me indicar uma cadeira para eu me sentar. Agradeci, mas me retirei da sala e comecei a passear pelo ambiente, notei que cada uma das salas recebia o nome de um desaparecido. Eram três salas, em uma delas ficava a secretaria, na segunda o acervo documental do grupo e a terceira era a de reuniões. Nessa última, existiam vários quadros com fotos de desaparecidos, eram retratos em preto e branco com close no rosto. Todos eles apresentavam a mesma estrutura, pareciam-me que tinham sido retirados de algum órgão da ditadura. Minha primeira impressão foi a de que eu estava em um memorial.

Aos poucos, começaram a chegar àqueles que participariam da reunião. Não se tratava somente de familiares de desaparecidos, amigos e ex-militantes, havia a presença de alguns estudantes, de “amigos do grupo GTNM” e de dois jornalistas da revista Carta Capital. Antes de a reunião começar, os jornalistas foram chamados à sala de reuniões pela então presidente Cecília Coimbra para “conversarem”. Passados trinta minutos, todos saíram da sala, Cecília se despediu de cada um, dizendo-lhes que aguardava o material antes da publicação da revista. Promessas reafirmadas, foram embora, apressados.” (Notas do Caderno de Campo: 13/06/2009)61

De modo geral, com o tempo, percebi que as reuniões do grupo GTNM/RJ seguiam um padrão. Antes do encontro, a secretaria era instruída a reorganizar a pauta que seria apresentada a todos momentos depois. Para isso, convidava os presentes a comentarem os motivos da visita à sede do grupo. Aproximadamente, às 19h20, ao chamado dos membros da coordenação, os participantes dispersos na sala de espera são convidados a entrar no recinto usado para a reunião. A presidente Cecília dá as boas- vindas aos participantes, explicando-lhes a finalidade e a importância da reunião do dia. Passa-se aos informes, seguidos pela apresentação dos participantes do dia. Todos devem se identificar e dizer as razões que os levaram até o grupo.

A seguir, apresenta--se a pauta, discutindo-se a prioridade dos tópicos nela estabelecidos. Define-se qual deles terá mais espaço no encontro do dia. Assim, dependendo dos assuntos, a reunião começa sempre com discussões sobre os temas mais urgentes. Definidos os assuntos, as discussões que se seguem são concebidas como ocasiões em que todos podem e devem participar, falando, colocando suas dúvidas, opinando, discordando ou concordando, de modo que as decisões tomadas sejam

120 representativas das opiniões dos participantes e/ou que sejam bem compreendidas por todos em todas as suas implicações. Assim, retomando algumas anotações tomadas no meu primeiro dia no GTNM, percebi que deixara de lado um dado interessante. Antes de cada reunião, todos aqueles que lá estavam esperando eram chamados à sala de reunião pela secretária. Lá, esclareciam-lhe o motivo de ali se encontravam. Atenta, a secretária redigia a pauta da sessão com base naquilo que lhe relatávamos.

Às 19h50, com mais de quarenta minutos de atraso, Cecília começa a chamar todos para a sala de reunião. Depois que os presentes se sentaram, a pauta foi lida por ela, destacando alguns pontos principais que deveriam ser discutidos ainda naquela noite. De antemão, já nos avisou que a reunião se estenderia além do previsto. Em seguida, foram transmitidos os informes, entre eles: o lançamento de dois livros, cujo tema era a ditadura. Eram trabalhos de cunho testemunhal de autores conhecidos pelos membros do grupo. Começa a rodada de apresentação dos “novatos”, cada um que lá estava falou, brevemente, sobre o que motivou a ida ao GTNM.

Entre os presentes, chamou-me a atenção a multiplicidade de temas expostos que iam desde a denúncia de assédio moral sofrido por um bibliotecário da Biblioteca Nacional até o depoimento de um ex-funcionário público, exonerado durante o governo Collor, que tenta explicar as supostas arbitrariedades envolvidas nesse ato do Executivo. Em comum, todos eles solicitavam ao grupo que se posicionasse publicamente, denunciando as injustiças que alegavam sofrer.

Começo a me apresentar, falando sobre os meus objetivos de pesquisa. Comento sobre a minha trajetória acadêmica nas Ciências Sociais e a minha relação com o tema dos Direitos Humanos. Falo sobre o que esperava do GTNM, questiono-os sobre se podiam me ajudar, indicando-me caminhos já que me sentia completamente perdido desde minha a última conversa, em Brasília, com a então presidente da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, Vera Rotta. Percebi um constrangimento no ar. Pensei logo que eu tinha dito algo errado. Era como se eu tivesse cometido alguma gafe grave. Cecília quebrou os segundos de silêncio, que me pareceram minutos, e perguntou à queima roupa o que tinha acontecido naquela reunião com a Vera, o que ela tinha me dito sobre o GTNM/RJ que me deixou tão perdido.

Gaguejei porque se comentasse, literalmente, o que a presidente da Comissão tinha falado, o mal-estar aumentaria. Limitei-me a dizer que ela tinha me recomendado ir aos grupos de São Paulo, da Bahia e não ao do Rio porque, segundo ela, o grupo do

121 Rio tinha se indisposto com o governo federal. E mais se eu estava interessado em pesquisar a relação dos ex-militantes e familiares desaparecidos políticos com o governo, aquele grupo não me forneceria os elementos para a minha pesquisa, porque era visto como muito fechado à pesquisa de qualquer natureza.

As reações foram imediatas. Alguns se diziam indignados com o governo federal que achava que todos os familiares e ex-militantes tinham de acatar o que propunha sem levar em consideração o que eles queriam. Outros se limitaram a balbuciar palavras ininteligíveis. Imediatamente, alguns membros do grupo se propuseram a me auxiliar, falando-me sobre nomes e histórias de amigos, passando-me telefones e endereços. Todavia, Victoria interrompe a discussão, perguntando quem ali poderia falar comigo sobre o que aconteceu. Diz ela:

“acho que o menino nos procurou porque quer nos ouvir, gente. Eu me disponho e você, Júlia? Ivanilda? Isaura? Gente, o Catatau também se dispõe a falar, ele é bem aberto, né. E você, Beth? Está tão calada hoje, não quer ajudar?”

Com expressão de reprovação, Beth responde:

Ah, Victoria, ah, gente, não quero falar nada não. Tô cansada disso tudo, parece que a ditadura não acabou, sempre estou falando, falando. Sabe de uma coisa, vocês vêm aqui, perguntam para gente milhões de coisas, a gente fala, acha que está conversando, quando a gente vê, vocês pegam exatamente os pontos que interessavam a vocês e pronto; dizem o que querem então não precisam da gente. Ah, gente, até parece que vocês não se lembram daquele pessoal do jornal?”

Interrompendo, Ivanilda discorda:

”Beth, falar alivia, no início, eu tinha vergonha de dizer sobre o que aconteceu, eu sentia medo, vergonha, nem sei mais direito o que eu sentia, mas com o tempo, percebi que devia colocar tudo para fora. Se alguém tem que ter vergonha, não somos nós, mas aqueles que retiraram quem amávamos, aqueles que destruíram nossas famílias e quase destruíram nossas vidas.”

“Ivanilda, não é vergonha de falar, é cansaço mesmo. Cansada de explicar, de falar sobre isso, de ficar remoendo o passado, cansada de ficar olhando para trás”, finaliza Beth.

Como de costume, saí mais cedo das reuniões porque receava caminhar pelas ruas escuras onde se localizava o GTNM. Enquanto saía da sede do grupo, lembrava que, havia dois meses, em uma sala contígua à de reuniões, tinha conversado com uma pesquisadora de Serviço Social que estava fazendo uma pesquisa a respeito do Atendimento Clínico oferecido pelo TNM.

122 Lembrei-me dela porque, durante a reunião, um dos presentes mencionou o fato de ter procurado o grupo em busca de atendimento. Comecei a pensar em algo que ela havia me dito. À época, dei pouca atenção. Como nunca mais a vi, não retomamos a conversa. Daquele tempo compartilhado, recordava-me de alguns trechos do que falamos. Depois de nos apresentarmos, lembro-me de ter dito sobre a minha intenção de trabalhar com familiares de desaparecidos no Brasil e na Argentina.

Ao comentar, brevemente, sobre a minha estadia na Argentina, fui cortado por ela. Ansiosa, perguntava-me se, durante o período em que estive em Buenos Aires, eu também havia conhecido as Mães de Maio. Falava com entusiasmo sobre aquelas mulheres que ela achava espetaculares. Acrescentou que muito se dizia sobre elas, mas somente quando estávamos lá, entendíamos quem eram as Mães da Praça de Maio. Podíamos compreender um pouco a dor que elas expressam, silenciosamente, em cada ronda realizada em frente à Casa Rosada. Mal termina a frase, é interrompida pela Cecília que ouvia a conversa. Segundo a ex-presa política, o ato de estar com as madres não garantia a compreensão do sofrimento pelo qual elas passaram. Não era possível falar da angústia de alguém só observando, mas era a partir do que se ouvia sobre a sua dor. Não se tratava de demonstrar piedade (pena, dó), mas empatia.

Finalizou, dizendo que acreditava que era isso o que muitos familiares e ex- presos pretendiam quando foram à Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. Pensavam que, naquele espaço, eles seriam ouvidos. Teriam de volta os corpos dos filhos, irmãos e maridos desparecidos e mortos. Entretanto, nada disso tinha acontecido. Na maior parte do tempo, o que era discutido eram quais documentos os familiares precisavam juntar para entrar com o pedido de indenização. A gente continuou no dia a dia dos trabalhos da Comissão sendo violentado. (Notas do caderno de campo: 23/09/2009).62

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3º. ATO

SOBRE AS FORMAS DE DIZER [E DE SILENCIAR]: A ANISTIA

EM PERSPECTIVA.

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