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Acredito que na descrição dos intercâmbios nas seções anteriores, esses processos de formação de um agrupamento de camponeses e espacialização estão explícitos. Portanto, resta elucidar os mecanismos que me permitiram compreender que esse agrupamento camponês constituiu uma rede como forma de organização social.

Para tanto, se faz necessário compreender rede desde essa perspectiva organizativa. Rede não é um termo recente, mas que atualmente tem sido bastante utilizado devido ao surgimento de diversas redes como forma de organização popular, seja as redes locais, as redes de redes, ou até mesmo redes mundiais. Segundo Mance (1998), as redes se formam a partir da articulação de diversas unidades que estabelecem trocas entre elas no sentido de se fortalecerem conjuntamente. Como forma de organização, essa articulação entre unidades por meio de fluxos possibilita a atuação por meio de ações coletivas, ao identificar uma “causa” que impulsione essa ação conjunta (SCHERER-WARREN, 2006).

Os contornos da organização social desse agrupamento de camponeses foram sendo forjados ao longo dos intercâmbios e atividades da Rede Camponesa de Agroecologia, que definiram como objetivo do grupo resgatar, reconhecer e construir a agroecologia, assim como seus princípios (elencados no quadro abaixo).

Quadro 8 - Princípios da Rede Camponesa de Agroecologia

1 Fomentar a troca de saberes com foco na construção da soberania alimentar;

2 Cultivar todo o necessário para a família a fim de atingir a autossuficiência alimentar;

3 Cultivar árvores e saber utilizá-las;

4 Diversificar e integrar cultivos e criações;

5 Adotar a cobertura verde do solo;

6 Respeitar e valorizar a mulher no âmbito da família e assentamento;

8 Ser autossuficiente na produção do próprio adubo;

9 Não utilizar fogo;

10 Resgatar e valorizar as sementes crioulas.

Um elemento importante para a organicidade deste coletivo foi o estabelecimento de uma coordenação que se reunia mensalmente, composta por quatro camponeses que, juntamente com a equipe de extensionistas e pesquisadores, tinha como função discutir os intercâmbios, avaliar os processos em curso, definir estratégias de atuação, mobilizar os camponeses, organizar e articular as ações da Rede Camponesa de Agroecologia.

A definição dos objetivos, princípios e uma coordenação fortaleceu as ligações ou fluxos já estabelecidos pelos intercâmbios e impulsionou uma organização social em rede, que deu coesão aos agrupamentos antes formados, espessou a relação entre os espaços, tornou-os mais fluidos e produziu nestes transformações de forma e conteúdo (MOREIRA, 2007).

Ao organizarem em rede para construir a agroecologia, os camponeses passaram a realizar uma forma de luta na terra, em disputa e em contraposição à expansão do capitalismo no campo por meio da subordinação camponesa. A rede, constituída a partir da materialidade da unidade camponesa de produção, estabeleceu relações sociais no tempo e no espaço que foram capazes de produzir, territórios-rede, conforme Haesbaert (2004) os denominou. Para nós, produziu o território camponês agroecológico.

A agroecologia rompe com a lógica do capital ao construir processos de autonomia camponesa, que pressupõe a disputa para o uso dos territórios, o que Fernandes (2008b) propõe denominar terceiro território. Essa disputa perpassa pela materialização dos distintos projetos de rumos da sociedade, o projeto político do agronegócio versus o projeto do campesinato.

A realização da agricultura camponesa agroecológica diz respeito à forma de uso da terra, mas, para além disso, diz respeito ao uso do território, ou seja, as relações que se estabelecem naquele território: relações de trabalho familiar, relações de círculos curtos de comercialização (consumidor/produtor), relações de independência de insumos, relações comunitárias e horizontais de aprendizado, de protagonismo camponês, de trocas de agrobiodiversidade, de reciprocidade, etc. Portanto, organizar-se em rede, produzir por meio dela ações que impulsiona a agroecologia e constrói a autonomia camponesa, permitiu a materializar o território camponês agroecológico.

CAPÍTULO 3

ESTRATÉGIAS DE AUTONOMIA CAMPONESA

Este capítulo pretende discutir as estratégias de construção da autonomia camponesa. Para tanto, em primeiro lugar, cabe conceituar essa autonomia. Na literatura sobre campesinato, fala-se muito sobre autonomia, mas o conceito raramente é explicado. Diante disso, dois procedimentos foram adotados: por um lado, entendo que à autonomia contrapõe-se a subordinação. No capítulo 2, a subordinação camponesa foi teorizada; assim, ao recuperar os processos de subordinação, infiro processos de autonomia. Nesse sentido, parte da minha discussão no presente capítulo recupera o que foi dito sobre a subordinação camponesa (ao capital) e elenca como a luta camponesa evoca estratégias de resistência a essa subordinação – estratégias, portanto, que lhes dão, em alguma medida, maior autonomia.

De outra parte, foi utilizada, para traçar os contornos da noção de autonomia camponesa, a reflexão e construção coletiva com os camponeses da Rede. Em trabalho de campo, foi realizado um círculo de cultura sobre autonomia e os resultados dessa discussão foram sistematizados aqui. Essa concepção, como exposta e elucidada abaixo, contém oito eixos que são discutidos não apenas sob a perspectiva dos camponeses, mas em diálogo com alguns autores que se debruçam sobre o tema do campesinato. A ideia é sempre fundamentar os conceitos na realidade camponesa, mas trazer também a reflexão acadêmica para aprofundar o entendimento dessa realidade.

Antes, porém, uma discussão geral sobre a noção de autonomia pode ajudar a nortear a discussão mais específica da autonomia camponesa. Autonomia é entendida em contraposição à heteronomia: enquanto o sujeito autônomo dá a si as leis que regem seu comportamento, o sujeito heterônomo recebe as leis de outras instâncias. Isso se complexifica pelo fato de que nossos desejos, vontades e reflexões são frutos da sociedade na qual estamos inseridos e, portanto, ainda quando acreditamos que estamos agindo de acordo com nossas próprias leis, estas, em última análise, são produtos do meio (CHRISTMAN, 2015).

A questão – filosófica46 – poderia levar-nos longe; importante aqui é ressaltar que a autonomia envolve, ao mesmo tempo, um processo de tomada de consciência e de superação da dominação – explícita ou implícita – seja de um indivíduo ou de uma coletividade. Finalmente,

46 Destaco e agradeço as contribuições dadas por Luís Márcio Nogueira Fontes, professor e filósofo, que prestou

esse processo de tomada de consciência se forja, em grande medida, na luta, no fazer-se classe (CHRISTMAN, 2015; IASI, 2009).

Defendo a ideia de que a autonomia camponesa é uma forma de luta na terra, ou seja, é uma estratégia do campesinato de resistir; mas, mais do que isso, é um modo de ampliar o controle de seus territórios, diminuindo os processos de subordinação. Outro pressuposto é que é impossível pensar em autonomia absoluta ou em autonomia plena no contexto do sistema hegemônico do capitalismo. Portanto, autonomia será sempre relativa, e, ainda assim, a entendo como processual.

Autonomia diz respeito à luta dos povos contra a sujeição, subordinação ou integração ao capital. Em outras palavras, é o direito de viver de acordo com suas normas, formas de organização de suas sociedades em seus territórios, de tomada de decisões. Trata-se, assim, da luta pelo direito de permanência das suas lógicas e culturas (construídas milenarmente), pois os camponeses possuem outro modo de vida, outra lógica de sociedade do que a imposta pelo capital.

Almeida (2000) entende que a autonomia está no centro das lutas do campesinato contra o processo de heteronomização imposto pelo sistema capitalista, ou seja, contra o processo que diminui a capacidade de autorregulação do modo de vida e produção camponesa criado pela integração entre o capital financeiro e industrial à agricultura.

Para avançarmos no entendimento da autonomia camponesa e suas dimensões, recupero as formas de subordinação camponesa para fazermos o exercício teórico de compreender as formas e estratégias de construção/ampliação da autonomia.

Martins (1981), Bartra Vergés (2011) e Oliveira (2004) nos mostram que os processos de subordinação do campesinato ao capital se dão a partir de: a) a subordinação do trabalho camponês pelo capital, seja ao vender, ainda que temporariamente, a força de trabalho, e também pela b) subordinação no mercado de produtos, quando o camponês vende parte da sua produção para comprar outras mercadorias de que necessita; e, por fim, o campesinato se subordina c) quando acessa o mercado de dinheiro por meio dos créditos.

Desse modo, construo, com base nos processos de subordinação elucidados por esses autores, a interpretação de três dimensões da luta por autonomia: a) autonomia sobre o trabalho camponês; b) autonomia em relação ao mercado de produtos; c) autonomia em relação ao mercado financeiro.

A quarta dimensão da autonomia camponesa pode ser pensada a partir de Ploeg (2008), que compreende que a luta contínua por autonomia é uma condição camponesa – aliás, é uma

condição básica de todo produtor simples de mercadorias. Contudo, o diferencial do campesinato é que a autonomia é criada por meio da coprodução entre o ser humano e a natureza. Assim, infiro outra dimensão à autonomia camponesa, a dimensão produtiva, a forma de realizar a agricultura camponesa.

Os camponeses da Rede Camponesa de Agroecologia (2016) definiram autonomia como:

É produzir tudo que gosta e deseja com a família, tirar nosso sustento em parceria com a natureza, ter controle de seu próprio tempo, do próprio trabalho e da produção. Para isso é necessário ter acesso à terra e aos bens naturais, e ter o conhecimento para produzir na terra com diversidade. (informação verbal)47.

Aliado ao conceito de autonomia construído coletivamente, os camponeses da Rede Camponesa de Agroecologia ainda apontaram as dimensões que compreendem da luta por autonomia, reunidas na figura abaixo.

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