• Nenhum resultado encontrado

Guilhermina, uma criança ingênua ou sentimental?

3. Pressupostos teóricos: Classicismo e Romantismo, uma batalha no ar

4.2. Guilhermina, uma criança ingênua ou sentimental?

Assim como uma criança é, na verdade, algo que quer se tornar um homem, assim também o poema é somente algo natural que quer se tornar uma obra de arte. (SCHLEGEL, 1997, p. 23).

Guilhermina alegoriza alguns dos ideais de Schlegel. Para compor essa personagem o autor de Lucinde parece ter encontrado inspiração nos escritos de Schiller, mais precisamente em seu texto Poesia Ingênua Sentimental. Neste ensaio, Schiller divide os poetas em duas categorias: os ingênuos e os sentimentais. Os ingênuos são os poetas clássicos da antiguidade, indivíduos não cindidos capazes de sentir e pensar em total harmonia com a natureza. Já os sentimentais buscam a conciliação entre arte e natureza perdida pelas sociedades modernas; nessa categoria estão os poetas românticos.

A atividade primordial que distingue o ingênuo do sentimental está no ato reflexivo do poeta. O escritor moderno deve reconduzir o ser humano à natureza por meio da razão; a partir de sua atividade intelectual e artística ele pode desenvolver as potencialidades presentes na criança. Portanto o termo “sentimental” está ligado à reflexividade do poeta, muito distante do poeta sentimental e impetuoso do Sturm und Drang.53 Para Suzuki, “O ingênuo e o sentimental, [...], distinguem-se pelo fato de o primeiro referir-se a uma maneira natural ou instintiva de criar, ao passo que o segundo se destaca por um procedimento eminentemente reflexivo.” (1991, p.31).

Diante dessa breve exposição sobre o ingênuo e o sentimental podemos fazer uma analogia entre a pequena Guilhermina e o período das artes definido por Schiller como a época da “poesia ingênua”.

53 Sobre isso Márcio Suzuki declara: “Para Schliller, é indispensável que se marque rigorosamente o limite

entre o universo poético (certamente muito mais amplo) que pretende descrever com o adjetivo sentimental e a Empfindsamkeit histórica, adstrita na Alemanha `a época do Sturm und Drang , movimento do qual ele fora, ao lado de Goethe, um dos expoentes. Entende-se nesse sentido, sua condenação daquele “mal da

sentimentalidade e dos tipos choramingas que, pela má interpretação ou arremedo de algumas obras

excelentes, começou a predominar há dezoito anos na Alemanha.”

“Portanto, ao optar pelo vocábulo sentimentalisch, Schiller parece fazer uma escolha consciente, pondo seu conceito ao abrigo de confusões com o sentimentalismo dominante sobretudo na época de sua juventude.” (SUZUKI,1991, p.25)

Schiller descreve a criança como um elemento sagrado que concentra em si elementos de conformidade com a natureza:

Por isso, o sentimento com que nos apegamos à natureza é tão aparentado àquele com que lastimamos a época passada da infância e da inocência infantil. Nossa infância é a única natureza intacta que ainda encontramos na humanidade cultivada; não espanta, por isso, que todo vestígio da natureza fora de nós leve-nos de volta a nossa infância.” (SCHILLER, 1991, p. 55) A maneira de agir inocente e intuitiva da criança figurativiza a época em que não havia ruptura entre sujeito e objeto, entre arte e natureza. A proximidade e sintonia da criança com o mundo natural produz uma relação íntima e una com o mundo: “Em seu amor pelo objeto parece não fazer nenhuma diferença entre o que é por si mesmo e o que é pela arte e vontade humana” (SCHILLER, 1991, p. 55)

Vejamos como o texto figurativiza na personagem Guilhermina essa afirmação de Schiller, isto é, a relação de harmonia e de identidade entre natureza/arte, sujeito/objeto :

Para a imaginação desta criança [Guilhermina], na Natureza tudo tem vida e alma; e ainda me lembro frequentemente, sempre com prazer, na

atitude que ela tomou quando pela primeira vez viu e apalpou uma boneca. Tinha então um pouco mais de um ano. Um sorriso celestial floriu naquele rosto lindo e pequenino,e logo frutificou num beijo cordial que ela depôs nos lábios vermelhos da boneca de madeira pintada. (SCHLEGEL, 1979, p. 29, grifo nosso).54

Entre Guilhermina e o mundo natural não há espaço para conflitos e inquietações, essa criança não se sente um ser no mundo, mas sim com o mundo; a identificação dela com o não-Eu é plena. As pequenas características de Guilhermina descritas pelo narrador

54 “Für die ihrige ist alles in der Natur belebt und beseelt; und ich erinnere mich noch oft mit Vergnügen

daran, wie sie in einem Alter von nicht viel mehr als einem Jahre zum erstenmal eine Puppe sah und fühlte. Ein himmlisches Lächeln blühte auf ihrem kleinen Gesichte und sie drückte gleich einen herzlichen Kuss auf die gefärbten Lippen von Holz.” (SCHLEGEL, 2005, p. 21-22).

parecem esboçar os conceitos da poesia ingênua. Mas, ao avançarmos com um pouco mais de minúcia na narrativa, veremos que a análise é menos tranquila do que se apresenta.

Ao que me parece, a pequena Guilhermina tem muito maior inclinação para a poesia do que para a filosofia; assim é que ela prefere viajar de carro, em grande velocidade, pois só em último caso é que se resigna andar a pé. As duras dissonâncias nórdicas da nossa língua materna tão transformadas, pelos lábios da criança, em suavidade e melodias que lembram os idiomas italiano e índu. Ama em particular as rimas tudo quanto é belo; não se cansa de contar e cantar incessantemente, uns após outros, todos os versos que prefere, fomando assim como que uma antologia clássica dos seus pequenos prazeres. A poesia serve-lhe assim para ir entrelaçando as imagens floridas de todas as coisas, com as quais forma uma leve coroa; assim é que Guilhermina vai denominando e harmonizando com as suas rimas as palavras que designam terras, épocas, acontecimentos, pessoas alimentos e brinquedos, sem seguimento racional, numa confusão

romântica;” [...] (SCHLEGEL, 1979, p.28, grifo nosso).55

Aqui, a alegoria construída por Schlegel promove uma dinâmica semântica: Guilhermina não é mais apenas uma analogia da poesia ingênua, ela representa a passagem do período natural (clássico) para o período sentimental (romântico). O poeta sentimental tem como objetivo retomar a natureza perdida não de forma intuiva e ingênua, mas de maneira consciente e reflexiva: “Em todo bom poema, tudo tem que ser intenção e tudo tem de ser instinto. Com isso se torna ideal.”(SCHLEGEL, 1997, p. 23). A unidade e a harmonia de outrora, natural e finita, com os modernos passa a ser artificial e infinita. As cisões do homem moderno só podem alcançar a unidade perdida por intermédio do

55 “Zur Poesie glaube ich hat sie weit mehr Neigung als zur Philosophie; so lässt sie sich auch lieber fahren

und reiset nur im Nothfall zu Fuss. Die harten Übelklänge unsrer nordischen Muttersprache verschmelzen auf ihrer Zunge in den weichen und süssen Wohllaut der Italiänischen und Indischen Mundart. Reime liebt sie besonders, wie alles Schöne; sie kann oft gar nicht müde werden, alle ihre Lieblingsbilder, gleichsam eine klassische Auswahl ihrer kleinen Genüsse, sich selbst unaufhörlich nach einander zu sagen und zu singen. Die Blüthen aller Dinge jeglicher Art flicht Poesie in einen leichten Kranz und so nennt und reimt auch

Wilhelmine Gegenden, Zeiten, Begebenheiten. Personen, Spielwerke und Speisen, alles durch einander in romantischer Verwirrung, so viel Worte so viel Bilder”. (SCHLEGEL, 2005, p. 21).

construto poético, portanto, de forma artificial. A alegoria e o caráter de inacabado da obra fornecem a infinitude necessária para a exposição da arte sentimental: “À medida que a natureza foi, pouco a pouco, desaparecendo da vida humana como experiência e como sujeito (agente e paciente), nós a vemos assomar no poético como Idéia e como objeto.” (SCHILLER, 1991, p. 56, grifos do autor).

Guilhermina não é resultado de uma poesia intuitiva; é produto de um labor artístico, representa a busca de um ideal, a unidade perdida. Com a aparência ingênua e a essência sentimental de Guilhermina, Schlegel consegue mostrar o caminho que o poeta romântico deve seguir: resgatar os objetos naturais por meio de uma ingenuidade consciente (artificial).