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2 UM SOLDADO DA REPÚBLICA PARTE PARA O FRONT DE

3.4 Gumplowicz: uma leitura forçada

Ludwig Gumplowicz (1838-1909) é uma das referências teóricas mais explícitas n’Os Sertões. Citado logo na Nota Preliminar, em que é mencionado o seu “lance genial” de ter percebido “no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes” a “‘força motriz da história’” (CUNHA, 1998, p. 14), ele também será lembrado na passagem em que Euclides tenta explicar a originalidade do mestiço sertanejo, mostrando que esses indivíduos viviam em sua índole interior o combate que era a força motriz da história, a luta da raça forte para esmagar a raça mais fraca. No entanto, o autor pondera que “O grande professor de Graz não a considerou sob esse aspecto” (Idem, Idem, p.102), e conclui que o mestiço é um elemento perturbador da lei geral.

No epistolário Euclidiano, também ficou registrada a sua admiração pelo professor polonês. Em carta a Araripe Junior, escrita em plena efervescência causada pela publicação de Os Sertões, Euclides da Cunha fez questão de frisar: “Sou um discípulo de Gumplowicz, aparada todas as arestas duras do ferocíssimo gênio saxônico. E admitindo com ele a expansão irresistível do círculo singenético dos povos...” (CUNHA, 1997, p. 151)67. Mais de um ano depois, escrevendo a Coelho Neto, fala da sua reclusão na Ilha de Guarujá e do conforto que a companhia dos seus autores favoritos proporcionava, “de sorte que passo a melhor das vidas às voltas com o gárulo H. Heine ou com o Gumplowicz terrivelmente sorumbático” (Idem, p. 218) 68.

Gumplowicz nasceu na Cracóvia em 1838. Na época, uma república independente, hoje parte da Polônia. Advogado, também foi professor na área de direito administrativo e constitucional da Universidade de Graz na Áustria, onde morreu no mesmo ano do autor de Os Sertões. O seu livro mais conhecido é Rassenkampf (A luta de raças), publicado originalmente em alemão no ano de 1883, e traduzido para o francês em 1893, a língua na qual, provavelmente, Euclides da Cunha teve acesso a ele. Nessa obra, há uma teoria geral sobre a dinâmica da sociedade, baseada em leis naturais, que o autor supõe válidas para toda a história humana, conhecida até a época em que escreveu o livro.

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Lorena, 27 de fevereiro de 1903.

Defensor do poligenismo, Gumplowicz, no entanto, não hierarquiza as raças a partir da sua suposta origem diferenciada, “assim, a diferença no aspecto das raças humanas não significa alguma desigualdade potencial” (COSTA LIMA, 2000, p. 41). De acordo o sociólogo polonês, o que diferenciava as diversas comunidades humanas era a forma de organização do poder, que se dava pela subordinação dos grupos vencidos, o que resultava na fusão ou superposição com os outros grupos, da mesma ou de uma etnia diferenciada.

A tese básica do autor polonês é a de que a luta de raças exerce o papel de força motriz da história. Para ele, “La luttes des race pour la domination, pour Le pouvoir, la lutte sous touts se formes, sou une forme avouée e violente, ou latente et paisible, est done príncipe propulseur propirment dit, la force motrice da l’histoire” (GUMPLOWICZ, 1883, p. 217).

Luiz Costa Lima, pesquisador atento às fontes de onde foram extraídos os fundamentos teóricos de Os Sertões, afirma, referindo-se a Gumplowicz, que: “Euclides não soube perceber a singularidade da sua posição, a qual, entretanto, teria sido capaz de provocar, por seu antibiologismo, a emersão de um prisma completamente diverso da história particular da guerra e geral do país” (COSTA e LIMA, 1997, p. 31). E outro momento, ele afirma de forma direta: “Euclides não o entendeu” (COSTA LIMA, 2000, p. 43).

Costa Lima também identificou no sociólogo polonês uma noção de raça com um sentido mais sociocultural, mais próxima da ideia de nacionalidade e de etnia, do que de uma definição de raça construída a partir de critérios biológicos. Portanto, uma visão da história em que os indivíduos estariam presos a sua condição biológica e racial não encontraria fundamentos nas elaborações do sociólogo polonês.

A luta pela subordinação de elementos heterogêneos implica uma relação de dependência ou de subordinação. Dessa forma, Costa Lima conclui que:

“a aliança ou a hostilidade entre os grupos é definida em termos políticos e sociais, em função do poder a manter, a expandir ou a conquistar. Ou ainda, conforme escreve o autor, em decorrência da divisão do trabalho e não de motivos biológicos” (Idem, p. 42).

Para Gumplowicz, a noção de raça é compreendida como produto de processos históricos, nos quais os elementos históricos e culturais, ou os “fatores intelectuais” são mais importantes. No entanto, ele não deixa de atribuir à unidade de sangue o papel de “cimento que mantém esta unidade”. Para o professor de Graz:

La notion de race, aujourd’hui, ne peut jamais et nulle parte être simplement une notion de sience naturelle, dans le sens etroite du mot; elle n’est plus, partout, qu’une notion historique. La race n’est pas le produit d’un simple processus naturel dans signification que ce mot a cue jusqu’a present; mais elle est un produit du processus historique qui est, du reste, lui aussi, un processus naturel. La race est une unité que, au cours de l’histoire, s’est produite dans le développement social et par lui. Ses facteur initiaux, no le verrons, sonr intellectual: la langue, la religion, la coulume, le droit, la civilizacion, etc. Ce n’est que plus tard qu’apparit Le facteur physique: l’unité du sang. Celui-ci bien plus puissant: il este Le ciment qui maintient cette unité (GLUMPOWICZ, 1893, p. 192).

Todavia, mais adiante, ele esclarecerá que a unidade de sangue não produz modificações sensíveis no espírito. Conforme aponta Costa Lima,

“Por consequência, o próprio privilégio que, posteriormente no tempo, seria concedido ao sangue haveria de ser entendido dentro de coordenadas sociais e não biológicas. A comunidade de sangue não seria naturalmente estabelecida porque não passaria doutro nome para a comunidade de interesses, efetivos e ou potenciais” (COSTA LIMA 1997, p. 29).

A leitura de Rassenkampf demonstra que Euclides da Cunha, ao construir as referências intelectuais a partir das quais interpretou a Guerra de Canudos, não só recorreu a autores deterministas, como leu esses autores, enfatizando o determinismo biológico, como é exemplar o caso da sua apropriação do sociólogo polonês. Nessa fundamentação, está a forma como Euclides via o destino da nação que estava sendo decidido em Canudos. Para Costa Lima (1997), subestimar a importância desses elementos deterministas em Euclides da Cunha seria diminuir o escopo d’Os Sertões, transformando-o em um mero relato sobre a Guerra, tirando o seu caráter de uma reflexão sobra à nacionalidade, e a denúncia da civilização de empréstimo que se formava no litoral.

4 A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO DE RAÇA