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1 Victor Hugo e sua produção literária

1.5 L’homme qui rit : o duplo e a convivência do grotesco e do sublime

1.5.1 Gwynplaine e a deformação artificial do corpo

Após os dois capítulos introdutórios, o primeiro livro da primeira parte nos apresenta a personagem principal, Gwynplaine, que surge no meio da escuridão, sendo apenas uma sombra menor entre outras maiores, sem que se pudesse distinguir a princípio se era um anão ou uma criança.

As sombras chegam trazidas por uma embarcação que parte deixando Gwynplaine para trás. Ao ver-se sozinha, nem a criança chamou pelos homens, nem eles se voltaram para buscá-la.

No início desse capítulo, intitulado “Solitude”, até mesmo a construção do texto parece mostrar o estado solitário da criança. Os parágrafos utilizados para a descrição da atitude e do sentimento da criança são construídos, em sua grande maioria, por períodos simples ou, quando muito, por orações justapostas.

Novamente forma e conteúdo aparecem integrados para mostrar o que Gwynplaine representaria naquele grupo que acabava de abandoná-lo. « Il leur était juxtaposé; rien de plus »86 (HQR, I, p.97).

Num deserto, entre profundezas de onde se via subir a noite e profundezas de onde se ouvia o estrondo das ondas, correndo riscos de escorregar, a criança deveria subir a falésia. « Gravir est de l‟homme, grimper est de la bête; il gravissait et grimpait »87 (HQR, I, p.98). Se

no início do romance voltamos nossa atenção para as características humanas e animalescas de Ursus e Homo, encontramos agora nessa criança a mistura do homem com o animal. Finalmente ela conseguiu subir a falésia e sair do precipício em que fora deixada.

É curiosa também a imagem criada para ilustrar o “cair da noite”, que na obra de Hugo nos é apresentada com o “subir da noite”. « On a tort de dire la nuit tombe; on devrait dire la nuit monte; car c‟est de la terre que vient l‟obscurité. Il faisait déjà nuit au bas de la falaise; il faisait encore jour en haut »88 (HQR, I, p.86).

Ao dizer que a obscuridade vem da terra, do baixo, o narrador parece convidar implicitamente a refletir sobre essa constatação. Saindo do contexto em que ela foi utilizada, parece indicar que muito do que pensamos vir do alto, como uma imposição a ser aceita sem

86 “Ele lhes era justaposto, nada mais”.

87“Escalar é do homem, galgar é da besta; ele escalava e galgava”.

88“Estamos errados em dizer que a noite cai; deveríamos dizer que a noite sobe; pois é da terra que vem a

possibilidade de discussão, como um acaso, vem na verdade do baixo, das próprias pessoas e são resultados das ações humanas.

Dessa forma, somos duplamente confrontados com a imagem do alto e do baixo, primeiramente, com o sair do precipício para subir a falésia e, em seguida, com a atenção que é dada aos vocábulos “cair” e “subir” para caracterizar o anoitecer.

Quanto à origem da nossa pequena personagem, uma lei que a princípio fora criada para proteger as crianças nos é apresentada como possível causa para seu abandono. Os adultos que acompanhavam as crianças deveriam provar que eram seus pais para eliminar qualquer suspeita de que pudessem ser comerciantes. A justiça era tão severa para quem roubava crianças que até mesmo os pais naturais tinham dificuldade de comprovar a legitimidade de seus filhos. Como resultado, houve um súbito aumento no número de menores abandonados.

A criança tinha uma única pequena noção do que acontecia. « On l‟avait amené là et laissé là. On et là, ces deux énigmes représentaient toute sa destinée: on était le genre humain ; là était l‟univers »89 (HQR, I, p.104, grifo do autor). Esses dois pronomes

indefinidos ganham uma amplitude ainda mais vaga ao representarem toda a existência na vida desta criança abandonada pelos homens na vastidão do mundo.

Sozinha, confrontou-se com as mais duras realidades que lhe eram apresentadas de forma nua e crua, como observamos no início de sua caminhada em que se depara com uma coisa que já havia sido um ser humano. Toda a natureza contribui para aumentar a silhueta que tinha diante de si.

Cette masse passive obéissait aux mouvements diffus des étendues; elle avait on ne sait quoi de panique; l‟horreur qui disproportionne les objets lui ôtat presque la dimension en lui laissant le contour ; […] il y avait de la nuit dessus et de la nuit dedans ; cela était en proie au grandissement sépulcral […]90 (HQR, I, p.106).

A descrição do cadáver proporciona uma visão do horrível, ressaltada pela informação de que o espectro havia perdido suas proporções naturais. O horror agora preenchia todo o espaço, a noite contribuía para isso, pois ela estava por toda a parte: em cima, mostrando que terminara de subir, e estranhamente dentro, aumentando a ideia de não caber em si e ter de sair por algum outro lugar.

89“Alguém o havia levado lá e deixado lá. Alguém e lá, estes dois enigmas representavam todo seu destino:

alguém era o gênero humano; lá era o universo”.

90“Esta massa passiva obedecia aos movimentos difusos das extensões; ela tinha não sei o quê de pânico; o

horror que desproporciona os objetos lhe tirou quase a dimensão, deixando-lhe o contorno; […] havia noite em cima e noite dentro; isso torturava o crescimento sepulcral”.

Constrói-se uma fúnebre visão do não existir, mas continuar presente, persistir, ser um resto.

C‟était ce qui n‟est plus.

Être un reste […] Cet être, - était-ce un être ? – ce témoin noir, était un reste, et un reste terrible. Reste de quoi ? De la nature d‟abord, de la société ensuite. Zéro et total (HQR, I, p.106)91.

Na descrição da desafortunada personagem, percebemos que nem mesmo o título de “ser” lhe parecia pertencer. Todavia, ao mesmo tempo em que não passava de zero, de resto, totalizava a nulidade.

A morte aparecia nua, sem o véu e o pudor que deveria apresentar para se cobrir. Os detalhes da decomposição do corpo aparecem enfatizados com a personificação da morte, que, tendo trabalhado fora de seu laboratório, estava, totalmente exposta. A detalhada descrição do cadáver provoca cada vez mais desconforto e horror. « Il dénonçait la loi d‟en bas à la loi d‟en haut. Mis là par l‟homme, il atendait Dieu »92 (HQR, I, p.108).

Essa constatação parece mostrar a importância do cadáver, que ligava a lei do alto à do baixo, de forma que, ao ser abandonado por um, restava à pobre criatura esperar a justiça que viria do outro.

Mesmo querendo se afastar, a criança acabava se aproximando mais do cadáver, ao que o narrador chamou de “atrações do abismo”. « Il monta, tout en ayant envie de descendre, et approcha, tout en ayant envie de reculer »93 (HQR, I, p.109). Ela não podia controlar suas vontades, obedecia a uma força maior.

Observando atentamente o corpo, percebe-se que ele estava deformado, entretanto os dentes humanos haviam conservado o riso e a ausência dos olhos impedia que toda a cabeça do morto olhasse. Tudo contribuía para aumentar a imagem do horror.

Diante do terrível, a criança tornava-se ela mesma terrível, estava perdendo a consciência ante o torpor que a ganhava. O vento fez o espectro começar a se mexer, tomando uma atitude oblíqua e, com a chegada de um bando de corvos, o fantasma se removeu ainda mais. Houve um longo combate entre as aves, que se espantavam com os movimentos do cadáver, mas voltavam para atacá-lo. A morte parecia estar viva dentro do corpo já falecido, que ainda demonstrava lutar para que sua decomposição fosse natural e não vinda do exterior – representada pelos corvos.

91 “Era o que não é mais. / Ser um resto […] Este ser, - era um ser? – este testemunho negro, era um resto, e um

resto terrível. Resto de quê? Da natureza primeiramente, da sociedade em seguida. Zero e total”.

92 “Ele denunciava a lei de baixo à lei de cima. Colocado lá pelo homem, ele esperava Deus”. 93 “Ele subiu, tendo vontade de descer, e aproximou, tendo vontade de recuar”.

Finalmente a criança consegue sair daquele local. Em um primeiro momento, correndo, mas, depois de um instante, segue o caminho andando para descer a falésia. Essa mudança poderia corresponder ao amadurecimento desse ser que se dá conta de que está sozinho e terá de enfrentar as dificuldades do caminho para sobreviver. Não há escapatória, não há rotas para fuga, é preciso continuar.

Temos, portanto, nos capítulos desse primeiro livro a longa descrição da trajetória de Gwynplaine que sofreu grandes injustiças em sua infância e que, sem parecer compreender a razão desses atos de crueldade que precisou suportar, encontra em sua caminhada solitária as dificuldades da vida representadas pelo abandono, pelo caminho tortuoso e pelo confronto com a morte.

O segundo livro que compõe L’homme qui rit inicia-se com uma tenebrosa tempestade que se anuncia em alto-mar, desamparando o mesmo navio que havia abandonado a criança da primeira parte do romance. A força da natureza destrói e condena, vingando-se dos que abandonaram nossa pequena personagem, pois nada resta daquelas pessoas que tanto sofrimento causaram a Gwynplaine.

A noite, que já havia aparecido na descrição do cadáver para preencher todo o vazio com sua ausência, reaparece agora em contraste com as trevas. « Dans la nuit il y a l‟absolu; il y a le multiple dans les ténèbres. La grammaire, cette logique, n‟admet pas de singulier pour les ténèbres. La nuit est une, les ténèbres sont plusieurs »94 (HQR, I, p.155). Nessas considerações, percebe-se a relevância da natureza, grande espelho para a língua e, por que não, para a arte.