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CAPÍTULO II – O FOGO E A ESPADA

2.1.4. Hécate, a deusa de três faces

Mário Botas apenas tomou conhecimento de Cavaleiro Andante (a obra que completa a Tetralogia Lusitana de Almeida Faria) depois de ter desenhado a capa que ilustra A Paixão, por este motivo o pintor imaginou uma representação pictórica que visava os três romances como um todo. Como o próprio afirmou numa entrevista a Almeida Faria publicada em 1983: «Um dia, em que desenhei as cabeças de três mulheres, pareceu-me haver encontrado uma forma de leitura visual para o conjunto dos três romances. Essa tríade de mulheres diferentes que se olham entre si, personificara para os gregos a Noite sob a forma de Hécate40, una e tripartida (…)41» Significativamente, Mário Botas distribuiu também as figuras por três níveis distintos de composição.

Em primeiro lugar, as três mulheres representam o ciclo natural da vida do ser humano: juventude, maturidade e velhice. De seguida, tal como no desenrolar do romance de Almeida Faria, assistimos à evolução de um ciclo solar: manhã, tarde e noite. No centro do quadro reconhecemos as cores da terra, do ar e do fogo, que definem os grandes temas da narrativa.

40 Entre muitas divindades gregas consideradas menores encontra-se «Hécate, vinda da Cária, a deusa

presente a todos os sacrifícios e a todos os atos, protetora das artes mágicas, que em parte irá confundir-se com Perséfone e em parte com Ártemis.» (Pereira, 2012: p. 338)

41 Faria, Almeida (1983) “A minha pintura assume o descuidado rigor de um diário ou de uma confissão”,

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Figura 2.1

Capa de A Paixão

Na capa de A Paixão coexistem as personagens que correspondem, certamente, às (…) tristes mulheres de sexta-feira santa que perpassam ao longo destas páginas; insisto em que só delas vale a pena falar e da revolta, dos prefácios a cada madrugada… (Faria, 2013: pp. 217 e 218)

À esquerda, de olhos fechados e tez muito suave, a personagem mais jovem olha para o interior de si própria, como quem sonha com um amanhã de primaveras ditosas. A postura altiva, mas serena, revela absoluta confiança no futuro. A luminosidade que lhe banha a face é tépida, semelhante à luz da alvorada. Se nos fosse possível identificar nela uma personagem do romance diríamos que era Arminda.

À direita, no canto superior, surge uma mulher madura de olhar vago e desiludido. O desencanto que perpassa nos seus olhos reflete alguma amargura e o mesmo insucesso que acompanha a existência de Marina. A cor esmaecida da pele e o cabelo escuro acentuam o tom inexpressivo da personagem.

As duas figuras representadas à direita estão separadas pela noite: «eram mulheres que de perfil filtravam, ocultando, a luz que vai dar vida.42» Na parte inferior da

ilustração, uma mulher de tronco nu, flácido e enrugado, mostra-nos alguém diminuído na sua dignidade. Uma vez mais, o tom da pele revela a personalidade de uma mulher desditosa, o ar esverdeado e doentio contribui para identificar a mãe sem cio: Estela.

42 Faria, Almeida (1983) “A minha pintura assume o descuidado rigor de um diário ou de uma confissão”,

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A descrição do desenho de A Paixão que Mário Botas fez numa das entrevistas- confissões que deu a Almeida Faria contém um pequeno lapso, também aplicável a

Hécate, um outro quadro seu muito semelhante: «das três mulheres, nem todas “se olham

entre si”, até porque em ambos há uma mulher de olhos fechados. Talvez ela só não olhe para não se ver, talvez receie reconhecer-se nos olhos de quem a vê. Talvez receie que lhe aconteça o que a Narciso aconteceu. Ou talvez veja mais assim, por ver para dentro; talvez, como o pintor, virando-se para si veja melhor as obras que já existiam dentro dele.43»

Sempre intimamente ligado ao mundo das palavras, Mário Botas ilustrou inúmeras obras de escritores, principalmente poetas. Foi, ele próprio, autor de poemas e de textos surrealistas carregados de um inegável brilhantismo, alguns deles publicados em O Terceiro Livro de Narciso, de onde destacamos este em que o pintor-poeta agradece a inspiração que recebeu de Jorge Luis Borges:

Possuir é renunciar: o homem que escolhe um Deus abrasa os outros Deuses e os outros homens na cólera do seu esquecimento. Se a mim mesmo digo quem sou, sempre a mim mesmo me limito, pois haveria, embora noutra língua, noutros planos, algo de meu que não foi dito nem ouvido.

Na acutilância das estrelas a Lua se perde, porque única, o Céu se ganha porque unificador.

Amar uma ausência é um capricho da memória, um espaldar alto onde encostamos a cabeça para sonhar em vão, imanência do olhar gerando o sonho de ter sonhos, a substância do Divino que humanamente nos atravessa.

(Botas, 1982: poema 4)

Mário Botas retratou de forma muito peculiar escritores da sua predileção (Kafka, Baudelaire, Tristan Corbière, Mário de Sá-Carneiro, Pessoa, Camões); inspirou-se em peças de teatro e em obras musicais (Odisseia, O Horla, Frei Luís de Sousa), desenhando- as de forma livre e completamente autónoma em relação aos textos originais. É ineludível que «a imaginação verbal tem uma presença intensa na obra do pintor, que se considerava, em primeiro lugar, um desenhador, não sendo exagerado qualificar a maioria destes desenhos-aguarelas como literários.» (Vasconcelos, 2013: p. 106) Essa é uma relação axial na obra de Mário Botas, como ele mesmo deixou bem evidente no texto Da Imitação

dos Mitos dedicado ao poeta Eugénio de Andrade:

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Fui sempre um pintor do lado da escrita, opondo-me e unindo-me a ela (…) O que pinto gosta de se encontrar com as palavras, sobretudo com as palavras dos outros. (Botas, 2012: p. 78)

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