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2 VIDA, OBRA E INFLUÊNCIAS SOBRE H.P LOVECRAFT

2.5 H.P LOVECRAFT E SUA IMPORTÂNCIA NA CULTURA POP

Lovecraft criou, por meio de sua série de contos interconectados, denominada Mitos de Lovecraft, um território fértil para a produção de narrativas posteriores. S.T. Joshi (2008) afirma que os mitos sobrepujaram o próprio trabalho de Lovecraft, tornando-se algo maior. Ainda hoje, os mitos se proliferam em uma enorme variedade de mídias, tanto em outras produções como os próprios contos, que aparecem em muitas versões, tanto impressas quanto digitais. E não foi apenas no campo da literatura que eles ganharam espaço: foi em toda a cultura pop, desde o cinema, passando pela música, desenhos animados, games, séries de televisão, brinquedos, acessórios, roupas, tatuagens, entre outros.

É importante fazer um panorama geral dessas produções, sem a pretensão de esgotar o assunto e abranger todas as manifestações, mas para compreender a relevância do autor na atualidade, mesmo que não seja o foco desta dissertação abordar a influência de Lovecraft na cultura pop como um todo. Na dissertação de José Carlos Guerreiro Gil (2010), da Universidade de Évora, em Portugal, há essa abordagem, que deseja trazer à luz a obra lovecraftiana para os leitores portugueses e salientar sua importância como um ícone pop contemporâneo. No presente trabalho, conforme será visto mais adiante na análise, os fãs não apenas se apropriam do monstro Cthulhu como também o

associam, muitas vezes, à cultura pop e às transformações que a mesma teve sobre o personagem em questão. Por conta disso, o objetivo deste subcapítulo também é oferecer um pano de fundo de como o monstro foi e é retratado nessa esfera do entretenimento específica e também destacar sua importância nesses cenários.

É crucial observar também que tal disseminação da obra, escrita nos outros meios de comunicação, propiciou maior abrangência dos contos lovecraftianos para o público em geral. Uma das principais fontes que catalogam as produções de Lovecraft é o site The H.P. Lovecraft Archive20. Embora se reconheça que esse acervo cresce todos os dias, sendo um trabalho árduo catalogar todas as produções dessa natureza, esse site é atualizado com frequência, e será a principal referência utilizada nesta seção.

a) Filmes e programas de televisão

Os contos de Lovecraft geraram muitas adaptações diretas para as telas do cinema. De acordo com o site IMDB, 125 filmes ou curtas foram produzidos diretamente ou inspirados nas histórias até o presente momento - Janeiro de 201421. A maioria deles conta com uma produção amadora ou semiprofissional, como os longas da H.P. Lovecraft Historical Society22. Com orçamentos baixos, o grupo criou adaptações de sucesso para “O Chamado de Cthulhu” e “Sussurros na Escuridão”. Outro exemplo inspirado no “Chamado de Cthulhu” é o filme “Call Girl of Cthulhu”, viabilizado por meio de uma campanha em um site de

crowdfunding23 chamado Kickstarter24.

Além dos filmes diretamente adaptados ou com referências específicas, podem-se traçar outros longas muito populares que têm uma aura lovecraftiana. Andrew Migliore e John Strysik escreveram o livro: “Lurker in the Lobby: The Guide to the Cinema of H. P. Lovecraft” (2006), que traz um apanhado geral das influências lovecraftianas no

20 Ver POPULAR CULTURE, 2014, online. 21 Ver IMDB, 2014, online.

22 Ver CTHULHU LIVES!, 2014, online.

23 Crowdfunding é a prática de obter fundos para um projeto, arrecadando pequenas quantias

em dinheiro, doadas por muitas pessoas, tipicamente via internet (PRIVE, 2012).

cinema, incluindo entrevistas com diretores. A trilogia de “Uma Noite Alucinante” (1981, 1987 e 1992)25, dirigido por Sam Raimi, conta com inúmeras referências, mas a principal é a aparição do livro maligno “Necronomicon”. “Alien” (1979), de H.R. Giger, conta com monstros e aparições tipicamente lovecraftianas, e o próprio diretor afirma ter sido influenciado pelo autor (MIGLIORE; STRYSIK, 2006). O clássico cult “A Hora dos Mortos Vivos” (1985)26, com direção de Stuart Gordon, foi baseado no conto “Herbert West–Reanimator”, de Lovecraft. Na lista de Migliore e Strysik (2006) também aparece o filme “Hellboy” (2004), dirigido por Guilhermo del Toro, e tem como maiores influências os contos de Lovecraft e “Drácula”, de Bram Stroker.

Entre os programas de televisão, há muitas referências, tanto em seriados quanto em desenhos animados. A animação “Os Verdadeiros Caça-Fantasmas27 ” (1986-1991) é um exemplo: conta com dois episódios que utilizam diretamente os mitos criados por Lovecraft. Em “Collect Call of Cathulhu”, os Caça-Fantasmas pedem ajuda a um doutor em Arkham, cidade ficcional idealizada por Lovecraft, para reaver o “Necronomicon”, roubado por uma criatura tentacular28. Na décima primeira temporada de Scooby-Doo (“Scooby-Doo! Mystery Incorporated”, 2010), animação produzida pela Warner Bros29, há a aparição, em dois episódios, de um personagem chamado H.P. Hatecraft. Muito semelhante a Lovecraft, tanto fisicamente quanto psicologicamente, esse professor ajuda a turma de Scooby-Doo a resolver mistérios30. Na animação voltada para o público adulto, South Park, três episódios interconectados contam a aventura de Cartman e seus amigos para enfrentar o próprio Cthulhu, que acordou de seu sono eterno31.

No seriado de televisão Supernatural (2005), um episódio inteiro da sexta temporada é dedicado a Lovecraft. Nesse, o autor aparece como

25 Título original: Evil Dead. 26 Título original: Re-Animator

27 Título original: The Real Ghostbusters

28 Ver LOVECRAFTIAN TELEVISION SHOWS, 2014, online. 29 Ver SCOOBY-DOO! MISTERY INCORPORATED, [201-], online. 30 Ver H.P.HATECRAFT, [201-], online.

um dos primeiros a abrir um portal chamado “Purgatory”, lar de seres sobrenaturais, onde encontra criaturas que denomina “Old Ones”. Os personagens que investigam o caso consideram que o fato de ele ter aberto esse portal e visto os monstros foi crucial para que criasse suas histórias. Segundo eles, assim teriam nascido os Mitos de Cthulhu32.

b) Música

Na música, muitas bandas aproveitaram as histórias de Lovecraft como inspiração, tanto para seus nomes quanto para as letras de suas músicas. Capas de CDs e temáticas inteiras de álbuns também entram nessa classificação. Por conter temas ligados ao horror e ao ocultismo, grande parte das bandas que se valeram dos contos lovecraftianos pertence ao gênero de rock denominado metal. Mais de 100 bandas estão catalogadas no site The H.P. Lovecraft Archive33, por conterem algum tipo de menção. Por isso, optou-se por utilizar como exemplo bandas mais famosas da cena.

Black Sabbath, banda do vocalista Ozzy Osbourne, possui uma música em seu álbum de 1970, denominada “Behind the Wall of Sleep”, inspirada no conto de Lovecraft “Beyond the Wall of Sleep”, escrito em 1919. Blue Oyster Cult, banda de Hard Rock de sucesso entre os anos 70 e 80, conta com músicas inspiradas nos contos em três álbuns. A frase “when the stars are right”, presente em “O Chamado de Cthulhu”, aparece na música “In the Presence of Another World”, do álbum “Imaginos” (1988), por exemplo.

Outra banda de metal, chamada Cradle of Filth conta com uma música chamada “Cthulhu Dawn” (no álbum “Midian”, 2000) e um CD denominado “Lovecraft & Witch Hearts” (2002). Outro grupo do mesmo gênero, Halloween, inclusive utilizou um dos poemas de Lovecraft para compor “The Wood”. Iron Maiden também utilizou frases do autor. Na capa de seu álbum “Life After Death” está escrito em uma tumba: “That

is not dead which can eternal lie, and with strange aeons even death may

32 Ver H.P. LOVECRAFT, [201-], online. 33 Ver LOVECRAFTIAN MUSIC, 2014, online.

die”, sentença presente no livro “Necronomicon”, no conto “O Chamado

de Cthulhu”. Metallica também possui uma música instrumental com o nome do conto de Lovecraft: “The Call of Ktulu” está presente no álbum “Ride the Lightning”, de 1984. No CD seguinte, Master of Puppets (1986), há a música “The Thing That Should Not Be”, baseada no conto: “A Sombra Sobre Innsmouth”.

c) Games

Por mais que Lovecraft não gostasse de jogos e esportes, como ele mesmo escreveu em algumas de suas cartas34, ele, sem intenção direta, criou um panteão de deuses antigos, territórios ficcionais, itens, objetos e artefatos ideais para a criação de muitos games, especialmente no gênero de RPG35, seja por meio de tabuleiros quanto em métodos computacionais.

Um dos mais famosos jogos desse tipo, chamado Dungeons & Dragons (1971), conta com um livro de referências chamado Deities & Demigods. Nesse volume, jogadores podem adicionar mais criaturas e monstros aos jogos. Um dos capítulos inclui os seres criados por Lovecraft, pertencentes aos Mitos de Cthulhu: Cthulhu, Azathoth, Byakhee, Cthuga, Mi-Go, Nyarlathotep, Shoggoth, Shub-Niggurath, Yog- Sothoth, e o “Necronomicon” são alguns exemplos. Outro jogo da mesma natureza, especificamente voltado para o universo lovecraftiano, também foi criado: Call of Cthulhu é apreciado até hoje por entusiastas do gênero. Foi idealizado por Sandy Petersen, que se envolveu posteriormente em projetos de jogos virtuais famosos, como Doom e Quake, que também possuem uma inspiração no horror cósmico, incluindo criaturas como os Shub-Niggurath36.

34 “...Me sinto bem inclinado a acreditar que jogos e esportes não devem ser ranqueados entre

os maiores fenômenos da vida”. H.P. Lovecraft para Robert E. Howard, outubro de 1932 (LOVECRAFTIAN GAMES, 2014, online). Tradução nossa para: “...I feel quite justified in believing that games and sports ought not be ranked among the major phenomena of life.”

35 RPG é uma sigla que corresponde à expressão em inglês Role Playing Game, e classifica um

estilo de jogo onde as pessoas assumem papéis, interpretando seus personagens, criando narrativas e enredos complexos (FONSECA, 2008, online).

Referências podem ser encontradas em outras modalidades de

RPG. No jogo de cartas Magic: The Gathering é possível encontrar

elementos claramente lovecraftianos, como a carta chamada “Grimoire of the Dead37, um livro semelhante ao “Necronomicon”, as criaturas “Cosmic Horror”38 e “Wrexial, the Risen Deep”39, a primeira com aparência tentacular e a segunda muito semelhante ao monstro Cthulhu. Como já citado anteriormente, jogos computacionais como Quake e Doom tiveram sua dose de horror cósmico. Contudo, são inúmeros que podem ser considerados direta ou indiretamente influenciados por Lovecraft. Na influente franquia japonesa Megami Tensei, da Atlus, o principal antagonista dos jogos Persona 1 e 2 é Nyarlothotep, criatura do panteão do autor40. Em todos os jogos da franquia é possível encontrar as criaturas dos Mitos de Cthulhu, como o próprio Cthulhu, Yog Sothoth, Shoggoth, e até um dos personagens semi-humano, Whateley - são demônios “jogáveis”. No MMORPG41 mundialmente famoso, World of Warcraft, também é possível encontrar fortes influências, o mundo de Azeroth, nome modificado de uma criatura e conto de Lovecraft: “Azathoth”. O próprio nome do jogo é uma modificação do sobrenome do autor, trocando a palavra “love” (amor) por “war” (guerra). Um dos monstros que pode ser derrotado nesse mundo se chama C’Thun, e lembra o monstro tentacular42.

d) Quadrinhos

O mundo dos quadrinhos também foi influenciado por Lovecraft. Muitos trabalhos de adaptação dos contos do autor foram realizados, mas o que interessa nesta parte do trabalho é o quanto Lovecraft

37 Ver GRIMOIRE OF THE DEAD, [201-], online. 38 Ver COSMIC HORROR, [201-], online.

39 Ver WREXIAL, THE RISEN DEEP, [201-], online. 40 Ver NYARLATHOTEP, [201-], online.

41 Com fundamentos semelhantes ao RPG, o MMORPG (Massive Multiplayer Online RPG)

ocorre no meio online, e há a possibilidade da inserção de milhares de jogadores em um único mundo, todos participando da mesma história (FONSECA, 2008).

contribuiu para inspirar autores de grandes títulos. Um exemplo é o Arkham Asylum, uma prisão para loucos fortemente vigiada, localizada nos entornos de Gotham City, cidade do herói Batman, da DC Comics. Arkham, cidade fictícia de Lovecraft, citada anteriormente, é onde muitos acontecimentos de seus contos se desdobram, e está relacionada com a descoberta de muitos mitos enlouquecedores para os personagens43. O criador do personagem “Hellboy” – que se transformou em filme, conforme citado no item a) desta seção -, Mike Mignola, cita Lovecraft como principal influência para a criação dos quadrinhos. Em uma entrevista na West Hollywood Book Fair, em 2010, Mignola comenta que a atmosfera de horror cósmico foi crucial para sua criação. Além disso, comenta sobre a influência geral do autor para o mundo dos quadrinhos: “Se tornou referência direta para qualquer coisa com tentáculos. Marvel, DC, todos eles têm personagens inspirados em Lovecraft” (CAMPBELL, 2010, online).

Como pode ser percebido, Lovecraft deixou sua marca na cultura pop de diversas formas, em muitos meios de comunicação. Do cinema à televisão, passando por música, games e quadrinhos, o horror cósmico segue presente na atualidade. Por esse motivo, ressalta-se a relevância dos estudos em relação a esse autor, pois sua literatura não se perdeu no tempo, mas renovou-se, e seus personagens assumiram papéis diferentes nas histórias por onde passou e ainda passa. Esse território fértil para ideias, partindo de um conjunto de histórias interligadas, imaginadas por Lovecraft, também se estendeu para a cibercultura, e adaptou-se nesse meio. Logo, o objetivo desta dissertação é imergir nesse meio, e nas diversas manifestações dos fãs de Cthulhu, e compreender como os leitores do contexto da cibercultura ressignificam, interpretam e dialogam entre si dentro da temática do conto “O Chamado de Cthulhu”. O próximo capítulo irá abordar a questão dos fãs e do fandom, definições e trajetórias, de modo a compreender melhor essa temática.

3 QUEM SÃO OS FÃS?

Como visto no capítulo anterior, a obra de Lovecraft atravessou a barreira do próprio tempo e seguiu uma forte influência nas diversas áreas do entretenimento e da arte. Desde seriados até bandas famosas, os contos de Lovecraft não foram apenas utilizados como referência – foram apropriados, resignificados, modificados e incorporados a outros mundos. O monstro Cthulhu, personagem emblemático em seu conto mais famoso “O Chamado de Cthulhu”, não conquistou somente os grandes produtores. Umberto Eco (1993) reflete sobre o que faz um livro ou um filme se tornar um objeto de culto. Escreve que o mesmo precisa ser amado, mas que não é o suficiente. O objeto de culto, para o autor, precisa fornecer um mundo completo, para que os fãs possam utilizar os personagens e os episódios como se esses fossem parte do mundo deles. Mais ainda, para transformar um trabalho em algo a ser cultuado, o indivíduo precisa conseguir romper, deslocar, embaralhar o mesmo a ponto de ser possível lembrar apenas partes dele, apesar de sua ligação com o todo. Essa é uma relação que pode ser feita com o conto “O Chamado de Cthulhu”.

O conto, com sua história complexa, repleta de fluxos temporais, vai-e- vem de acontecimentos, forma um quebra-cabeça, à medida que as trajetórias de Thurston e de Legrasse se misturam e as evidências da existência do monstro Cthulhu se encaixam – o que culmina na notícia de que alguns marinheiros conseguiram acordar o monstro e no pavor de Thurston, que termina enlouquecido pela “verdade cósmica”. Alguns pontos são chave na história escrita por Lovecraft: o fato de todos os que entram em contato com o monstro direta ou indiretamente acabam fadados a enlouquecer e morrer; a existência do monstro e de suas recorrentes características ao longo do conto; a descrição da morada R’lyeh, onde Cthulhu dorme; a noção de que os seres humanos não são nada comparados com a vastidão do universo. Assim, a história, que é contada em tempos fragmentados, traz o retorno dessas peças-chave, que se fixam na mente do leitor. Logo, conforme Eco (1993) comenta, a trama pode ser facilmente rompida pelo leitor e embaralhada, a ponto de que se lembre apenas dos pontos nodais da história – até que reste pouco da história em si e muito do

monstro e da atmosfera que ele traz consigo, conforme será explorado mais adiante na análise.

É importante explicitar que o estudo dos fãs do monstro Cthulhu não está centrado em uma única fonte de disseminação do personagem (como somente o conto, ou filmes e séries específicas). Isso se dá porque a criação do conto e do personagem foi realizada por um escritor nos anos 20, e não é uma produção que atualmente é detida por uma grande multinacional, emissora, gráfica, ou qualquer empresa de grande porte. A popularidade do monstro se deu pela leitura do conto, inicialmente, e pelas inúmeras referências da cultura pop – ou seja, é um processo altamente descentralizado, sendo fácil encontrar o ponto de partida (o conto de Lovecraft), mas não uma manifestação comum pela qual todos os fãs conheceram o personagem. Como foi demonstrado anteriormente, a obra de Lovecraft, como um todo, foi apropriada por diversas esferas do entretenimento, como televisão, games, música, quadrinhos, literatura, entre outras. Antecipando algumas ideias da análise, os fãs do monstro Cthulhu nem sempre são aqueles leitores ávidos, mas podem ser também assíduos jogadores de Magic, ou fãs da banda Metallica – e foi por esse meio que conheceram o personagem e o legado lovecraftiano. Pode-se dizer, inclusive, que alguns fãs terminam sua admiração nessas esferas, e não buscam a leitura do conto ou qualquer aprofundamento posterior. De qualquer forma, é importante assinalar a diferença desse tipo de prática descentralizada, que não se concentra em práticas comuns como assistir a um seriado, escutar uma banda, assistir a uma série de filmes – e a partir deles realizar as diversas atividades de fãs. Contudo, o que são fãs e o que os estudos dessa área nos dizem sobre eles? O próximo subcapítulo irá explorar essa questão.