• Nenhum resultado encontrado

3. RUA ANTÔNIO NERI:

3.1. Habitar

De início, para compreendermos a rua em que estamos neste exato momento enquanto fonte murmurante, a primeira camada de ação proposta é habitar o lugar, travar relações com ele, o que pode nos ajudar a ouvir as vozes das suas topografias e perceber uma arquitetura falante mais próxima à experiência da personagem de Dostoievski. Contudo, a experiência es- tética dos moradores desta rua certamente será bem diferente da do visitante que chega de su- petão e paralisa no espaço tentando compreendê-lo. Os relatos dos atores do Nóis de Teatro começam, então, a surgir na nossa jornada, sobretudo pelo fato de todos os integrantes do grupo morarem nestas redondezas. Nossa experiência nestes lugares, de certo modo familiarizada, revela que nossa visão de mundo parece estar impregnada pelo que estes lugares pulsam en- quanto discurso falante. A atriz do Nóis de Teatro, Kelly Enne Saldanha, em relatório sobre o processo de montagem, fala-nos que:

Por aqui existe uma energia de povo na rua, onde esta é uma extensão da casa, servindo hora de sala de estar ou mesmo sala de jantar. A rua faz parte da casa. Por isso há uma apropriação dela como em nenhum outro bairro. Esse domínio da rua, esse comportamento próprio faz desses moradores também agentes de

observação. (…) Se passo o dia em casa, é um dia vendo minha vizinha da

frente sentada na calçada. Hora conversando com alguém, mas a maioria das vezes, está lá, sozinha (...) E certamente já está conhecedora dos detalhes da rua e dos moradores. Deverá descrevê-los com riqueza de detalhes (RELA- TÓRIO, 2015, p. 60).

63

De certo modo, assim como o Sonhador de Dostoievski, a experiência da vizinha sen- tada na calçada – ou mesmo da atriz que a observa –, talvez seja construída por um dispositivo reminiscente que a atravessa diariamente na sua relação com os espaços das ruas. De modo similar, é possível falar que no processo de montagem, nossa experiência com essas ruas era constantemente atravessada pelo arsenal de outras vivências que já tínhamos experienciado so- bre as mesmas, memórias revividas e ressignificadas num estágio não facilmente previsível. Ao enunciarmos “Gosto muito de estar aqui!”, tangenciamos uma prática do espaço na memória, traçada quase num instante, como um clarão (CERTEAU, 2014, p. 176). Certeau (2014, p. 151) diz que “a memória é tocada pelas circunstâncias, como o piano que ‘produz’ sons ao toque das mãos”, completando ao dizer que

Só há lugar quando frequentado por espíritos múltiplos, ali escondidos em si- lêncio, e que se pode “evocar” ou não. Só se pode morar num lugar assim

povoado de lembranças (…). É um saber que se cala. Daquilo que se sabe, mas se cala, só circulam “entre nós” meias palavras. Os espaços são histórias

fragmentadas e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo (CERTEAU, 2014, p. 175-176).

A experiência do Sonhador de Dostoievski é certamente atravessada por esses espíritos múltiplos, um passado que retorna, uma alma encantadora que é evocada como num clarão que é lido como sussurro, como voz ecoante a lhe falar o que se faz urgente e se estabelece como espaço-memória. Desse modo, guardando em nossa bagagem essa citação de Dostoievski, vol- temos a nossa caminhada e, nessa instância, talvez já seja possível afirmar que “O Jardim das Flores de Plástico”, ao dialogar com estas memórias dos espaços visitados, com reminiscências de histórias fragmentadas, quebra-cabeças e tempos empilhados que se desdobram em legibili- dade, age exatamente na reinvenção de memórias passadas, fervilhando um presente que se estabelece agora mesmo nesse contato com o lugar em que se trava a relação.

A atriz Doroteia Ferreira falava que o processo de montagem não a fazia apenas cami- nhar pelas ruas, mas flanar também sobre sua história, sobre suas memórias vivenciadas nos lugares por onde percorremos. Talvez seja exatamente por isso que durante os meses que pas- samos em laboratórios, o impulso afetivo do grupo de artistas envolvidos se fazia tão presente nos jogos e exercícios propostos. Esse processo de relação entre as memórias dos atores e dos espaços, realizado no primeiro mês de montagem de “O Jardim das Flores de Plástico / ato 3”,

64

agenciou a criação de 10 microcenas autobiográficas que, de tão pertinentes para o elenco, fo- ram transformadas em pequenos curtas publicados na internet34, trazendo em cada vídeo a per-

formance autobiográfica de um ator específico do espetáculo.

Um bom exemplo da ação da memória dos atores na construção da encenação está ma- terializada na primeira estação “Quando os urubus passam é porque a carniça já está na mesa”,

cena em que a personagem interpretada por Kelly Enne Saldanha, conversava com o público sobre suas memórias afetivas das ruas periféricas. Como pontuado outrora, a atriz vinha dedi- cando um tempo à observação das ruas35, trazendo suas lembranças para a cena como potência criativa que revelava seu olhar sobre o espaço. É Kelly Enne Saldanha quem nos diz:

Na primeira estação, há algumas falas que remetem a um saudosismo de como era a rua antes, diferente de como é agora. Hoje em dia, as ruas deixaram de ter grandes árvores frutíferas em suas calçadas ou mesmo no meio das ruas. Mangueiras, pés de jambo, de seriguela, azeitona, castanhola(...) E é esse tipo de memória que a primeira estação possibilita, uma reflexão de como são as ruas de hoje e de como eram antes, (...), antes de toda essa violência e medo que nos atinge a qualquer hora do dia ou da noite. Nesta cena podemos obser- var por alguns instantes a rua onde moramos (RELATÓRIO, 2015, p. 65)

É pensando nessas autobiografias realizadas pelos atores e nesse emaranhado poético que surge a partir da relação que estabelecem com os espaços, que será valioso pararmos para relembrar o que Walter Benjamin nos diz sobre isso:

Se quiséssemos distribuir por dois grupos todas as descrições de cidades, de acordo com o lugar de nascimento dos autores, chegaríamos certamente à con- clusão de que são em menor número aqueles cujos autores nelas nasceram. O impulso superficial, o exótico, o pitoresco só se fazem sentir nos estrangeiros. A descrição de uma cidade por um dos seus habitantes tem outras motivações, mais profundas. Motivações de quem viaja para o passado, e não para lugares distantes. O livro de uma cidade escrito por um dos seus naturais terá sempre afinidades com as memórias, porque não foi em vão que o autor passou a in- fância nesse lugar (BENJAMIN, 2015, p. 205).

34A série de vídeos “Negros”, como ficou chamada, pode ser visualizada no blog do Nóis de Teatro: http://nois- deteatro.blogspot.com.br/2015/03/conheca-serie-de-videos-negros.html

35 O ator Henrique Gonzaga, em relato de processo, ao falar de todo o caos que instalamos durante a intervenção, destaca a cena da Dona Zélia. Ele diz que nessa cena é “onde percebemos a visão de uma senhora que enxerga mais que uma rua onde ela mora, ela percebe a vida daquela rua. Ele sente aquela rua, desde o movimento de pessoas que vão e vêm até as lembranças mais lúdicas que ela guarda da infância. Essa cena sempre me lembra, principalmente, as pessoas mais velhas que sentam na calçada que sentem um orgulho enorme em falar como era a rua onde moravam, parece que a relação deles com a rua é mais forte do que hoje em dia” (RELATÓRIO, 2015, p. 65).

65

O que fazer, então? Só é possível pensar um lugar a partir de memórias afetivas estabe- lecidas com ele? É possível habitar um espaço sem fixar moradia nele e mesmo assim compre- endê-lo poeticamente? Michel de Certeau alerta-nos ainda que o espaço é um lugar praticado, “é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades con- tratuais (…) Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em es- paço pelos pedestres” (CERTEAU, 2014, p. 1κ4). Habitar o lugar, travar relações com ele, configura-se, então, como essa urgência de praticá-lo, torná-lo vivo. Destarte, talvez seja pos- sível dizer que durante o tempo em que nos deslocamos por esta rua habitamos momentanea- mente a sua silhueta, transformando sua instância, sua geografia afetiva, reverberando enquanto parte do espaço – ou constituindo-o e produzindo-o –, povoando-lhe de lembranças e criando uma memória que vai sendo evocada no mesmo instante em que é gestada.

Dito isto, potencializemos, então, o retorno à nossa caminhada. O que se faz possível perceber nesse lance de afetividades, de praticar o lugar a partir destes quatrocentos metros que interligam a Rua Vital Brasil à Teodoro de Castro, onde entraremos logo em breve à direita?