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4. REGISTROS ADMINISTRATIVOS NO BRASIL: FONTES, POTENCIALIDADES E

5.4 HAITIANOS E OS REGISTROS ADMINISTRATIVOS

A peculiaridade do fluxo migratório de haitianos no país perpassa a legislação brasileira e internacional e não se encaixa. Uma migração em massa, indocumentada e deflagrada por uma catástrofe ambiental que os situou em uma zona intermediária entre os migrantes essencialmente econômicos e os forçadamente deslocados, uma categoria não expressamente prevista na legislação brasileira.

A lacuna da legislação impactou diretamente o registro administrativo desse fluxo, uma vez que o ingresso em 2010 se deu como solicitantes de refúgio, portanto, sob a gerência do CONARE e conforme previsto na Lei do Refúgio, tendo a CTPS expedida e consequentemente autorizando o trabalho formal enquanto o processo estiver em tramitação.

No entanto, diante do não preenchimento dos requisitos para status de refugiados, mas dada a situação humanitária desse fluxo o CONARE encaminha a situação como caso omisso para o CNIg que apenas em 2012, possibilitou através da Resolução Normativa nº 97 o enquadramento dos haitianos colo eletivos para o visto permanente de caráter humanitário.

O tempo transcorrido entre o início do fluxo e a resolução do CNIg colocou essa população em uma situação atípica no que tange os registros administrativos, pois eles foram incluídos nas bases do CONARE, CTPS, RAIS, CAGED e SINCRE em momentos diferentes do processo, sendo, portanto, necessário a consulta e o cruzamento dessas bases para o estudo desse fluxo.

A discrepância no quantitativo de haitianos é um dos reflexos desse processo. O CONARE contabiliza em seu relatório 48.371 solicitações de refúgio de haitianos entre 2010 e 2015, mas constam apenas 91 na base disponibilizada. No SINCRE, estão registrados 22.180 entre 2000 e 2014, sendo que 99% (22.028) ingressaram a partir de 2010. A RAIS, por sua vez, registrou 71.549 vínculos empregatícios com haitianos entre 2011 e 2014. O ACNUR citando a Polícia Federal estimou a entrada

de 39 mil haitianos até setembro de 201460 e o Governo Federal estimou 80 mil até

setembro de 201661.

Quanto ao SINCRE, os registros devem se adequar a realidade tendo em vista que em 11 de novembro de 2015 os ministros do trabalho e previdência social e da justiça assinaram a autorização de permanência de 43.871 haitianos que devem se registrar junto a Polícia Federal até 12 de novembro de 2016. No entanto, caberá a estudos futuros averiguar o percentual desses haitianos que efetivaram o registro.

O que o SINCRE, a principal base utilizada nesse estudo, nos possibilita é averiguar que a maioria desses migrantes são homens (74%) com idade entre 20 e 45 anos (91%). A entrada desses migrantes foi registrada majoritariamente pelos estados de São Paulo (48%), Amazonas (21%) e Acre (15%), mas o maior percentual de haitianos declarou residência nos estados de São Paulo (30%), Paraná (15%), Santa Catarina (14%) e Rio Grande do Sul (14%), indicando a mobilidade espacial em direção aos centros econômicos.

Vislumbra-se nesse grupo o potencial de estudo futuro sobre a formação e atuação das redes migratórias, uma vez que os haitianos não possuíam relação cultural ou linguística com grupos de migrantes tradicionais no Brasil, e dado o caráter documentado, o início recente e o volume do fluxo da migração que facilita o seu rastreamento.

CONCLUSÃO

A diversidade das nacionalidades que compõem o fluxo migratório documentado para o Brasil a partir dos anos 2000, captado pelo Sistema Nacional de Cadastramento de Registro de Estrangeiros ± SINCRE apresentado na presente pesquisa e sintetizado no infográfico (anexo I) demonstra, em certa medida, a presença do país no cenário internacional, não somente na economia e na política,

60 Disponível em:

http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/Estatisticas/Refugio_no_Brasil_2010_2014. pdf?view=1 Acesso em outubro/2016.

61 Disponível em: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/09/governo-prorroga-visto-

mas no imaginário da população que vislumbra no Brasil novas oportunidades e uma vida melhor.

É interessante ressaltar que os grandes movimentos migratórios para o país no século XIX tiveram como grande atrativo os subsídios governamentais para vinda dos migrantes, como por exemplo, o custeio da viagem e doação de terras (colônias), e que, mesmo sendo detentor de uma política migratória altamente restritiva e seletiva, o país continua atraindo migrantes tanto de nacionalidades dos fluxos históricos quanto de novos fluxos, evidenciando a permanência do país na rota da mobilidade humana internacional.

A nova onda migratória tem demandado novos arranjos institucionais e legais, percebidos ao longo deste trabalho na criação do Comitê Nacional para Refugiados e na adoção das resoluções normativas como meio de adequar a legislação defasada ao novo contexto local e global das migrações internacionais enquanto uma nova lei de migração não é aprovada pelo Congresso Nacional.

O papel da legislação nos fluxos migratórios para o Brasil é claro quando analisados os amparos utilizados para o registro dos estrangeiros juntos à Polícia Federal. Em casos e períodos onde o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980) se sobressai, são predominantes os registros por prole, casamento e reunião familiar, cujos requisitos para permanência definitiva são: a) possuir capacidade civil, segundo a lei brasileira; b) estar casado de fato e de direito com cônjuge brasileiro há mais de 5 anos; ou c) possuir filho brasileiro sob sua guarda e dependência econômica. Em comparação, as exigências para ingressar no país com visto de trabalho são muito mais burocráticas, sendo necessário que uma empresa solicite a contratação do estrangeiro junto ao Ministério do Trabalho e Previdência Social, que pode conceder ou não a autorização de trabalho. De posse da autorização de trabalho, o estrangeiro deve solicitar o visto em uma repartição consular brasileira no exterior, podendo este ser negado. Apenas de posse do visto e da autorização de trabalho, o estrangeiro pode ingressar no país e se registrar junto à Polícia Federal, estando sua permanência em território nacional vinculada ao emprego especificado na autorização de trabalho. A restritividade e seletividade da Lei 6.815/1980, no entanto, não parece inibir a migração indocumentada, pois esta continua a ocorrer e é captada pelos registros administrativos através das anistias migratórias ou contornadas por meio da regularização por prole ou casamento.

Embora proporcionalmente à população brasileira os migrantes e refugiados documentados nos registros administrativos pareçam pouco expressivos, é preciso observar que esse cenário tende a se modificar com a adoção de políticas de facilitação de ingresso, como a estabelecida pelo Acordo de Residência do MERCOSUL e Associados.

Essa tendência é captada na análise dos fluxos a partir de 2009, ano do início da vigência do acordo e da anistia migratória, que representaram mais de 60% do fluxo entre 2000 e 2014 tanto tomando como base o ano de entrada do migrante quanto o ano de registro na base do SINCRE. Sendo o Acordo do MERCOSUL responsável por 25% dos registros a partir de 2009.

A mesma dinâmica de resposta aos incentivos legais e governamentais ocorrem nos fluxos de refugiados, tendo como casos emblemáticos a vinda expressiva de sírios a partir de 2013, após a política de facilitação de visto e de celeridade no reconhecimento do refúgio no país, e no reassentamento dos refugiados colombianos.

Quanto aos registros administrativos utilizados, esses se apresentaram como ricas fontes de dados estatísticos, especialmente quando o cruzamento entre diferentes bases foi possível, revelando dimensões não captadas pelos Censos Demográficos, tais como o amparo legal da estada do migrante e sua inserção no mercado de trabalho.

Em tempo, para fins de aperfeiçoamento dos registros administrativos é necessária maior cooperação entre os gestores, objetivando o estabelecimento de variável comum que possibilite o linkage entre as mesmas, bem como dirimir divergências entre bases que captam o mesmo fenômeno, como é o caso do CONARE versus SINCRE. Recomenda-se ainda que as bases da RAIS e do CAGED informem a variável nacionalidade totalmente desagregada e não apenas em FDWHJRULDVFRPR³RXtras latino-DPHULFDQDV´

No caso do SINCRE, sugere-se a implementação de uma rotina de atualização dos cadastros e limpeza da base, bem como de treinamento dos agentes responsáveis pelos registros no sistema, buscando reduzir falhas e o preenchimento parcial do cadastro, conferindo maior acuracidade aos dados. Propõe-se ainda à Polícia Federal o cruzamento da base do SINCRE com a do Sistema de Trafego Internacional (STI) como forma de captar estimativas de migração indocumentada, e a liberação dessa base para estudos.

Apesar das recomendações, os registros administrativos se constituem importantes recursos para pesquisas futuras, possibilitando abordagens em diversas escalas e perspectivas como o aprofundamento por nacionalidades, espaços geográficos, amparos por temáticas como a migração religiosa e para fins educacionais, questões de gênero, a mobilidade espacial interna dos migrantes e sua inserção no mercado de trabalho formal, inclusive facilitando a seleção de áreas para pesquisa de campo.

Outro aspecto sensível na questão migratória a ser considerado e que impacta diretamente na migração sobretudo documentada é o tratamento dos fluxos por meio de resoluções normativas, pois estes se constituem atos administrativos que não inovam e apenas explicam e disciplinam sobre a execução de aspectos já contidos na Lei e, por se configurarem como normas infralegais, sua revogação pode ocorrer por oportunidade e conveniência do CNIg, tornando-as susceptíveis à influência política, podendo levar ao retrocesso dos avanços obtidos ao longo dos últimos 15 anos na garantia dos Direitos Humanos dos migrantes.

A partir dos aspectos abordados neste estudo, vislumbram-se como perspectivas para pesquisas futuras o aprofundamento do uso dos registros administrativos como fonte de dados estatísticos e qualitativos, o cruzamentos entre as diversas bases disponíveis, a investigação sobre a inserção e acolhida dos migrantes e refugiados, a questão de gênero na utilização dos amparos relativos a permanência por casamento ou prole, a mobilidade interna dos migrantes, analises de casos específicos como os dos haitianos beneficiados por políticas específicas e os impactos do Acordo de Residência do MERCOSUL

Feitas essas considerações, o presente estudo demonstrou a predisposição institucional e política do Brasil em recepcionar as migrações internacionais, bem como, a potencialidade dos registros administrativos, respeitadas suas especificidades e limitações, para identificar, quantificar e analisar os fluxos migratórios para o Brasil. Mostrou ainda, a influência direta da legislação migratória sobre o fluxo de migrantes documentados e indocumentados e da Política Externa no caso dos refugiados.