• Nenhum resultado encontrado

3 AS MÁSCARAS DE DIONISO: RELAÇÕES ENTRE O MASCULINO E O

3.2 Helena

Dentre as personagens femininas de Eurípides95, talvez a mais importante para a comédia seja Helena, a quem o tragediógrafo dedicou uma tragédia. Antes mesmo dessa peça, a “raça das mulheres” já figurava na literatura sob uma ótica pouco lisonjeira. Em Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo coloca a mulher como “a grande desgraça” dos homens, “um mal com que todos se deleitarão no ânimo, seu mal abraçando” (v.57-58). Pandora é a que traz os males do mundo (v.94-95) por sua desobediência ao marido e curiosidade irrefreável. O perigo que traz para a humanidade está justamente em sua aparência sedutora. A mulher, ao mesmo tempo em que é desejável, é também perigosa. A mesma relação ambígua é encontrada na Ilíada de Homero, encarnada na figura de Helena, causa maior da guerra entre aqueus e troianos96. No canto III, os anciãos que observam Helena traduzem esses sentimentos divergentes: ἦκα πρὸς ἀλλήλους ἔπεα πτερόεντ᾽ ἀγόρευον: ‘οὐ νέμεσις Τρῶας καὶ ἐϋκνήμιδας Ἀχαιοὺς τοιῇδ᾽ ἀμφὶ γυναικὶ πολὺν χρόνον ἄλγεα πάσχειν: αἰνῶς ἀθανάτῃσι θεῇς εἰς ὦπα ἔοικεν: ἀλλὰ καὶ ὧς τοίη περ ἐοῦσ᾽ ἐν νηυσὶ νεέσθω, μηδ᾽ ἡμῖν τεκέεσσί τ᾽ ὀπίσσω πῆμα λίποιτο.

94 Aspecto também ridicularizado por Aristófanes em Tesmoforiantes, na cena em que Agatão entra

cantando como um coro feminino (v.101-129).

95 Das 18 obras completas que nos restaram de Eurípides (17 tragédias e um drama satírico), 11 levam

nomes femininos (Alceste, Medeia, Andrômaca, Hécuba, Suplicantes, Troianas, Ifigênia em Táuris, Electra, Helena, Fenícias, Bacantes, Ifigênia em Áulis). Mesmo Hipólito, que não leva um nome feminino, tem como personagem central Fedra, madrasta de Hipólito.

96

Em Helena de Eurípides, o personagem homônimo nunca traiu Menelau, tendo sido levada por Hermes para o Egito, enquanto um ídolo (eidolon) foi levado pelos troianos.

“Não é ignomínia que Troianos e Aqueus de belas cnêmides sofram durante tanto tempo dores por causa de uma mulher destas! Maravilhosamente se assemelha ela às deusas imortais.

Mas apesar de ela ser quem é, que regresse nas naus; que aqui não fique como flagelo para nós e nossos filhos.” (Ilíada, III, v.156-160).

Helena é referida como “bendita entre as mulheres” (III, v.170), mas chama a si mesma de “cadela” (III, v.180), assim como acontece na Odisseia (VI, v.145), em que se encontra em paz junto de seu marido Menelau. Helena mantém, no discurso homérico, certo pudor e vergonha de ter se afastado da família, voltando-se mesmo contra Afrodite, sua deusa protetora, e contra si mesma:

δαιμονίη, τί με ταῦτα λιλαίεαι ἠπεροπεύειν; ἦ πῄ με προτέρω πολίων εὖ ναιομενάων ἄξεις, ἢ Φρυγίης ἢ Μῃονίης ἐρατεινῆς, εἴ τίς τοι καὶ κεῖθι φίλος μερόπων ἀνθρώπων: οὕνεκα δὴ νῦν δῖον Ἀλέξανδρον Μενέλαος νικήσας ἐθέλει στυγερὴν ἐμὲ οἴκαδ᾽ ἄγεσθαι, τοὔνεκα δὴ νῦν δεῦρο δολοφρονέουσα παρέστης; ἧσο παρ᾽ αὐτὸν ἰοῦσα, θεῶν δ᾽ ἀπόεικε κελεύθου, μηδ᾽ ἔτι σοῖσι πόδεσσιν ὑποστρέψειας Ὄλυμπον “Deusa surpreendente! Por que deste modo queres me enganar? Na verdade me levarás para mais longe, para uma das cidades bem habitadas da Frígia ou da agradável Meônia,

se também lá existir algum homem mortal que te é caro, visto que Menelau venceu o divino Alexandre e agora

intenta levar para casa a mulher detestável que eu sou. Por isso agora aqui vieste como urdidora de enganos. Vai tu sentar-te ao lado dele, abjura os caminhos dos deuses e que não te levem mais teus pés ao Olimpo!”(Ilíada, III, v.399-407).

Afrodite, que acabara de retirar Páris do campo de guerra, deseja que Helena se deite com o herói. Helena revolta-se contra a deusa e sugere que ela mesma vá tomar o lugar de mulher ou escrava de Páris, pois ela não faria tal ação que julga “desavergonhada” (v.410). A deusa sugere-lhe prudência, já que ela poderia detestá-la assim como naquele momento a amava. A ameaça de Afrodite impele Helena a deitar-se com o segundo marido, a quem ainda insulta antes de ceder a sua paixão. Afrodite é representada aqui como o amor em sua face carnal97, que levou a filha de Tíndaro a abandonar o marido e dormir com um estrangeiro98. Quando postos em confronto, o

97 Afrodite é reconhecida como o desejo feminino por homens, sendo referida nos hinos homéricos como

“amante do pênis”. (Hino Homérico 5: A Afrodite, v.48).

98

Em O Ciclope de Eurípides, o corifeu afirma que Helena nunca fora levada contra sua vontade, tendo ido com Páris de boa vontade. O sátiro toma Helena como modelo feminino e deseja que todas as

desejo masculino sempre se sobrepõe ao desejo feminino que, idealmente, valoriza o tálamo99 como aliança final com o marido. É o desejo dos filhos de Egito que forçam as Danaides a sujeitarem-se à humilhante condição de suplicantes, na peça de Ésquilo, Suplicantes100.

Helena foi tomada de casa e, apesar de se referir a Páris como seu segundo marido, não há uma concretização real de casamento, em termos ritualísticos101. O crime do descendente de Príamo não foi sequestrar uma mulher, mas tomar do rei Menelau uma de suas valiosas posses. Em Helena, o rei toma para si o direito de matar a recém-encontrada esposa, caso não haja meios de fugir do Egito, prometendo se matar em seguida. Como aponta Loraux (1988, p.23), a morte do marido clama pelo suicídio da mulher, pelo autossacrifício. Assim é que, em comparação à Clitemnestra, assassina de seu marido, Alceste seria um exemplo louvável de mulher, uma vez que se sacrificou pelo marido. Helena, assim como sua irmã, recusa-se a morrer, preferindo escapar por meio de estratagemas femininos.

A deusa cípride é ainda a campeã do pomo da discórdia, sendo, portanto, a deusa mais bela entre as três (Atenas, Hera e Afrodite). É justamente a beleza a grande dádiva e também a grande desgraça da filha de Leda, alinhando as duas figuras femininas102. Em Helena, o personagem homônimo culpa-se insistentemente pela desgraça de Tróia e da morte de inúmeros gregos. A sua beleza é apontada mais de uma vez como a causa de seus infortúnios:

τοὐμὸν δὲ κάλλος, εἰ καλὸν τὸ δυστυχές, Κύπρις προτείνασ᾽ ὡς Ἀλέξανδρος γαμεῖ, νικᾷ. λιπὼν δὲ βούσταθμ᾽ Ἰδαῖος Πάρις [...] ψυχαὶ δὲ πολλαὶ δι᾽ ἔμ᾽ ἐπὶ Σκαμανδρίοις ῥοαῖσιν ἔθανον: ἡ δὲ πάντα τλᾶσ᾽ ἐγὼ

mulheres nunca tivessem nascido, exceto aquelas que lhe causam prazer: “E, uma vez recuperada a jovem, não lhe aplicastes uma boa surra, já que ela gosta tanto de trocar de marido? Safada! Quando viu as calças largas e coloridas que envolviam as pernas do outro e o colar de ouro que lhe envolvia o pescoço, perdeu a cabeça e abandonou Menelau, um homenzinho tão bondoso! Oxalá jamais tivesse nascido a raça feminina – a não ser que fosse para mim só.”(v.180-186). Mesmo Polifemo refere-se à Helena como “execrável” (v.280).

99

“Entretanto, se o thálamos é a parte mais recôndita da casa, há ainda no interior do thálamos o leito, [...] lugar de um prazer tolerado pela instituição do casamento se for bastante moderado, lugar sobretudo da procriação.” (LORAUX, 1989, p.52).

100 Helena é citada pelo Coro em outra peça de Ésquilo: Agamêmnon (v.681-715; 1448-1461). É também

apontada como causadora da guerra.

101

Coulanges (2009, p.42) afirma que o casamento é um ritual domiciliar e requer a participação dos protetores civis da mulher, isto é, o pai ou o membro do sexo masculino mais próximo. Em As Fenícias, de Eurípides, Jocasta descreve um ritual de casamento, envolvendo “tocha nupcial” e “águas para ablução”, fornecidas pelo pai e pela mãe. (v.344-349).

κατάρατός εἰμι καὶ δοκῶ προδοῦσ᾽ ἐμὸν πόσιν συνάψαι πόλεμον Ἕλλησιν μέγαν.

E à custa da minha beleza, se é beleza o que causa desgraça, Cípria, ao prometer que Alexandre comigo casaria,

vence. [...]

E muitas vidas, por minha causa, junto do Escamandro, de suas correntes pereceram; e eu, apesar de sofrer tudo isso, sou a mais execrável criatura e passo por ter traído

meu marido e provocado uma grande guerra aos helenos. (Helena, v.27-28; v.52-55).103

Em Troianas, Hécuba, a rainha vencida de Tróia, lamenta a perda de sua cidade e de sua liberdade, e culpa Helena por suas desgraças. Já no início da peça, Posêidon afirma ser Helena merecidamente uma escrava (v.32-35) pelos mesmos motivos expostos por Hécuba mais tarde, isto é, ter causado a guerra e a destruição de Tróia: πρῷραι ναῶν, ὠκείαις Ἴλιον ἱερὰν αἳ κώπαις δι᾽ ἅλα πορφυροειδέα καὶ λιμένας Ἑλλάδος εὐόρμους αὐλῶν παιᾶνι στυγνῷ συρίγγων τ᾽ εὐφθόγγων φωνᾷ βαίνουσαι πλεκτὰν Αἰγύπτου παιδείαν ἐξηρτήσασθ᾽, αἰαῖ, Τροίας ἐν κόλποις τὰν Μενελάου μετανισόμεναι στυγνὰν ἄλοχον, Κάστορι λώβαν τῷ τ᾽ Εὐρώτᾳ δυσκλείαν, ἃ σφάζει μὲν τὸν πεντήκοντ᾽ ἀροτῆρα τέκνων Πρίαμον, ἐμέ τε μελέαν Ἑκάβαν ἐς τάνδ᾽ ἐξώκειλ᾽ ἄταν.

Proas dos navios, com velozes remos chegando à sacra Ílion pelo mar purpúreo e por portos helenos de bom abrigo, com o odioso peã dos aulos e ao som de siringes bem-soantes, a egípcia arte

trançada vós ligastes, aiai, aos ventres de Troia, para encontrar a odiosa

esposa de Menelau, ultraje para Cástor e inglória para o Eurotas,

a qual imolou

o semeador de cinquenta filhos, Príamo, e a mim, infeliz Hécuba,

Naufragou nesta desgraça. (Troianas, v.122-137).104

A rainha teme ser escrava na terra de Menelau, marido de Helena (v.208- 213), o que seria uma desonra ainda maior105. O rei espartano não considera a situação de Helena de forma diferente das outras mulheres troianas, não sabendo ao certo como julgá-la (v.860-883). Hécuba pede que Menelau não se deixe levar pela beleza de Helena, evitando olhá-la. A aparência é mais uma vez apontada como arma terrível:

αἰνῶ σε, Μενέλα᾽, εἰ κτενεῖς δάμαρτα σήν. ὁρᾶν δὲ τήνδε φεῦγε, μή σ᾽ ἕλῃ πόθῳ. αἱρεῖ γὰρ ἀνδρῶν ὄμματ᾽, ἐξαιρεῖ πόλεις, πίμπρησιν οἴκους: ὧδ᾽ ἔχει κηλήματα. ἐγώ νιν οἶδα, καὶ σύ, χοἱ πεπονθότες. Elogio-te, Menelau, se matares tua esposa.

Mas escapa de vê-la, que não te agarre com o anseio. Pois agarra o olhar dos homens, arrasa cidades, queima casas: assim é seu charme.

Eu a conheço, e tu e os que sofreram. (Troianas, v.890-894).

Comparando-a com uma arma de guerra, capaz de destruir cidades, Helena é portadora de grande beleza, a arma feminina, artifício que será usado também em Lisístrata: “Pelo menos Menelau tendo visto os seios/ de Helena nua lançou fora, acredito, a espada” (v.155). É através da sedução inerente ao sexo feminino que as mulheres poderão causar a excitação nos homens e, contrariamente ao que faz Helena, dar um fim à guerra. Respondendo finalmente a Hécuba e Menelau, a filha de Zeus tece uma defesa para si:

[...] πρῶτον μὲν ἀρχὰς ἔτεκεν ἥδε τῶν κακῶν, Πάριν τεκοῦσα: δεύτερον δ᾽ ἀπώλεσε Τροίαν τε κἄμ᾽ ὁ πρέσβυς οὐ κτανὼν βρέφος, δαλοῦ πικρὸν μίμημ᾽, Ἀλέξανδρόν ποτε. ἐνθένδε τἀπίλοιπ᾽ ἄκουσον ὡς ἔχει. [...] κάλλει. τὸν ἔνθεν δ᾽ ὡς ἔχει σκέψαι λόγον: νικᾷ Κύπρις θεάς, καὶ τοσόνδ᾽ οὑμοὶ γάμοι ὤνησαν Ἑλλάδ᾽: οὐ κρατεῖσθ᾽ ἐκ βαρβάρων, οὔτ᾽ ἐς δόρυ σταθέντες, οὐ τυραννίδι. 104

Todos os trechos em grego retirados de Troianas e Hécuba foram traduzidos por Christian Werner (2004).

105 Para um estudo mais aprofundado de Helena, vide o texto de Cíntia Araújo Oliveira, Drama tecido em palavras: Multiplicidades de Helena no teatro de Eurípides. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós- Graduação em Letras). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2015.

ἃ δ᾽ εὐτύχησεν Ἑλλάς, ὠλόμην ἐγὼ εὐμορφίᾳ πραθεῖσα, κὠνειδίζομαι ἐξ ὧν ἐχρῆν με στέφανον ἐπὶ κάρᾳ λαβεῖν. [...] εἶἑν. οὐ σέ, ἀλλ᾽ ἐμαυτὴν τοὐπὶ τῷδ᾽ ἐρήσομαι: τί δὴ φρονοῦσά γ᾽ ἐκ δόμων ἅμ᾽ ἑσπόμην ξένῳ, προδοῦσα πατρίδα καὶ δόμους ἐμούς; τὴν θεὸν κόλαζε καὶ Διὸς κρείσσων γενοῦ, ὃς τῶν μὲν ἄλλων δαιμόνων ἔχει κράτος, κείνης δὲ δοῦλός ἐστι: συγγνώμη δ᾽ ἐμοί. [...]

Primeiro, essa aí gerou as origens dos males, Páris tendo gerado: depois, o velho

destruiu Tróia e a mim, ao não matar o bebê, acre imitação de um tição – Alexandre, então. [...]

Observa minha fala seguinte:

Cípris vence as deusas, e minhas bodas nisso serviram à Hélade: nem dominados por bárbaros, nem tendo pego em armas, nem sob tirania. No que a Hélade foi afortunada, eu fui destruída, vendida pela formosura, reprochada

por quem deveria coroar minha cabeça. [...]

Pois bem.

Não a ti, mas a mim mesma ainda indagarei isto: em que pensando de casa acompanhei

o hóspede, traindo a pátria e minha casa? Castiga a deusa e sê mais poderoso que Zeus, o qual tem domínio sobre os outros numes,

mas daquela é escravo: assim, compreende-me. (Troianas, v.919-922; 931- 937; 945-950).

Helena, como boa oradora, recorre aos mitos para salvar-se e aponta Páris (Alexandre) como o verdadeiro culpado, uma vez que foi ele que escolheu a deusa cípride no lugar de Atena e Hera. Antes mesmo de Páris, seus pais foram também culpados, já que mesmo sabendo da profecia que previa o fim de Troia através do filho de Hécuba, nada fizeram para impedi-lo. A desgraça de Helena serviu, na verdade, para enriquecer a Hélade e para criar a perfeita oportunidade de heróis como Aquiles e Odisseu ganharem as honras que somente uma guerra poderia propiciar. Culpar Helena por seu sequestro é culpar Afrodite, aquela que de todas mais ama Helena e a raça das mulheres.

Na Helena de Eurípides, a filha de Tíndaro nunca teria ido realmente para Troia, tendo sido levada até o Egito onde ficou sob a guarda do rei Proteu. Em seu lugar, um ídolo feito de éter, fabricado por Hera, foi levado por Páris e gerou a guerra.

A imagem de Helena, a ideia de possuir a mulher mais bela do mundo, é a causadora da guerra.Esta versão é também sustentada pelo Dióscuro na Electra de Eurípides:

σοὶ μὲν τάδ᾽ εἶπον: τόνδε δ᾽ Αἰγίσθου νέκυν Ἄργους πολῖται γῆς καλύψουσιν τάφῳ. μητέρα δὲ τὴν σὴν ἄρτι Ναυπλίαν παρὼν Μενέλαος, ἐξ οὗ Τρωικὴν εἷλε χθόνα, Ἑλένη τε θάψει: Πρωτέως γὰρ ἐκ δόμων ἥκει λιποῦσ᾽ Αἴγυπτον οὐδ᾽ ἦλθεν Φρύγας: Ζεὺς δ᾽, ὡς ἔρις γένοιτο καὶ φόνος βροτῶν, εἴδωλον Ἑλένης ἐξέπεμψ᾽ ἐς Ἴλιον. Assim te disse. Cidadãos de Argos darão sepultura ao corpo de Egisto. Menelau e Helena, já em Náuplia agora que capturou a terra troiana, darão à tua mãe. Da casa de Proteu desde o Egito vem, não foi à Frígia. Zeus, para a rixa e morte de mortais,

enviou a imagem de Helena a Ílion. (Electra, v.1276-1283).106

Será o belo corpo de uma mulher também usado como metáfora de conquista militar em Lisístrata (v.1161-1173). Helena, como seu próprio nome indica, pode simbolizar a própria Hélade, o que explicaria sua importância para os aqueus. Seu corpo é causa de malefícios: “O meu corpo, pelo contrário,/ foi a minha perdição e perdeu a cidade dardânia,/ causando morte aos aqueus”. (v.383-385). A heroína gostaria antes de uma aparência feia ao invés de uma bela, se isso fizesse com que os gregos a perdoassem: εἴθ᾽ ἐξαλειφθεῖσ᾽ ὡς ἄγαλμ᾽ αὖθις πάλιν αἴσχιον εἶδος ἔλαβον ἀντὶ τοῦ καλοῦ, καὶ τὰς τύχας μὲν τὰς κακὰς ἃς νῦν ἔχω Ἕλληνες ἐπελάθοντο, τὰς δὲ μὴ κακὰς ἔσῳζον ὥσπερ τὰς κακὰς σῴζουσί μου.

Oxalá pudesse apagar os meus traços, como se fora uma imagem, e em troca tomar nova forma, uma feia em vez de bela,

e assim a funesta fortuna que agora possuo pudessem os helenos esquecer, a minha inocência

guardando na memória, como preservam as maldades. (Helena, v.262-266).

Ainda que esta peça dê uma nova roupagem à Helena, agora no papel de injustiçada, as imprecações contra sua figura aparecem por toda a peça107, confirmando

106

Todos os trechos em grego retirados da Electra de Eurípides foram traduzidos por Jaa Torrano (2016).

as palavras de Teucro: “É que a Hélade inteira odeia a filha de Zeus”. (v.81). Em Electra de Eurípides, Clitemnestra também faz acusações severas contra a irmã, responsabilizando-a pela guerra e pela morte de Ifigênia:

κεἰ μὲν πόλεως ἅλωσιν ἐξιώμενος, ἢ δῶμ᾽ ὀνήσων τἄλλα τ᾽ ἐκσῴζων τέκνα, ἔκτεινε πολλῶν μίαν ὕπερ, συγγνώστ᾽ ἂν ἦν: νῦν δ᾽ οὕνεχ᾽ Ἑλένη μάργος ἦν ὅ τ᾽ αὖ λαβὼν ἄλοχον κολάζειν προδότιν οὐκ ἠπίστατο, τούτων ἕκατι παῖδ᾽ ἐμὴν διώλεσεν. Se para repelir a destruição da urbe, ou servir à casa e salvar outros filhos, por muitos matasse um, teria escusa. Mas porque Helena era sim devassa e o marido não soube punir traição,

por causa disso, matou minha filha. (Electra, v.1024-1029).

O corpo e a beleza femininos não são atributos inteiramente positivos, como seriam para os homens. Helena é a mais célebre personagem feminina da Antiguidade justamente por sua infâmia, enquanto personagens masculinos como Aquiles e Ájax são famosos por sua honra e bravura, por sua kléos. Segundo Electra, Helena e sua irmã se aproximam em beleza, mas também em caráter:

τὸ μὲν γὰρ εἶδος αἶνον ἄξιον φέρειν Ἑλένης τε καὶ σοῦ, δύο δ᾽ ἔφυτε συγγόνω, ἄμφω ματαίω Κάστορός τ᾽ οὐκ ἀξίω. ἣ μὲν γὰρ ἁρπασθεῖσ᾽ ἑκοῦσ᾽ ἀπώλετο, σὺ δ᾽ ἄνδρ᾽ ἄριστον Ἑλλάδος διώλεσας, σκῆψιν προτείνουσ᾽, ὡς ὑπὲρ τέκνου πόσιν ἔκτεινας: οὐ γάρ σ᾽ ὡς ἔγωγ᾽ ἴσασιν εὖ. Pela forma sois digna de ouvir loas

Helena e tu, mas sois ambas as irmãs duas frívolas e não dignas de Castor. Ela raptada de bom grado sucumbiu, e tu mataste o melhor varão da Grécia, alegando a defesa da filha, destruíste

o marido. Não bem te sabem qual eu. (Electra, v.1062-1068).

O rapto é um episódio retomado constantemente como uma falta de Helena, a causadora da guerra. Seu suposto comportamento lascivo é danoso para a fama das mulheres, as quais devem preservar-se castas. Mesmo que os homens cometam os mesmos erros que as mulheres, como arranjar uma amante (a exemplo do que fez Agamêmnon), eles nunca serão julgados da mesma forma:

μῶρον μὲν οὖν γυναῖκες, οὐκ ἄλλως λέγω: ὅταν δ᾽, ὑπόντος τοῦδ᾽, ἁμαρτάνῃ πόσις τἄνδον παρώσας λέκτρα, μιμεῖσθαι θέλει γυνὴ τὸν ἄνδρα χἅτερον κτᾶσθαι φίλον. κἄπειτ᾽ ἐν ἡμῖν ὁ ψόγος λαμπρύνεται, οἱ δ᾽ αἴτιοι τῶνδ᾽ οὐ κλύουσ᾽ ἄνδρες κακῶς. Tontas são as mulheres, não nego.

Suposto isso, quando o marido erra por desdém ao leito, a mulher tende a imitar ao varão e obter outro seu. Reprovação depois brilha sobre nós,

essa culpa não compromete os varões. (Electra, v.1035-1040).

Clitemnestra na verdade é culpada não somente de ter um amante (Egisto), mas de ter matado e usurpado o rei, que também era seu marido e pai de seus filhos. Suas ações, como serão mais bem exploradas na seção seguinte, fazem-na uma mulher atípica, forte e insubmissa. A mulher prudente é o contrário de tudo isso:

Χορός δίκαι᾽ ἔλεξας: ἡ δίκη δ᾽ αἰσχρῶς ἔχει. γυναῖκα γὰρ χρὴ πάντα συγχωρεῖν πόσει, ἥτις φρενήρης: ᾗ δὲ μὴ δοκεῖ τάδε, οὐδ᾽ εἰς ἀριθμὸν τῶν ἐμῶν ἥκει λόγων. Coro

Falaste com justiça, e a justiça é vil. A mulher deve ceder ao marido sempre, a prudente, mas a que assim não pensa

não vem ao número de minhas contas. (Electra, v.1051-1054).

O caráter “reconciliador” de Helena talvez tenha sido um dos motivos que levaram esta peça a ser parodiada em Tesmoforiantes, além da utilização de elementos que geralmente são empregados em comédias, como o disfarce (usado por Menelau), o reconhecimento pouco convincente e um inesperado final feliz108. Todos esses elementos são reutilizados na peça por Eurípides e seu Parente, que usa o disfarce de Helena, recém-reconciliada com o público, para apelar à simpatia das mulheres109. A comédia se apropria de elementos ligados à beleza feminina, como adereços e vestidos, e transfere para esses objetos a dita “infâmia” das mulheres.

Mesmo quando não ultrapassam os limites do oikos, as ações das mulheres ainda são reprováveis, já que, a exemplo de Helena, elas são motivadas por Afrodite. É

108

FARIA, 2010, p.18.

no amor, no casamento, que as mulheres concretizam sua identidade última, passando de filha a esposa e, posteriormente, a mãe. Somente nessa instituição que os homens são capazes de enxergar a respeitabilidade e o valor femininos.

Documentos relacionados