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3. ANTROPOFAGIA NO CINEMA SGANZERLIANO: METODOLOGIA

3.1. SEM ESSA, ARANHA: VIBRAÇÕES ANTROPOFÁGICAS

3.1.2. Helena: rosto de umbanda

Ainda analisando a personagem de Helena Ignez em Sem essa, Aranha (1970), em um momento mais próximo ao final do filme, um trecho67 que evidencia experiências antropófagas na face, agora, inicia-se com a imagem da personagem de Helena portando uma adê, considerado artefato comum durante os rituais de religiões afro-brasileiras.

Na sequência de imagens em análise, o rosto da personagem nos auxiliará na compreensão da antropofagia, agora, relacionada à religião, especificamente o candomblé. Nela, iremos mostrar como o processo de deglutição e regurgitação a partir do rosto da personagem, tal como proposto por Oswald de Andrade no Manifesto antropófago (1928), concebe a presença da antropofagia no personagem.

Figura 13 - Frames do filme Sem essa, Aranha (1970) de Rogério Sganzerla

Fonte: (DVD/Acervo próprio)

A sequência68 que desvela a antropofagia em Sem essa, Aranha (1970) se dá quando uma trupe de artistas aparece nos bastidores de um teatro de revista localizado no Paraguai e cujo proprietário, também, é Aranha, conhecido como o último capitalista. No trecho, há novamente a presença das amantes de Aranha interpretadas por Maria Gladys e Helena Ignez sendo que a última aparece na imagem com o rosto coberto por uma adê, Artefato que compõe o traje ritual de uma divindade, provavelmente do Orixá Iemanjá, que possui nas cores prata, branco e azul o simbolismo de reconhecimento nos terreiros. Iemanjá é a personificação do mar e mãe de todos os orixás e, foi associada a Nossa Senhora dos Navegantes (Almeida & Andrade, 2016). Elas interagem com os demais personagens da trama no que sugere ser, sem exagero algum, um pesadelo composto de um turbilhão caótico de imagens e sons característicos do ponto fora da curva que foi o Cinema Marginal.

Inicialmente, eles parecem estar falando sobre alguma premonição relativa à morte, fenômeno comum em pesadelos e na própria realidade brasileira durante as perseguições, torturas e assassinados promovidos com o Golpe Militar brasiliro (1964-1988). A personagem de Helena diz: "Pode deixar que amanhã eu me mato. Permanente".A frase é complementada pelo som estridente do que parece ser uma lata de metal chutada incessantemente no set de filmagem, criando assim, um som quase insuportável de se ouvir. Enquanto isso, um artista pirofágico69, deglute e regurgita bolas em chamas. Ainda que não esteja ele no palco propriamente dito, mas nos bastidores, ele age como se estivesse sob os holofotes.

O enquadramento muda, o som frenético é cessado no mesmo momento em que a personagem de Helena (Iemanjá em transe), desvela traços de seu rosto até então ocultados pelo adê. A câmera percorre o corpo de Márcia, nua sob uma aranha. O enquadramento muda novamente, colocando mais uma vez em close, o homem e suas chamas. O som estridente do balde de lata acompanhado de um metrônomo retorna impulsionado pelos atos de deglutição e

68 SEM ESSA, ARANHA. Sequência situada entre 00:48:28 e 00:51:00. 69

A pirofagia é a arte de engolir, cuspir e passar fogo no corpo. São performances que põem o artista em risco, pois são ligadas a uma série de manobras acrobáticas realizadas com altas chamas.

regurgitação do malabarista e da personagem de Maria Gladýs que devora um pedaço de pão. Enquanto a câmera volta a enquadrar o rosto do malabarista antropófago, Helena diz: ―É preciso pecar em dobro para o mundo não virar de pernas pro ar‖.

Se, conforme Beatriz Azevedo (2018, p. 75), ―a antropofagia de Oswald de Andrade devora as inovações estéticas das vanguardas europeias na perspectiva da realidade brasileira e incorpora a tradição de uma cultura apagada pelo colonizador‖, as conexões expostas a seguir evidenciam tal perspectiva nas imagens selecionadas de Sem essa, Aranha (1970). Contudo, segundo a autora a forma de atuação de Oswald corresponde não somente à devoração de técnicas e informações estrangeiras, mas, especialmente, a redescoberta das perspectivas dos povos originários, ancestrais, mas atuais, nacionais, americanas.

Podemos partir do postulado preliminar de que a personagem de Maria Gladys, que, aliás, emite com frequência a frase: ―Ai que fome. Que dor de barriga. Eu tô com muita fome‖ evidencia uma característica do Cinema Marginal: devorar outras tradições estéticas assim como a antropofagia oswaldiana se alimentou da vanguarda europeia. Na sequência em questão, ela devora um pedaço de pão que por sua vez, pode ser compreendido como a presença em cena da hóstia, símbolo do catolicismo, ao mesmo tempo em que Maria Gladys compartilha o enquadramento com Helena Ignez (Iemanjá). Entretanto, uma não substitui a outra e sim, dão origem a uma nova religião, a umbanda, que representado no rosto de Helena como Iemanjá traz em seguida, no plano de profundidade a devoração da hóstia católica simbolizada pelo pão que serve de alimento, energia para a personagem de Maria Gladys continuar sua existência. Também há a figura do malabarista que como artista pirofágico deglute chamas em um ciclo contínuo como uma vela que não pode se apagar.

O orixá Iemanjá, a mais conhecida entre os brasileiros incorporou características de Nossa Senhora, pois ela branqueou, seus olhos clarearam e ficou ainda mais generosa. Por isso, Helena interpreta Iemanjá no filme. No entanto, iemanjá, na origem é oriunda da África, portanto para manter viva sua religiosidade autentica, os escravos se uniram para cultuar um orixá limitado a determinada população africana, na origem e passou a cultuar Iemanjá com características da religião vigente da época, o catolicismo em um ato de antropofagia, claro. Portanto, o rosto de Helena como Iemanjá não está calcado na branquitude característica de um rosto aos moldes do cinema hollywoodiano que:

―não apenas individualizava seus intérpretes, como os transformava em mitos. Todo o pensamento do star system, estudado mais tarde por Edgar Morin como a política de utilização e rentabilização econômica em cima das particularidades comportamentais e físicas de determinados atores, era no sentido de singularizar os intérpretes, pelos discursos fílmicos e parafilmicos, e torná-los verdadeiras superfícies para o reflexo de desejos

coletivos. O objetivo final do star system era econômico: facilitar a venda de ingressos de filmes e a penetração da ideologia burguesa e romântica junto aos espectadores‖ (Guimarães, 2016b, p. 97-98).

Assim, o rosto de Helena não representa uma imagem de rostidade na medida em que age mais como o rosto intensivo dos operários e marinheiros eisensteinianos em suas cenas de eclosões com a opressão burguesa das quais são alvos e menos como o cinema de D. W Griffith que entende o rosto como espelho dos afetos. Eisenstein buscava romper com essa representação estética, pois o que mais chama atenção no rosto de seus personagens são os gestos abruptos e sua relação com a causa maior entre todos e não mais com o que há de intimo, de próprio do sujeito. Em objeção à demasia de singularização e personalismo do pensamento clássico acerca do rosto pelos filmes de W. Griffith, ―Eisenstein agia no sentido contrário, reivindicando que seu rosto de classes pudesse representar o maior número de indivíduos possível, assim como os rostos das pranchas de fotografias de Lombroso o faziam‖ (Guimarães, 2016b, p. 98). O cinema soviético não praticou os preceitos que a ciência da fisionomia lançou mão durante todas as suas fases.

Conforme Guimarães (2016), o rosto do ator de formação stanislavka no cinema norte-americano clássico fundamentava-se em expressar seus sentimentos por via de gestos e:

―assim experimentar internamente o sentimento para depois expressá-lo exteriormente, através de signos identificáveis semiologicamente pelo espectador‖. Para o autor, essa maneira de atuar rosto constrói padrões de gestos para determinados sentimentos, sobretudo no cinema clássico norte-americano, como o movimento cinematográfico conhecido como melodrama, Esse movimento traz uma estética similar á teatral do século XIX ao compor uma relação intrínseca entre emoção e representação, através de personagens com seus gestos facilmente identificáveis. ―com linguagens fortemente codificadas e imediatamente identificáveis‖ (2016b, p. 98). Em contrapartida, no cinema eisensteiniano e do cinema soviético em geral, os atores dedicam-se a romper com a mutualidade entre o interno e externo. Para tal, os atores usam de performances caricaturias e grotescas, ou melhor, maquinais. Segundo Guimarães (2016b), Essas influências, Eisenstein trazia da escola meyerholdiana de atuação teatral que não buscava nenhuma de exteriorização de seu próprio eu, pois para Meyerhold o treino do ator além de corporal, também deve ser intelectual. O método meyerholdiano pode ser resumido como a atuação da vida em cena e não sua imitação assim como o tom de alegria dos atores deve ser uma tônica com liberdade para sair da esfera do personagem e atuar a partir de gestos que não correspondem com a identidade do personagem. ―Isso significa que o ator tem autonomia para criar, pois não é exigida uma reprodução precisa da concepção do diretor‖ (Romano, 2017, p.51).

―Nessas investigações a música, enquanto ritmo e não como simples acompanhamento, tornou-se essencial; sendo assim, o trabalho dos atores passa a construir-se a partir do ritmo definido, subordinado a ele, e tanto a dicção como a movimentação plástica dos atores deve se apoiar nessa estrutura rítmica. Nessa forma de teatro o ator não oferece a ilusão de que os acontecimentos apresentados ao público não foram estudados e previamente ensaiados e, ao mesmo, tempo o público sente a vida que emana do palco, ou seja, da obra de arte‖ (Romano, 2017, p. 52-53).

Com a liberdade para criar, o que mais chama atenção no rosto da personagem de Helena são os mínimos rastros no rosto em si. Mas mais do que objeto, em Sem essa, Aranha (1970) o adê característico do Orixá Iemanjá interpretada por Helena, é uma personagem chave, de caráter múltiplo, pois habita não somente em sua forma física o rosto de Helena, mas é fundida à própria antropofagia que contem o fator religioso do ritual antropofágico para se diferenciar de canibalismo.

Nesse sentido a personagem de Helena é a representação do orixá Iemanjá. Pois bem, a partir desses rastros vamos a outros, ao aforismo 39 do Manifesto de Oswald de Andrade: ―As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios, e o tédio especulativo‖ (Andrade, 2017, p. 56).

―Os Orixás são ancestrais africanos divinizados pelas forças da natureza tal como a água do mar, dos rios, das chuvas, dos raios, dos trovões, dos ventos... trazidos pelo processo da diáspora Africana ao redor do mundo, bem como aqui no Brasil, sendo cultuados e sobrevivendo na nossa cultura. Orixá é força, é vida, é presente, é sabedoria, é conhecimento, é epistemologia do presente, passado e do futuro, cultuados nas religiões de matriz africana tal como Umbanda e Candomblé‖ (Sant‘anna, p. 275, 2019). A fuga dos estádios tediosos de Oswald de Andrade é uma característica fundamental da formação dos orixás, conceitualmente e historicamente. Do ponto de vista conceitual, Iemanjá pode transitar entre comportamentos generosos e outros maldosos, grosso modo falando. Do ponto de vista histórico, temos na orixá a personificação do sincretismo católico.

Por fim, tais compreensões das imagens em questão não emergem de uma disposição latente nos frames, nossa análise buscou atentar-se aos detalhes como: ―no jogo, que apela a todos os sentidos, sem excluir o dom atávico da vidência, chega também a vez dos olhos. Todos os números piscam, fazendo-lhes sinais.‖ (Benjamin, 2013, p. 120). Como no jogo, olhamos o detalhe, contrariando a tendência de um olhar viciado em uma sociedade de imagens banalizadas. Portanto, a antropofagia emerge como rastros, isto é, presente, mas ocultada. Relembremos aqui, que antropofagia sem o viés religioso, não é antropofagia, mas canibalismo. Nesse sentido, a presença da umbanda foi central para defender nosso objetivo

de pesquisa que se propõe a investigar a presença dos rastros de antropofagia no rosto. A própria dinâmica da umbanda pode ser comparada com a antropofagia tal como encontramos em determinados aforismos do Manifesto antropófago (1928) como bem pontuou Beatriz Azevedo.