No ano de 1879, José Vieira Marcondes, em sua tese de doutorado da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, descreveu suas experiências empíricas sobre transfusão de sangue, questionando qual seria a melhor forma de transfusão: entre animais e seres humanos ou a realizada entre dois seres humanos. Porém o relato mais relevante veio de Salvador, quando o médico Garcez Fróes realizou a primeira transfusão de sangue, utilizando o aparelho de Agote, por ele idealizado, transfundido 129 ml de sangue de um doador para uma receptora com metrorragia grave (FIDLARCZYK; FERREIRA, 2008) (Figura 1).
Figura 1: Aparelho de Agote e Adaptação de Eugênio de Souza
Algum tempo depois surgiram serviços especializados, composto de um médico transfusionista e de um corpo de doadores universais, do grupo sanguíneo universal (O), que eram selecionados e examinados, para constatação de suas boas condições de saúde. O instrumento utilizado para infusão do sangue do doador ao receptor, por sua simplicidade de manuseio e facilidade de esterilização, era a seringa de Jubé (Figura 2) (JUNQUEIRA; ROSENBLIT; HAMERSCHLAK, 2005).
Figura 2: Seringa de Jubé
Fonte: JUNQUEIRA; ROSENBLIT; HAMERSCHLAK, 2005.
A hemoterapia brasileira constituiu-se como especialidade médica a partir da década de 1940. Em 1942, o primeiro banco de sangue do Brasil foi inaugurado no Instituto Fernandes Figueira, Rio de Janeiro, objetivando suprir a necessidade de sangue para este hospital e atender ao esforço de guerra, enviando plasma humano para os hospitais das frentes de batalha (JUNQUEIRA; ROSENBLIT; HAMERSCHLAK, 2005).
Surgem, nesse período, os bancos de sangue privados, o que gerou uma situação de comércio e lucratividade, que acompanhada da falta de esclarecimento da população, favoreceu a proliferação de doenças transmissíveis pelo sangue e o baixo rendimento transfusional (FIDLARCZYK; FERREIRA, 2008).
No início do século XX os doadores recebiam remuneração de 500 réis/mm³ de sangue doado ou, no caso de doadores imunizados, a 750 réis/mm³ e eram altamente selecionados. Uma das causas da baixa doação de sangue estava na proibição de solicitação de doações de parentes e amigos dos pacientes da Previdência Social, pois os sindicatos entendiam que o Governo pagava o sangue e, por isso, não
havia a necessidade de reposição dos estoques. Outro problema na área de Hemoterapia estava na falta de doadores, levando os serviços públicos à exigência de doação de sangue para internar os pacientes ou à realização de coletas de sangue em presídios. Os bancos de sangue privados, por sua vez, recorriam nas capitais e cidades de médio porte à doação remunerada, criando, assim, uma profissão, a do doador gratificado (GUERRA, 2005).
Ainda na década de 40, a hemoterapia no Brasil apresentou destaques científicos importantes, como dois eventos que merecem ser citados: o curso de hematologia promovido por Walter Oswaldo Cruz, em Manguinhos, uma pós-graduação da época e nos anos 50 à fundação da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (SBHH), que possibilitou a consolidação das duas especialidades (JUNQUEIRA; ROSENBLIT; HAMERSCHLAK, 2005).
No ano de 1950, com a iniciativa do Banco de Sangue do Distrito Federal, foi promulgada a lei nº 1075, de 27 de março de 1950, que dispõe sobre a Doação Voluntária de Sangue. Neste cenário o Brasil, que tinha 80% de doação remunerada, passou a ter exclusivamente doadores voluntários (JUNQUEIRA; ROSENBLIT; HAMERSCHLAK, 2005).
Os gestores se espelharam na experiência mundial de países que deixaram de remunerar doadores, percebendo que, para se atingir a doação altruísta, era necessário um estágio intermediário com o apelo à doação de reposição entre amigos e familiares dos pacientes que necessitavam de transfusões. No dia 1° de maio de 1980, o sistema de doação remunerada foi finalizada no estado de São Paulo (GUERRA, 2005).
Na década de 1960, os serviços de coleta iniciaram a implantação dos testes sorológicos para doença de Chagas, sífilis e hepatite B (FIDLARCZYK; FERREIRA, 2008). No período de 1964 a 1979, a Hemoterapia no Brasil tinha legislação e normatização adequadas, no entanto ainda necessitava de rígida fiscalização das atividades hemoterápicas desenvolvidas e de uma política de sangue consistente. O sistema era desordenado, de um lado serviços públicos e privados de altíssimo nível técnico e científico e de outro, serviços de péssima qualidade, com interesses meramente comerciais, onde na maioria das vezes os cuidados com a saúde dos doadores não eram prioritários. As indústrias de hemoderivados, em geral, estimulavam a obtenção de matéria prima através de doadores remunerados e da prática da plasmaférese (JUNQUEIRA; ROSENBLIT; HAMERSCHLAK, 2005).
Fidlarczyk e Ferreira (2008) colocam que a década de 1980 foi de grande importância para a hemoterapia brasileira, por meio da
reorganização do sistema de sangue, através da criação do Programa Nacional de Sangue. A Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 199, proíbe toda e qualquer forma de comercialização de sangue e derivados. Neste ponto, alguns acontecimentos que culminaram na reorganização do sistema hemoterápico no Brasil são elencados:
• A cooperação Brasil- França e o Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados, que perdura até os dias atuais; • A Constituição de 1988.
As principais mudanças no sistema hemoterápico brasileiro, em consonância com o que aconteceu em todo o mundo, ocorreram por causas aleatórias como, por exemplo, o advento da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e por razões econômicas. Em 1981, a AIDS foi reconhecida pelo Centro de Controle de Doenças nos Estados Unidos como entidade nosológica (JUNQUEIRA; ROSENBLIT; HAMERSCHLAK, 2005).
Em seguida, foi estabelecido que as transfusões de sangue, componentes e derivados poderiam ser considerados fontes de transmissão de doenças como AIDS, hepatites, sífilis, entre outras. Nos anos 80, no Brasil, cerca de 2% dos casos de AIDS eram transmitidos por transfusão e mais de 50% dos hemofílicos apresentavam-se infectados pelo vírus HIV. O aparecimento da AIDS introduziu novos procedimentos, tais como: a substituição da doação anônima pela personalizada, o incremento de todos os métodos de autotransfusão e a disciplina do uso do sangue, de seus componentes e derivados através de criteriosa avaliação do trinômio risco/benefício/custo (JUNQUEIRA; ROSENBLIT; HAMERSCHLAK, 2005).
A Comissão Nacional de Hemoterapia e o Ministério da Saúde, através de decretos, portarias e resoluções, determinam o primado da doação voluntária de sangue e o estabelecimento de medidas de proteção a doadores e receptores, as normas para o fornecimento de matéria- prima para a indústria de fracionamento plasmático e a importação e exportação de sangue e hemoderivados. Foi implantado o registro oficial dos bancos de sangue públicos e privados, a publicação de normas básicas para atendimento a doadores e para prestação de serviço transfusional e a determinação da obrigatoriedade dos testes sorológicos necessários para segurança transfusional (JUNQUEIRA; ROSENBLIT; HAMERSCHLAK, 2005).
No Brasil, a regulamentação da hemoterapia é realizada pela Portaria do Ministério da Saúde (MS) n. 1.353 de 14 de junho de 2011, que normatiza e padroniza os procedimentos hemoterápicos, incluindo procedimentos de coleta, processamento, testagem, armazenamento,
transporte e utilização, visando garantir a qualidade do sangue. Estabelece ainda, regras e procedimentos que devem ser conhecidos e seguidos pelos profissionais que trabalham com transfusões, bem como o padrão de documentação relacionada a estes procedimentos (BRASIL, 2011a).
O Programa Nacional do Sangue e Hemoderivados vem se estruturando desde o ano de 1980 e ainda assim, apresenta lacunas ao nível da segurança transfusional. A transfusão de hemocomponentes celulares é a transplantação de um tecido vivo aplicado em um indivíduo debilitado. Por isso, devemos ponderar, mais uma vez, os riscos em relação aos benefícios pretendidos com o procedimento transfusional (BORDIN et al., 2007).
Nos últimos 30 anos, a tecnologia da informação tem contribuído consideravelmente para melhorar a segurança da medicina transfusional, especialmente nos equipamentos de laboratórios, com sistemas automatizados, complementando a coleta de sangue total, com a coleta de componentes sanguíneos específicos com a utilização de máquinas de aférese. Automatizando o processamento de sangue bem como na implementação de sistemas de gestão de sangue com diferentes graus de complexidade (desde a gestão de doadores à gestão de doentes até compatibilização) (LEAL, 2010).
A portaria determina que:
[...] - Procedimentos operacionais (PO) - são documentos detalhados baseados em processos e procedimentos que refletem a prática atual da instituição e visam sua padronização. São geralmente apresentados em módulos e incluem as atividades de "Boas Práticas de Fabricação - BPF" e as especificações necessárias. Devem ser anualmente avaliados e atualizados quando apropriado, levando-se em conta que a introdução de novas técnicas deve ser precedida de avaliação e validação dos procedimentos, para assegurar os critérios de qualidade;
Art. 15. Cada serviço de hemoterapia deve manter um conjunto de procedimentos operacionais, técnicos e administrativos para cada área técnica e administrativa.
§ 1º Os procedimentos operacionais devem ser elaborados pelas áreas técnicas e administrativas pertinentes, incluindo medidas de biossegurança, aprovados pelos responsáveis técnicos dos setores relacionados e pelo responsável técnico do serviço
de hemoterapia ou conforme determinado pelo programa de garantia de qualidade de cada instituição no seu manual da qualidade válido. § 2º Estes procedimentos devem estar disponíveis a todos os funcionários. O cumprimento das disposições contidas nos procedimentos é obrigatório para todo o pessoal atuante.
Art. 16. Os responsáveis, técnico e administrativo, com apoio da direção do serviço de hemoterapia, devem assegurar que todas as normas e procedimentos sejam apropriadamente divulgados e executados. [...] (BRASIL, 2011a p.6-10)