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Heródoto Adriane da Silva Duarte

No documento Generos Poeticos Na Grecia Antiga Conflu (páginas 79-99)

Universidade de São Paulo

Pode-se argumentar que a mais importante e influente semelhança entre Heródoto e Homero reside

na qualidade mimética de suas narrativas.1

1 Boedeker, D. Epical heritage and mythical patterns in Herodotus. In: Bakker, E.; De Jong, I.; Van Wees, H. (Ed.) Brill’s Companion to Herodotus. Leiden: Brill, 2002, p. 106. As traduções constantes nesse texto, salvo indicação contrária, são de minha autoria.

O título acima não é inteiramente satisfatório na medida em que é redutor, em vista da aproximação pretendida entre Homero e Heródoto, e pouco específico, já que a digressão, embora bastante presente nos dois autores, assume configurações e significados diversos de acordo com o contexto. Mantive-o, no entanto, porque ao menos tem a virtude de descrever parcialmente do que devo tratar, ainda que de maneira incipiente. Assim, coube à epígrafe de Boedeker a função de determinar o que realmente me interessa nessa aproximação, ao mesmo tempo em que aponta para a dívida que tenho para com seu texto, que me pareceu abordar essa questão tantas vezes visitada, mas com tanto partidarismo e imprecisão, com grande clareza e equilíbrio.

Ao invocar a “qualidade mimética”, Boedeker esclarece que (itálicos meus):2 “Como a épica homérica, Histórias não registra simplesmente o resultado de ações passadas, mas apresenta uma recriação de cunho imaginativo e dramático do como e porque a ação aconteceu”. Essa recriação dramática, calcada na imaginação (ou, nas palavras de Aristóteles, “naquilo que poderia ter acontecido”),3 apoia-se basicamente no emprego do discurso direto que revela “o caráter, a motivação e o destino dos agentes históricos”.4 Os diálogos, como todo o resto, subordinam-se a uma voz narrativa, que assume para si a função de selecionar e

2 Boedeker (n. 1), p. 106.

3 Em Poética 1451b, Aristóteles estabelece a célebre comparação entre poetas e historiadores: ἀλλὰ τούτῳ διαφέρει, τῷ τὸν μὲν τὰ γενόμενα λέγειν, τὸν δὲ οἷα ἂν γένοιτο

4 Boedeker (n. 1), p. 106. I. De Jong, com uma visada mais técnica, trata da mesma questão sem considerar a influência de Homero: “Like any narrator, Herodotus has the possibility to present his story as a series of events and actions [...] or as a scene, which means that he shows down the pace of narrative so as to approach the length of time of the events and actions, giving us details about scenery or characters (their gestures, facial expressions, etc) and quoting their words”. Cf. De Jong, I. Narrative unity and units. In: Bakker, E; De Jong, I.; Van Wees, H. (n. 1), p. 258.

editar o material de acordo com critérios previamente pactuados com seu auditório (categoria que inclui também os leitores da obra).

Devo chamar atenção para um ingrediente herodotiano, e que me interessa bastante, que é o fato de o historiador compor em prosa. Como se sabe, os gêneros da prosa surgem tardiamente entre os gregos, por volta do século VI a.C., como consequência da lenta difusão dos hábitos letrados e do forte predomínio de uma cultura oral, cuja expressão maior se faz sentir nos gêneros da poesia. Assim, os poemas homéricos, primeiro registro da produção grega, foram transmitidos de uma geração a outra graças a uma poética adaptada à mnemônica, em que a adoção de um metro uniforme, expressões formulares e cenas típicas permitiu a preservação de um núcleo semântico ao mesmo tempo em que admitia variações que o adaptasse às situações de performance.

Nesse contexto, a poesia tornou-se o principal veículo para a conservação e transmissão do conhecimento, entendido como visão de mundo, preceitos éticos e teológicos. Não à toa o próprio Heródoto considera que os gregos devem a Homero e Hesíodo a compreensão de seu panteão.5 Mais tarde, a possibilidade de registrar por escrito observações e pensamentos, confiados a um suporte externo (papiros, tabuletas, etc.), teve por efeito o alargamento dos horizontes do saber, uma vez que o esforço dispensado com a memória de um acervo já constituído pode

5 Cf. Histórias, II. 53: “Realmente, suponho que a época de Homero e Hesíodo não é mais de quatrocentos anos anteriores à nossa, e foram eles que em seus poemas deram aos helenos a genealogia dos deuses e lhes atribuíram seus diferentes epítetos e suas atribuições, honrarias e funções, e descreveram suas figuras”. A tradução é de Mário da Gama Kury In: Herôdotos. História. Brasília: Editora da UnB, 1985. Para o texto grego, consultar Hérodote. Histoires. Livre I. Texte établi et traduit par Ph.-E. Legrand. Paris: Les Belles Lettres, 1970.

voltar-se para a investigação de novas hipóteses e a criação de novas teorias. Com isso, o emprego de formas poéticas para veicular o conhecimento produzido tornou-se menos necessário. Deu-se início, então, a uma especialização em que os gêneros da poesia eram percebidos cada vez mais como sede do relato ficcional e voltados para o entretenimento, enquanto que os da prosa foram associados a um conteúdo técnico (ou científico), voltados para o exame ou demonstração de uma tese – aí se encontram a filosofia, a historiografia, a medicina, a legislação, a oratória, entre outros. A polêmica de Platão contra os poetas, cuja presença é vetada na cidade ideal na República, faz parte de uma disputa de sophia em busca da consolidação da autoridade e que alcança seu ápice entre o final do século V e o início do IV a.C.6

Alguns estudiosos, como Havelock e Goldhill, tratam a ascensão da prosa como um marco da revolução intelectual, situando o novo meio no plano das elites intelectuais, mas Romm chama a atenção para a denominação da prosa como logos pezon, discurso pedestre, metáfora militar que aponta não só para falta de ornamentação (a cavalaria e outras divisões do exército eram mais paramentados), mas também para a humildade em termos sociais (os hoplitas, que iam a pé com armas e provisões, eram oriundos de estratos populares da população, contrastando com os aristocráticos cavaleiros). Recentemente, Kurke reforçou essa visão ao analisar a origem da prosa a partir da constituição popular da fábula esópica e da hierarquia entre os gêneros – mesmo entre os da prosa.7

6 A bibliografia sobre o tema é vasta, remeto, no entanto a dois autores que ajudam a situar a questão: E. Havelock (A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais. São Paulo: Paz e Terra; Edunesp, 1986) e S. Goldhill (The invention of prose. Oxford: Clarendon Press, 2002).

7 Para Havelock e Goldhill, cf. n. 6; Romm, J. Herodotus. New Haven: Yale University Press, 1998. Kurke, L. Aesopic conversations. Popular tradition,

Heródoto, portanto, está associado ao surgimento da prosa na Grécia, advento que só é concebível no âmbito do pleno estabelecimento de hábitos letrados. Isso não significa, no entanto, que sua obra esteja desprovida daqueles traços de oralidade que marcaram sucessivas gerações de gregos. Inclusive porque ao compor sua narrativa o historiador teve que buscar modelos na literatura anterior, de cunho majoritariamente oral. Assim, os estudiosos são unânimes em reconhecer Heródoto como um produto da cultura oral que ainda vigorava na Grécia, embora já estivesse em pleno processo a transição para o mundo da escrita – ele mesmo com um pé em cada, constituindo, na metáfora de John Herington, um centauro, cuja parte superior representa o lado urbano e racional do historiador e a parte inferior remete às montanhas longínquas, a um território livre, selvagem, imune às convenções sociais e permeado pelo mito (apud Romm, n. 7, p. 8).8

Praticamente não há controvérsia sobre a influência que os poemas homéricos exerceram sobre os primeiros historiadores. Heródoto e Tucídides, nos parágrafos de abertura de suas narrativas, elegem o poeta como referência, cuja versão do passado cabe ora ratificar, ora, principalmente, retificar.9 Está, sobretudo, na eleição da guerra como núcleo da narrativa e na intenção explícita de preservar a memória de acontecimentos cultural dialogue and the invention of Greek prose. Princeton: Princeton University Press, 2011.

8 Cf. J. Room (1998, p. 121); A. Momigliano (2004, p. 65).

9 A bibliografia a respeito é grande e cito, apenas como referência inicial, os conhecidos textos de Moses Finley, Mito, memória e história (In: ______. Uso e abuso da história. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 3-27), e François Hartog, Primeiras figuras do historiador na Grécia: historicidade e história (In: ______. Os Antigos, o passado e o presente. Brasília: Editora UnB, 2003, p. 11-33).

grandiosos o ponto central dessa proximidade. Esse vínculo será tão intrínseco entre os gregos que Aristóteles, na Poética, sentirá a necessidade de dissociar poetas e historiadores, distinção essa que desconsidera se a composição é em verso ou em prosa, para enfatizar seu caráter “imaginativo”, ou, ficcional.10

Embora consciente que os paralelismos de estilísticos entre Homero e Heródoto possam ser explicados por uma origem comum, fundada nas características de composição oral, que teria maior peso do que empréstimos diretos ou imitação consciente, penso que os ecos dos poemas homéricos em Histórias respondam ao fato de que “a épica arcaica era o único modelo para uma narrativa sustentável de eventos grandiosos”.11

Feita essa digressão, tão ao gosto de nosso autor, voltemos ao ponto de interesse. Heródoto escreve prosa, sendo até mesmo, ao menos da nossa perspectiva fracionada, um dos inventores da prosa grega. Embora a prosa de ficção (e aqui concedo que estou pensando com critérios modernos), com exceção das fábulas, só surja na Grécia na era cristã (Quéreas e Calírroe, primeiro exemplar conhecido de romance, é muito provavelmente de I d.C.), Heródoto pode, e até mesmo deve, ser visto como seu precursor. Embora ele mesmo deixe claro que não faz ficção, ou, nas palavras de Dewald, “omita intencionalmente heuresis,

10 Poética, IX, 1451 a 36 (Tradução de Eudoro de Sousa in Aristóteles. Poética. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1986): “Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem em verso ou em prosa (pois bem que poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder”.

11 Cf. Boedeker (n. 1, p. 107), ver também C. Pelling (Homero y Heródoto. In: De Tobia, A. M. G. (Ed.) Lenguage, discurso y civilización. De Grecia a la modernidad. La Plata: Centro de Estudios de Lenguas Classicas, 2007, p. 316-317), que pensa em termos de “modelos de experiência” comuns.

a invenção, de seu repertório narrativo”, as várias histórias (lógoi, novellae, excursos narrativos, cenas) inseridas nas Histórias permitem entrever o germinar da fabulação em prosa.12

Antes de passar ao exame de uma dessas narrativas, cabe determinar sua função. A crítica tem se apresado em descartar o papel de entretenimento dessas histórias, talvez por julgá-lo incompatível com o que se espera de um relato de historiador. Ao fazê-lo, assume de certa forma a censura constante da primeira recepção de Heródoto, por Tucídides e Plutarco, por exemplo, que o acusavam de fabulador e mentiroso. Tucídides, sobretudo, tenta fazer prevalecer seu modelo sobre o de seu antecessor, num gênero novo, ainda em constituição. Admitindo que fosse essa mesma a intenção de Heródoto, não me parece assim descabido que se previsse, num texto de longa extensão, momentos de distensão, que emulassem estratégias adotadas na poesia.

No entanto, o prazer do auditório não seria o seu único fim. Dewald, em artigo mais recente (2012, p. 61 e 83), propõe que essas histórias respondem à necessidade de tornar acessível aos gregos padrões de comportamento e cultura exóticos a ele.13 12 Dewald, C. “I didn’t give my own genealogy”: Herodotus and the authorial

persona. In: Bakker, E; De Jong, I.; Van Wees, H. (n. 1), p. 274. Não vou discutir aqui a propriedade das denominações para as histórias herodotianas, mas remeto à discussão de I. De Jong (n. 4), p. 255-257. Admito, no entanto, que, apesar de toda controvérsia e do inconveniente do anacronismo, a definição de novella é a que melhor parece descrevê-las: “a short and entertaining stories about real people, situated in a certain place and in a certain time (in contrast to the folktale), and including a great deal of direct speech” (De Jong, n. 4, p. 257).

13 Dewald, C. Myth and legend in Herodotus’ First Book. In: Baragwanath, E.; Bakker, M. (Ed.) Myth, truth and narrative in Herodotus. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 61; 83. Cf. também no mesmo volume o texto de C. Chiasson, Myth and truth in Herodotus’ Cyrus’ logos, p. 214, sobre a infância de Ciro: “More specifically, Herodotus employs myth as a means of familiarizing, explaining, and enhancing for a Greek audience the historical origins of the Persian empire and its founder”.

Recorrendo a estruturas do mito e da poesia, o historiador 1) estabeleceria um pano de fundo familiar ao seu auditório; 2) exploraria a possibilidade de os agentes internos explicarem as motivações de seus atos, especialmente quando nem testemunhas nem documentos estão disponíveis. Esses pequenos relatos não deixam, então, de estar a serviço da investigação, contribuindo também para a persuasão do auditório.

Gostaria de testar essas ideias, analisando um episódio que faz parte do logos de Ciro, no livro I das Histórias. Trata-se do reconhecimento do menino pelo avô, Astiages, que o havia mandado matar por entender que o neto representaria uma ameaça a seu reino. Escolho essa passagem não em vista dos motivos mitológicos que a enformam, evidentes nesse breve resumo e já bem estudados,14 mas pela técnica narrativa que apresenta, similar em alguns pontos a de Homero. Para chegar à digressão que quero examinar, é forçoso passar em revista todo logos, de modo a estabelecer-lhe o contexto. Peço, portanto, ao leitor que me acompanhe pacientemente nesse movimento.

O objetivo das Histórias, conforme expõe Heródoto no início de seu livro, é preservar a memória dos “feitos magníficos e admiráveis de gregos e de bárbaros” (μήτε ἔργα μεγάλα τε καὶ θωμαστά, τὰ μὲν Ἕλλησι τὰ δὲ βαρβάροισι ἀποδεχθέντα), de modo a não ficarem desprovidos de glória (ἀκλεᾶ γένηται, I, proêmio). Os confrontos entre esses povos culminarão com as Guerras Médicas, no início do século V a.C., com a vitória dos helenos. Para narrá-las, Heródoto rastreará o histórico de hostilidades que os opõe. Na parte inicial do primeiro livro (I. 6-94), Heródoto concentra-se na figura de Creso, rei Lídio que

14 Gray, V. Short histories in Herodotus’ Histories. In: Bakker, E; De Jong, I.; Van Wees, H. (n. 1), p. 291-317; C. Dewald (n. 13), p. 82; C. Chiasson (n. 13), p. 213-232.

teria sido o primeiro a subjugar gregos na tentativa de constituir um império. Seu reinado se encerra pelas mãos de Ciro, soberano persa, que o derrota e assimila a Lídia a seu reino.

A introdução desse novo personagem e sua importância na consolidação do império persa faz com que Heródoto se concentre nele na segunda parte do livro (I. 95-216). Sobre suas fontes, ele faz o seguinte comentário (I. 95):15

Seguirei em minha exposição a opinião de algumas pessoas [alguns dos Persas] cujo desejo não é fazer um relato dignificante da história de Ciro, e sim dizer a verdade, embora haja três outras versões desses eventos além da que exporei.

[ὡς ὦν Περσέων μετεξέτεροι λέγουσι, οἱ μὴ βουλόμενοι σεμνοῦν τὰ περὶ Κῦρον ἀλλὰ τὸν ἐόντα λέγειν λόγον, κατὰ ταῦτα γράψω, ἐπιστάμενος περὶ Κύρου καὶ τριφασίας ἄλλας λόγων ὁδοὺς φῆναι.]

Já no momento em que as Histórias foram escritas, circulavam diversas versões sobre a vida de Ciro, de modo que Heródoto teve que optar sobre qual seguir para compor seu relato. Ele afirma que sua fonte é persa e que é mais moderada em vista das realizações de Ciro (οἱ μὴ βουλόμενοι σεμνοῦν τὰ περὶ Κῦρον ἀλλὰ τὸν ἐόντα λέγειν λόγον, I. 95). Nela, o antagonismo entre Astiages, o monarca medo, e seu neto Ciro é central. Só para se ter uma ideia da diversidade com que esse material foi tratado, os gregos elaboraram ao menos outras duas versões da infância do monarca. Em uma delas, atribuída a Ctésias (século V a.C.) por Nicolau de Damasco, Ciro sequer era parente de Astiages, mas

15 Citado na tradução de Mário da Gama Kury (n. 5) com pequenas correções (p. ex., adequação dos nomes próprios à grafia tradicional).

tinha origem humilde, filho de um ladrão e de uma camponesa. Começa a trabalhar no palácio de Astiages, onde conquista a confiança do monarca ao qual termina por suceder. Em outra, mais conhecida, a Ciropédia, de Xenofonte (séculos V-IV a.C.), Ciro e Astiages têm excelente relação, tendo o neto cumprido parte de sua educação na corte do avô, outra parte no seu país natal, sobre o qual reinava seu pai, Cambises.16

Como vimos, Heródoto vai editar seu material, adotando o critério de selecionar a versão comprometida com o que aconteceu de fato (τὸν ἐόντα λέγειν λόγον), sem pretender engrandecer a personagem (οἱ μὴ βουλόμενοι σεμνοῦν τὰ περὶ Κῦρον). Sua narrativa sobre a infância do rei obedecerá a esse preceito. Mas o que ele entende por “engrandecer” a personagem? A resposta pode estar na primeira aparição de Ciro nas Histórias em que atua como agente da queda de Creso.

Atado ao alto de uma pira para que fosse consumido pelo fogo, o velho monarca lídio reconhece a sabedoria de Sólon, que insistira que a felicidade de um homem só pode ser afirmada depois de sua morte, quando ele não estaria mais sujeito ao revés da sorte. Ciro, então, se compadece e pensa que, “sendo também um homem, estava mandando queimar vivo outro homem, cuja felicidade passada não havia sido menor do que a sua, ele teve medo de pagar por isso um dia, e lhe veio à mente que nenhuma das coisas humanas é estável” (Histórias I, 86). Ordenou então que libertassem o prisioneiro.

Nessa primeira aparição, Ciro demonstra consciência de sua humanidade e dos limites que ela lhe impõe. Condizente com

16 Sobre essas e outras fontes sobre a infância de Ciro, cf. Binder, G. Die Kyrossage und das persische Königsritual. In: ______. Die Aussetzung des Königskindes Kyros und Romulus. Meisenheim am Glan: Verlag Anton Hain, 1964, p. 17-28, especialmente p. 19-21, 25. Também C. Chiasson (n. 13), p. 220.

isso, Heródoto construirá sua personagem dentro desses limites, evitando versões que façam dele um deus ou um herói, como é possível que ocorresse em suas fontes orientais. Vale lembrar que a divinização do rei, visto como reencarnação de uma divindade, é um traço comum a essas monarquias.

Assim, ele fará o futuro monarca um mortal filho de mortais, Mandane e do persa Cambises, este sequer um rei, cuja morte decretada pelo avô foi evitada não por uma intervenção milagrosa, no sentido estrito, mas pela ação do acaso (thyche) e pela bondade de homens simples, o pastor Mitradates e sua esposa Cino/Spaco.17 É preciso notar que a narrativa briga com o invólucro mítico que a encerra, de inspiração grega – ou seja, há uma tensão entre a fonte persa e a forma grega. Para contar a história de Ciro, Heródoto parece ter elegido, dentre todos os modelos possíveis, o de Perseu. Filho de Zeus com a princesa Danae, o herói, cujo nascimento foi anunciado pelo oráculo como uma ameaça ao avô Acrísio, foi abandonado à morte e salvo posteriormente graças à intervenção de um pescador, que o criou. Como no caso de Édipo, com quem a história de Ciro também guarda fortes semelhanças, a sobrevivência da criança acarreta o cumprimento da profecia que se quis evitar. Essa escolha não deixa de ser natural, uma vez que o historiador está preocupado em mostrar Ciro como um herói de seu povo, cuja origem pode ser remontada a Perseu através de seu filho, Perses (cf. Histórias, VII, 220).

Vários elementos desse roteiro original são alterados na versão herodoteana, causando certo ruído aos que estão

17 Cf. Histórias, I. 110: “Seu nome era Mitradates, e sua mulher era escrava como ele. O nome dela na língua helênica era Cino, e na dos Medos era Spaco (os medos chamavam o cão de spax)”. Cino, em grego, significa cadela, sendo o nome do pai composto a partir de Mitra, importante divindade indo-irânica.

familiarizados com o(s) modelo(s). Em primeiro lugar, há os sonhos que alarmam Astiages e que o movem a, primeiro, casar a filha com alguém claramente inferior a ela e, segundo, ordenar a morte do filho que ela espera.18 Essa história é cheia de lacunas, pois para cada informação que Heródoto nos dá, há outra que ele cala – silêncio seletivo? Ele nos diz que Astiages tinha uma filha, Mandane, mas num primeiro momento não afirma que era filha única, o que deduzimos.19 Ele diz que o rei, impressionado com o sonho que tivera com a filha o leva aos intérpretes de sonhos, ficando aterrorizado com o que ouviu (I, 107: ἐφοβήθη παρ› αὐτῶν αὐτὰ ἕκαστα μαθών), mas nada sabemos do teor da profecia. Diz também que, por medo da visão (I, 107: δεδοικὼς τὴν ὄψιν), quando ela atinge a idade de casar, resolve entregá-la a Cambises, um súdito estrangeiro sem título nem mando, e mandá-la para longe.20 Um novo sonho faz com que o rei traga de volta a filha, então grávida, para que possa matar a criança que esperava assim que nascesse. Desta vez, Heródoto informa que os intérpretes de sonhos disseram ao rei que seu neto reinaria em seu lugar (I, 108: ἐκ γάρ οἱ τῆς ὄψιος τῶν μάγων οἱ ὀνειροπόλοι ἐσήμαινον ὅτι μέλλοι ὁ τῆς θυγατρὸς αὐτοῦ γόνος βασιλεύειν ἀντὶ ἐκείνου.).

18 No primeiro sonho, a princesa urina até inundar toda a Ásia; no segundo, uma videira brota de sua genital encobrindo o mesmo território. Para uma

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