• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II: HERMANN BROCH FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS E LITERÁRIOS

2.1. HERMANN BROCH E SUA OBRA “OS SONÂMBULOS”

No espectro dos filósofos idealistas alemães e austríacos, tais como Kant, Hegel, Schelling e Scheleiermacher, encontramos o romancista austríaco Hermann Broch, escritor com grande conteúdo filosófico. Ele faz uso de suas obras como veículo para trazer ao debate questões éticas e metafísicas, assumidas por ele como problemas sem solução científica. Nascido em primeiro de novembro de 1886, na cidade de Viena, e falecido em 30 de maio de 1951, em New Haven (USA), Broch é considerado um dos grandes nomes da literatura alemã do século vinte. Filho de Joseph Broch, um rico judeu fabricante têxtil, que ainda jovem e pobre mudara da Moravia para Viena, e se convertera ao Catolicismo, e de Johanna Broch, nascida Schnabel, igualmente judia e filha de um grossista de cabedais, Hermann Broch se gradua em engenharia, pela Escola Têxtil de Alsace-Lorraine, viaja aos Estados Unidos para observar fábricas e moinhos e em 1907, patenteia uma máquina de moagem de algodão.

Quando seu pai se aposentou em 1915, Broch assumiu a gerência da propriedade do pai e nos 10 anos seguintes tornou-se, o que ele próprio afirma, com um termo cínico, um capitão da indústria. Nessa época, ele já planejava a desistência de seu futuro brilhante como empreendedor industrial. Em 1927, leva a família à pobreza ao vender a usina de sua propriedade. Na mesma época, ele declara que concluirá seus estudos no doutoramento. Anos depois, 1932, ao escrever ''Methodological prospectus'', inclui ali uma pista do caminho que irá percorrer:

...você sabe da minha tese em relação à presente condição da filosofia: filosofia como tal, até o momento em que não se transforme em matemática, não está mais na condição de 'provar' algo – apesar da 'ciência' ser obrigada a isso – e em vista desta situação, a filosofia refugiou-se dentro das preocupações matemáticas. No entanto, isso não resolve tremendos problemas metafísicos que ainda existem – não somente eles existem, como são mais urgentes de debate como nunca,– mas a base para as soluções devem ser procuradas em outro lugar. Este lugar pode ser encontrado somente no irracional, na poética. Se há uma tarefa para a poética, e Goethe já disse que há, ela está em fazer esses problemas místicos acessíveis à prova.

Broch, aos 41 anos, decidiu abraçar definitivamente a filosofia, a matemática, a psicologia, as literaturas clássica e contemporânea e a política. Entra para a Universidade de Viena a fim de obter o doutorado. Um ano depois, desencanta-se por causa do menosprezo às questões éticas presente nos positivistas lógicos do Círculo de Viena. Desiste então da vida acadêmica para se embrenhar no universo ficcional. Ele tinha convicção de que os mais profundos conteúdos da experiência humana, então rejeitados pelo Círculo de Viena, tinham espaço infinito na literatura. Desde então, Broch passou a dedicar sua vida mais especificamente ao estudo e à

prática da literatura para, através dela, lidar com questões éticas e com a experiência humana rejeitadas pelos positivistas lógicos do Círculo de Viena.

Contudo, o fato de Broch dedicar-se à literatura não significou que ele havia chegado à solução das questões fundamentais da existência humana que muito o afligia. Na verdade, Broch julgava ser a literatura um caminho insuficiente visto que ela não possuía uma força de coerção, manifestada pelo mythos, e de proposições lógicas, reveladas pelo logos. Com o objetivo de fecundar uma nova maneira de olhar a literatura, inserindo em suas obras uma alternância desprendida entre mythos e logos, Broch busca um fundamento epistemológico que viabilize uma sensata percepção da totalidade do universo.50

Essa maneira sui generis de definir os caminhos literários a serem percorridos o leva, em sua trajetória

como escritor, a compor para a literatura contemporânea, entre os vários ensaios, dois valiosos romances. O primeiro denominado de Os Sonâmbulos, entre 1931 e 1932. Em linhas gerais, a obra defende que as pessoas de então vivem como sonâmbulas, entre o desaparecimento e o surgimento de sistemas éticos, pois o sonâmbulo vive em um estágio entre o sono e a caminhada. O segundo romance é A morte de Virgílio, escrito em 1941, no qual Broch defende a tese de que poesia em época de declínio é imoral. Ora, o término dessa obra coincidiu com os cruéis morticínios nos campos de concentração e extermínio. Na época, Broch havia decidido não escrever textos criativos, rejeitando sua forma de escrever em vista da solução de conflitos. Entretanto, é inegável que seu ser poeta o perseguia ao ponto de ele próprio não poder escapar de sua alma poeta. Neste sentido, para resgatar uma expressão de conflito cunhada por Hanna Arendt, Hermann Broch foi um poeta à sua

própria revelia. Arendt o define assim:

Ter nascido poeta e não querer sê-lo foi o traço fundamental de sua natureza, inspirou a ação dramática de seu maior livro e tornou-se o conflito básico de sua vida. De sua vida, não de sua psique, pois não era um conflito psicológico que pudesse se expressar em lutas psíquicas, sem outras conseqüências além do que o próprio Broch chamou, em parte com ironia, em parte com aversão, de ‘clamor da alma’.51

Após notas preliminares sobre o escritor Hermann Broch, centralizaremos nossas investigações em sua obra, Os Sonâmbulos. Em um primeiro momento, contextualizaremos o romance, e apontaremos algumas ingressões epistemológicas e literárias para que possamos entrar de forma consistente no resumo da obra.

Escrito na língua alemã, Os Sonâmbulos é uma trilogia na qual os personagens principais, Pasenow, Esch e Huguenau representam o homem moderno levado aos limites existenciais, um homem perdido e solitário, em conflito interior provocado pelo pensamento racional, pelos valores idealistas da sociedade alemã. Sua visão de mundo estabelece como figura humana um ser solitário, em permanente confronto de valores, concebido pela divinização da máquina – tecnologia – e a razão, junto a um apego desenfreado ao dinheiro. A razão vem acompanhada pela curiosidade e a louca vontade de descobrir as leis que regem a natureza; e a alegria próxima

50 Cf.: Hannah ARENDT, Homens em tempos sombrios: 105-106. 51 Idem: 99.

a um estado extático à medida que vão sendo reveladas. Broch descreve com eloqüência a permanente e progressiva degradação dos valores humanos na vida alemã, durante o período de 1888 a 1918.

Milan Kundera, em sua obra A Arte do Romance, no capítulo terceiro, questiona acerca das possibilidades do homem na armadilha em que se transformou o mundo. Considerando o romance de Broch, Kundera se pergunta:

E quanto a Broch? Qual é a sua hipótese ontológica? O mundo é o processo de degradação dos valores (valores provenientes da Idade Média), processo que se estende pelos quatro séculos dos Tempos Modernos e que é a essência deles. Quais são as possibilidades do homem perante este processo? Broch descobre três: possibilidade Pasenow, possibilidade Esch, possibilidade Huguenau.52

A afirmativa de Kundera de que tais valores, criticados por Broch, são provenientes da Idade Média parece ainda limitado, pois Broch apontará na própria obra a transformação do sistema universal de valores, como era organizada a Moral da Idade Média, em sistemas particulares de valores.

Para dar à sua obra uma consistência literária e poder dissertar sobre a questão, Broch utiliza-se de estruturas filosóficas encontradas no pensamento alemão. Entre as estruturas a que a obra se refere, ora direta ora indiretamente, estão os pensares de Kant, de Hegel e de Nietzsche referindo-se a eles com extrema desenvoltura. Broch utiliza-se de seus vocabulários com vigorosa objetividade, o que nos dá a impressão de estar, na verdade, tecendo um diálogo crítico com tais pensares e pensadores.

Nos dias atuais, a tentativa de se estruturar uma obra literária visa perceber a sua lógica e coesão internas. Apesar de Os Sonâmbulos promover uma estrutura peculiar de escrita, devido ao seu grande detalhamento e um estilo polifônico de apresentação, tornando dificultoso ao leitor apreender com maior clareza todo o eixo fundante da obra, não podemos deixar de afirmar que o texto surpreende por sua estrutura harmônica e sua proposta ética de re-pensar, re-construir ou ainda construir os valores humanos, pela via do seu contraponto, a degradação dos valores humanos, superando o fundamento lógico do ou-ou e promovendo um outro fundamento, o de não-só-mas-também. Para afirmar a força da ação ética como fundamento resignificador dos valores humanos, Broch se utiliza de fundamentos epistemológicos a partir para assumir que a função cognitiva de uma obra de arte é a de representar o mundo na sua totalidade, ainda que este mundo esteja em franco processo de desintegração.

No primeiro dos três episódios, temos "Pasenow ou Romantismo". Nele, Broch nos apresenta a vida de um oficial alemão: Joachim von Pasenow, que exerce funções militares em Berlim. Pasenow se apaixona por uma mulher fora de seus padrões morais vinculados à tradição militar alemã, mas acaba casando-se com uma senhorita de um estado vizinho. No segundo episódio, Broch escreve acerca de “Esch ou Anarquia”. Nele, Broch nos escreve sobre um homem descrente de Deus, fanático em impor a ordem e a justiça, que tenta salvar o mundo apesar de ser incapaz de identificar o bem e o mal. No terceiro episódio, Broch nos traz “Huguenau ou o

Realismo”. Nele, Broch procura nos assegurar, na figura de Huguenau, como tudo está vazio de valores, portanto, pode-se tudo. Huguenau, um desertor da guerra, é um ser individualista, não mede conseqüências e preocupa-se apenas em salvar a si mesmo.

Hermann Broch coloca no papel sua ansiedade e buscando o distanciamento na 3ª pessoa, leva para os lábios das personagens os resultados de uma série de reflexões, pensamentos, julgamentos, dúvidas, preconceitos, ora confirmados ora negados. Com a figura dos três protagonistas da obra Os Sonâmbulos, Broch nos provoca reflexões profundas partindo da imaginação ativa, visto que o pensar ultrapassa os limites da realidade factual e nos transporta ao nível da metafísica, às grandes questões dos valores humanos inseridos num contexto de perpétua degradação humana.

O romance Os Sonâmbulos, publicado por Hermann Broch, entre os anos de 1931 e 1932, configura-se

como uma maneira fascinante de ler e escrever uma obra de ficção, tal como um leque aberto a interpretações de cunho literário e filosófico. Nesta obra, o modelo convencional do “romance ficcional” é substituído por um outro cujo desenrolar das situações imaginativas do autor nos remetem à uma reflexão fundada em processos especulativos, uma apreensão da própria consciência e uma problematização do conhecimento acerca do Idealismo, do Anarquismo e do Realismo que acabam por desembocar numa metaficção, que leva o leitor para um nível de compreensão mais aguçada da própria vida. Convém ao leitor uma percepção do desenrolar das histórias descritas na obra, que leve em conta explícitas rupturas realizadas pelo autor, bem como inovações realizadas e novas configurações assumidas na ficção.

O que mais evoca a estrutura da obra de Hermann Broch é a maneira meticulosa e detalhista utilizada por ele para lançar o leitor ao universo criado para que, envolvido pelos acontecimentos de três episódios aparentemente não-interligados, ele faça sua trajetória contemplativa até culminar no ponto axial da obra, uma reflexão não necessariamente racional acerca da degradação dos valores humanos.

A obra é contextualizada num período de profundas transformações na sociedade alemã. As referências da narrativa textual nos ligam a uma realidade extratextual reconhecível e datada, não somente porque o próprio autor se propõe a nos situar com datas, mas também pelas características das personagens, a localização espacial, os pormenores referentes às questões militares, sindicais, políticas e o universo citadino em relação aos subúrbios ou pequenas cidades em torno de Berlim, com todos os seus movimentos humanos típicos de uma cultura em transição e ainda sem um rumo, para que possa dizer a si mesma que não está perdida. Essas situações servem de matéria para a construção da obra em sua totalidade, visto que Broch intenciona interligar os três episódios para dar o caráter de um todo maior que as partes.

Os Sonâmbulos insere-se no período da proclamação do segundo império alemão. A queda de

Bismarck, em 1890, levou ao poder o segundo Reich, dirigido pelo Kaiser (imperador) Guilherme II, que abandonou a política de alianças defensivas, realizadas por Bismarck, e orientou-se por uma política de expansão por via da força, desenvolvendo a indústria bélica e criando um clima favorável à guerra como forma de resolver as rivalidades geradas pela corrida imperialista. Por esta razão, os exercícios militares eram constantes e o serviço militar tornou-se obrigatório. A política de expansão findou com a abdicação de Guilherme II, no fim da Primeira Guerra Mundial. Dentro desse contexto, encontramos o eixo viário sobre o qual acontecem

os fatos descritos no romance de Broch. O resumo que segue procura traduzir, na medida do possível, as histórias e situações contidas na obra. Procuramos ao máximo ser fidedignos ao autor, ainda que conscientes da impossibilidade de uma fidelidade total. Em determinados momentos será preciso inserir fragmentos do romance para que se permita uma percepção mais fiel da obra. Há também, em notas de rodapé, nossas interpretações e percepções do próprio autor, para que a obra seja bem compreendida, pois é a base daquilo que intentamos defender, uma estética que nos permita perceber sensivelmente a degradação dos valores humanos.

2.2. ACERCA DA OBRA “OS SONÂMBULOS” – UM RESUMO

Documentos relacionados