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A hierarquia dos valores (a futura tarefa dos filósofos)

No documento O espírito livre em Nietzsche (páginas 85-118)

O CULTIVO DO ESPÍRITO LIVRE

1. A hierarquia dos valores (a futura tarefa dos filósofos)

O prólogo de Humano demasiado humano é especial para esse trabalho. Ele nos dá pistas preciosas para a intenção que se impõe aqui: explicitar o que Nietzsche denomina espírito livre. Em todo o prólogo, vêem-se os caminhos percorridos pelo espírito que se tornou livre, o próprio Nietzsche, o homem que enfrentou com seus próprios cuidados sua doença e que rompeu com seus queridos preceptores na arte e na filosofia. Nesse escrito, o prólogo, é possível ouvir do próprio autor um comentário geral sobre essa criação, essa invenção, que permeia toda a obra e que se desenvolve concomitantemente ao longo dela.

Nesse prólogo de 1886212, o filósofo escreve fazendo um relato das etapas da formação do espírito livre. Expõe-nos nele prólogo o enigma da sua grande liberação, ou a experiência do espírito livre, relatando o quanto existe de dureza nas deliberações daquele que resolve seguir caminhos próprios, para aquele que se torna livre de autoridades superiores, de crenças e de imperativos, e o quanto bravamente o espírito deve sofrer no seu

212 Sobre os escritos de Nietzsche, lembremos que o autor no ano de 1886 quando escreve e publica Além

processo de maturação, suportando a dor e a necessidade que subjaz às nossas relações no mundo. O filósofo narra aquilo que vai acontecendo àquele que aprende a olhar a necessidade, a injustiça que há na vida, enfim percebendo os valores que nós, a humanidade, embutimos nas coisas. Ele diz:

Você deve ter domínio sobre o seu pró e o seu contra , e aprender a mostrá-los e novamente guardá-los de acordo com seus fins. Você deve aprender o que há de perspectivista em cada valoração [...] Você deve aprender a injustiça

necessária de todo pró e contra, a injustiça como indissociável da vida, a própria vida como condicionada pela perspectiva e sua injustiça. 213

O espírito livre é então aquele que aprende a reconhecer o que há de perspectivista em cada valoração. Essa expressão “a perspectiva que há em cada valoração”214 é o ensinamento do psicólogo, ou melhor, do genealogista dos valores, que parece nos fazer arregalar os olhos para a condição da injustiça. “Olhar onde a vida sucumbe, olhar onde a vida dá sinais de ascendência”215, é a partir dessa diferença tenaz à toda existência que se interpreta o problema da hierarquia. O espírito livre é o observador dessa diferença, de cujas gradações, segundo as condições de existência dos seres, advêm os juízos de valor ou os diferentes climas morais. Através dessa diferença será percebida a existência de múltiplas perspectivas, multifacetadas interpretações determinadas pelos pontos de vista de dois tipos, que são os pares disjuntivos considerados pelo filósofo na sua pesquisa genealógica sobre os valores (nobre / escravo, forte / fraco, são / doente).

O problema da hierarquia, o nosso problema, é enunciado como um problema para os filósofos do futuro, portanto, um problema que deve ser encarado pelo espírito que quer se tornar livre, ou seja, que incorpora o caráter interpretativo, seletivo e de cultivo em si mesmo. Nietzsche continua:

Você deve ver sobretudo com seus próprios olhos onde a injustiça é maior: ali onde a vida se desenvolveu ao mínimo, do modo mais estreito, carente, incipiente, e no entanto não pode deixar de considerar fim e medida das coisas e em nome de sua preservação despedaçar e questionar o que for mais elevado, maior e mais rico, secreta e mesquinhamente, incessantemente você deve olhar com seus olhos o problema da hierarquia. 216

novos prefácios estão: O Nascimento da Tragédia, Humano demasiado humano I, Humano demasiado humano II, Aurora e A Gaia Ciência.

213

HDH, Prólogo, § 6, p. 12.

214 HDH, Prólogo, § 6, p. 12.

215 É preciso fazer uma ligeira antecipação indispensável: onde a vida se desenvolve menos é onde a

vontade é fraca e desagregada; onde a vida se desenvolve mais, é onde a vontade é forte, onde comanda um sol.

O autor de uma filosofia dos valores217 recomenda ao vivente nesse texto que examine com olhar agudo os valores. Ou seja, os valores sob o ponto de vista de sua criação, a condição sob a qual um valor é criado, pois não se pode deixar de considerá-lo. Assim, podemos hierarquizar nossos valores.

A partir do duplo aspecto dos valores, como citado, vemos que Nietzsche considera “tipos” morais, pares disjuntivos, como representantes de valores. Os valores são remetidos a tipos, o senhor e o escravo, o forte e o fraco, pares disjuntivos efetivos da cultura. Através da cultura, isto é, das condições de existência e sua condição formadora de tipos, somos remetidos à crítica genealógica dos valores. Lembrando que para ele toda a vida pode ser interpretada em termos de valor e, precisamente, no contexto de sua filosofia, em termos de uma engendradora vontade de poder. Vontade de poder é sinônimo de vida.

Os valores estão na cultura, quer dizer, na tradição, na moralidade dos costumes e formalizam-se em tábuas de valores. As morais, as filosofias, as religiões, as legislações são modos de criação de tipos que tendem a conservá-los fixos, além de contornarem o tipo de um só homem moral. Vale repetir: firmeza de caráter não significa caráter fixo. Todavia, é a natureza instintiva dos seres que dá forma a tipos, que por sua vez são engendradores de valores. O empenho da análise de Nietzsche está em detectar a dupla origem dos juízos de valor representados pelas figuras: nobre e escravo, forte e fraco, são e doente. Essa análise recai sobre afirmação de Nietzsche de que os instintos estão em devir na cultura, e não são comandados por uma “idéia”.

Retorno ao aforismo de Aurora já utilizado neste trabalho, pois esse texto é assaz ilustrativo sobre o tratamento acerca dos sentimentos morais, sua influência na formação de conceitos morais:

Sentimentos morais e conceitos morais - Claramente os sentimentos morais são transmitidos deste modo: as crianças percebem, nos adultos, fortes inclinações e aversões a determinados atos, e, enquanto macacos natos,

imitam essas inclinações e aversões. Depois em sua vida, quando se acham plenas desses afetos aprendidos e bem exercitados, acham questão de decência um “Por quê?” posterior, uma espécie de fundamentação para as inclinações e aversões. Mas essas “fundamentações” nada têm a ver com a origem ou o grau de sentimento: o indivíduo apenas acomoda -se à regra de que, enquanto ser racional, precisa ter razões para ser a favor ou contra, razões apresentáveis e aceitáveis. Neste sentido, a história dos sentimentos morais é muito diferente da história dos conceitos morais. Aqueles são

216 HDH, Prólogo § 6, p. 12.

217“Sob que condições são criados os valores?”: uma questão fundamental, um problema que envolve o

pensador no tema sobre a origem de nossos preconceitos morais. Essa pergunta é explicitada na apresentação de seu livro de dissertações – Genealogia da Moral, logo no prólogo.

poderosos antes da ação, e estes depois da ação, em vista da necessidade de pronunciar-se sobre ela. 218

E o seguinte:

Os sentimentos e sua derivação dos preconceitos — “Confie no seu

sentimento!” – Mas sentimentos não são nada de original; por trás deles estão juízos e valorações, que nos são legados na forma de sentimentos (inclinações, aversões). A inspiração nascida do sentimento é neta de um juízo freqüentemente errado! e, de todo modo, não do seu próprio juízo! Confiar no sentimento isto significa obedecer mais ao avô e à avó e aos avós deles do que aos deuses que se acham em nós: nossa razão e nossa experiência.219

Estes textos são muito importantes, pois nos guiam no interior do seu pensamento. Desse modo, o filósofo alemão quer dizer que, sobre o aspecto das nossas avaliações, herdamos preconceitos, e pior, nos acostumamos a eles. A coletividade representada ora na transmissão dos sentimentos na fase infantil, ora na coerção conceitual do universo cultural, é um limite, e impede, retarda, enfraquece, obscurece a possibilidade do crescimento individual. Criar220 valores, novos valores a partir de si é uma das tarefas do espírito que se torna livre; é estar aberto às vivências, é criar combatendo, resistindo os entraves de fora, afirmando o caráter mais feliz. Assim fazendo, pode conquistar a grande liberação justamente da sociedade que tolhe seu movimento, que o domestica, que o subjuga, que o manieta. O espírito livre se singulariza porque hierarquiza seus impulsos. Não obstante, se marginalize221. Ser um espírito livre implica ser livre para o conhecimento, como também em compreender que todo conhecimento é criação, que em termos nietzschianos quer dizer cultivo, cultivo de si. O espírito livre se sente assim:

Com riso maldoso ele revolve o que encontra encoberto, poupado por algum pudor: experimenta como se mostram as coisas quando são reviradas. Há capricho e prazer no capricho, se ele dirige seu favor ao que até agora teve má reputação se ele ronda, curioso e tentador, tudo o que é mais proibido. Por trás de seu agir e vagar pois ele é inquieto, e anda sem fim como num deserto se acha a interrogação de uma curiosidade crescentemente perigosa. “Não é possível revirar todos os valores? E o Bem não seria Mal? [...] 222

218 A, § 34, p. 35. 219 A, § 35. p. 35.

220 Como nos esclarece Frezzati, Nietzsche usa a palavra Züchtung e seu sentido comum é o de criação

(nos sentidos biológico – “cultura de células” – e botânico – cultura de milho”. Zucht significa,

comumente, criação, cultura (no sentido botânico), raça ou disciplina. Züchten significa criar ou cultivar ( nos sentidos biológico e botânico). Cf. Frezzati, nota 39, p. 122.

221 Cf. a conclusão do livro de Kossovitch. 222

Nietzsche, dessa forma, chama a atenção para o fato de que como mensuradores de todos os tipos, somos nós, seres humanos, que revestimos o mundo de valores e padrões com os quais o medimos, avaliamos e julgamos:

Por exemplo, nenhuma experiência relativa a alguém, ainda que ele esteja muito próximo de nós, pode ser completa a ponto de termos um direito lógico a uma avaliação total dessa pessoa; todas as avaliações são precipitadas e têm que sê-lo. Por fim, a medida com que medimos, nosso próprio ser, não é

uma grandeza imutável, temos disposições e oscilações, e no entanto teríamos de conhecer a nós mesmos como uma medida fixa, a fim de avaliar com justiça a relação de qualquer coisa conosco. A conseqüência disso seria que de modo algum deveríamos julgar; mas se ao menos pudéssemos viver sem avaliar, sem aversão e inclinação!223

Não escapa ao filósofo o conhecimento da inexistência de uma medida, de uma grandeza imutável e absoluta com a qual possamos medir e avaliar a vida. O combate de Nietzsche é desferido assim a todo idealismo que parte de pressuposições universais, que são para ele sempre imagens pálidas e sem vida, mesmo que seja expressão de uma vontade de poder dominante, e tenha seu expoente na filosofia e em sua teoria do conhecimento, seja na moral e sua construção de um ethos virtuoso. Nem intelectualismo, nem negação da vontade, o espírito livre como já dito precisa aprender a perceber a perspectiva que há em cada valoração. Assim, é no tocante ao universo dos valores que o filósofo abre para nós a questão, diria a grande questão, do problema da moral, que tanto ocupa seu pensamento.

Uma das questões-guia de Nietzsche sobre o problema da origem da moral pode ser vislumbrada nesse texto:

Os mais velhos juízos morais — Qual nosso comportamento ante a ação de alguém à nossa volta? Primeiro atentamos para o que dela resulta para nós

observâmo-la apenas sob esse ponto de vista. Tomamos este efeito como o

propósito da ação e afinal atribuímos a esta pessoa, como característica

permanente, a posse de tais intenções, e desde então a chamamos de “indivíduo danoso”, por exemplo. Um triplo engano! Triplo erro imemorial! A

origem de toda moral deve ser buscada nas pequenas conclusões execráveis: “O que me prejudica é algo ruim (prejudicial em si); o que me ajuda é algo

bom (benéfico e vantajoso em si); o que me prejudica uma vez ou algumas vezes é o elemento inimigo em si e por si; o que me ajuda uma ou algumas vezes é o elemento amigo em si e por si”. O pudendo origo [oh, vergonhosa origem] ! Não significa isso imaginar que a reles ocasional, muitas vezes casual relação de um outro para conosco é sua essência e o que tem de mais seu, e afirmar que ele é capaz de ter, com todo o mundo e consigo mesmo, apenas as relações como a que vivenciamos uma ou algumas vezes com ele? E por trás dessa verdadeira tolice não se acha o mais imodesto dos pensamentos

223

ocultos, o de que nós mesmos devemos ser o princípio do bem, pois o bem e o mal se medem conforme nossa medida?224

Devemos atentar para a distância que Nietzsche pretende tomar em relação à filosofia racionalista de Kant. A questão é que de fato Nietzsche critica a razão, e Kant realiza uma semi-crítica, invalidando a razão para o conhecimento da metafísica e voltando atrás, quando torna a metafísica possível com a razão prática, ou seja, uma segunda razão que fundamenta a moral. Na verdade, Nietzsche ataca a tradição filosófica a partir de Sócrates, considerando-o um decadente, que se pôs contra tudo o que havia de mais encantador entre os gregos, aquele que introduz um método para o conhecimento. Assim, dispõe-se contra o idealismo alemão, como também as idéias inatas de Platão e também a razão prática de Kant, assegurada pelo formalismo do imperativo categórico para as ações humanas: “devo desejar que a máxima da minha ação se torne uma máxima (lei) universal”.

Sobre sua indisposição com a tradição filosófica, paira o argumento, já estudado aqui, mas que vale a pena repeti-lo, de que, o intelecto não é toda a consciência, toda a subjetividade e sempre julgamos conforme erros porque nos falta a medida. O que temos são convicções morais que nos chegam por hábito e que se revestem de caráter universal, e para Nietzsche: “Convicções são inimigas da verdade mais perigosas que as mentiras.”225

Então é preciso, e isso toma extrema relevância no sentido de uma crítica à razão, abrir uma clareira para a crítica de Nietzsche acerca da lógica. Para ele a lógica é apenas uma forma limitada de compreensão do mundo: “[...] a tendência predominante de tratar o que é semelhante como igual – uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual, foi o que criou todo o fundamento da lógica”226. A questão que se impõe: “De onde surgiu a lógica na mente humana? Certamente do ilógico, cujo domínio deve ter sido enorme no princípio”227. Por muito tempo, na pré-história mesmo, foi preciso ver o que é igual nas coisas como meio de sobrevivência, quem não enxergasse o mutável tinha mais chance de sobreviver que aquele que visse “tudo em fluxo”. A lógica, portanto, é indispensável para a conservação, mas o que Nietzsche chama a atenção é que o ponto de partida de toda lógica não tem correspondência no mundo real: o que é igual, durável é uma pressuposição. A lógica precisa enxergar, subsumir, o semelhante como igual, pressupondo-o (pressuposição em um ordenamento, ou em um pensamento científico) no mecanismo de operações da lógica.

224 A, § 102, p. 74. 225 HDH § 483, p. 265. 226 GC § 111, p. 139. 227 GC § 111, p. 139.

Comenta Nietzsche que, no princípio, quem subsumisse mais lentamente o semelhante como igual tinha menos probabilidade de sobrevivência: “Nenhum ser vivo teria se conservado, caso a tendência oposta de afirmar antes que adiar o julgamento, de errar e inventar antes que aguardar, de assentir antes que negar, de julgar antes que ser justo – não tivesse sido cultivada com extraordinária força.”228

Ver, pressupor, subsumir o igual foi cultivado com extraordinária força, como forma de sobrevivência:

[...] para que surgisse o conceito de substância, que é indispensável para a lógica, embora, no sentido mais rigoroso, nada lhe corresponda de real por muito tempo foi preciso que o que há de mutável nas coisas não fosse visto nem sentido; os seres que não viam [o mutável] exatamente tinham vantagem sobre aqueles que viam tudo em fluxo.229

Mas não conseguimos ver o que está por trás do fluxo, do devir; e para pensarmos a relação causa e efeito, nós isolamos arbitrariamente em partes, nós observamos pontos isolados de um continuum. A lógica precisa do imóvel para enxergar a regularidade, a sucessão. Quando vemos regularidade na natureza, somos nós que vemos (imagens) e

descrevemos o que é essa regularidade, e isso ocorre como se quiséssemos extinguir a imprevisibilidade: “Basta considerar a ciência a humanização mais fiel possível das coisas, aprendemos a nos descrever de modo cada vez mais preciso, ao descrever as coisas e sua sucessão”230

. Enfim, o que Nietzsche quer dizer é que somos nós que criamos a ordem das coisas, ou melhor, a impomos à natureza. A pretensão do procedimento lógico é uma ordenação do mundo. A imagem que é mais coerente, certa domina. Mas não conseguimos ir além dessa imagem. Por isso, considera a ciência como descrição e não como explicação do mundo. “O espírito da ciência é poderoso na parte, e não no todo”231 título de um texto de Humano demasiado humano. Contudo, é preciso que fique claro que a lógica é indispensável para a vida, com ela demonstramos o que é necessário em todas as coisas.

Nietzsche tem uma posição particular acerca da linguagem que parece ser um dos pontos mais marcantes da sua filosofia. A linguagem teria duas facetas: uma primeira, como resultado de experiências coletivas, da experiência em sociedade, da vida coletiva, e a fala, a comunicação se incluiria aí; e, a outra, como meio de expressão do conhecimento. A imbricação delas é orientada pela gramática. Assim, atentemos que a linguagem, enquanto

gramática comum, petrifica vivências habituais e com suas regras orienta a expressão do

conhecimento, tornando todo discurso possível, de modo que a língua de um povo, por

228 GC § 111, p. 139. 229 Idem.

230

causa do inconsciente domínio de funções gramaticais, determina o seu modo de conceber a realidade. Com a ajuda do estudioso André Itaparica vejamos que “não se trata apenas de compreender o caráter arbitrário da linguagem, mas seu caráter criador de concepções do mundo a partir de uma sintaxe”232

(sujeito e predicado). No caso da cultura ocidental, essa sintaxe nos conduz a dois erros: o da substancialização dos conceitos e o do estabelecimento de relações causais derivadas da relação entre sujeito e predicado. E, enfim, “o que Nietzsche identifica como nossa filosofia comum da gramática (o domínio inconsciente de funções gramaticais – a sintaxe) é a idéia de que todo conhecimento humano do mundo pode ser obtido a partir da forma lógica do juízo”233

. A lógica é apenas produto de uma gramática partilhada entre os povos ocidentais, sendo portanto uma forma limitada de compreender o mundo, e não medida para estabelecer o que existe ou não, o que é verdadeiro ou falso.

Desse modo, vemos por parte de Nietzsche uma discussão acerca do aspecto conceitual do conhecimento. É com a fisiologia que ele estabelecerá uma relação entre os conceitos morais e o corpo. Das observações de Nietzsche, assinalamos que a moral conceitual, que pretende mostrar os conceitos como valores em si, é contra a moral real, ou a moral do corpo, que é não-intencional. Por isso, a perspectiva de Nietzsche da moralidade é a perspectiva da extramoralidade. Os conceitos morais, os valores que eles expressam, são relacionados diretamente com a forma pela qual um tipo de homem se relaciona com a vida. Por sua vez, eles não possuem validade incondicional: eles remetem às ações humanas.

Os conceitos morais, aqueles que representam determinados valores, são, como produtos humanos, expressão de um complexo de forças. Desse modo, Nietzsche realiza uma história natural da moral, na qual analisa a etimologia dos conceitos e a estrutura fisiológica dos homens responsáveis pela emergência de cada um deles. Daí, vislumbra-se o estabelecimento de uma hierarquia dos valores conforme as perspectivas formadoras de tipos. A “tipologia da moral”234

contém dois tipos os que criam valores a partir de si e os que se habituam a valores vindo de fora: um forte, são, nobre e outro fraco, doente, escravo235. Portanto, os conceitos morais nos remetem às ações humanas não à essência da pessoa. E aqui talvez valha a pena reforçar repetindo a máxima de Nietzsche que diz que

231 HDH § 6, p. 18. 232 ITAPARICA, p. 62. 233 Idem, p. 63. 234 BM § 186, p. 85.

235 A diferença entre esses tipos, não é resultado de uma essência intrínseca a eles, mas sim da forma pela

“não há fatos morais, há interpretação moral dos fatos”. E toda moral é num sentido a linguagem mímica dos afetos236.

Acerca da origem dos juízos de valor, o filósofo constata que ocorreu uma primeira

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