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CAPÍTULO 3: HIERARQUIAS SOCIAIS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

3.1 Hierarquias sociais no Brasil contemporâneo

A vivência e socialização daqueles que ocupam os estratos mais altos e a relação que mantêm com a sociedade a sua volta pode ser pensada a partir de diferentes perspectivas analíticas. As teorias elaboradas pelos autores nos ajudam a dar tratamento a objetos que são empíricos. Com esse intuito, apresento a seguir alguns estudos recentemente realizados no Brasil cujo universo pesquisado são os estratos sociais mais altos. Destacam-se por apresentarem abordagens e resultados bastante distintos, mostrando a complexidade das relações e de diferentes instâncias que se contrapõem e se sobrepõem na construção de espaços, fronteiras, discursos, identidades, gostos, práticas e valores.

O primeiro é o trabalho da socióloga Carolina Pulici intitulado O charme (in)discreto do gosto burguês paulista: Estudo sociológico da distinção social em São Paulo (2010).

Neste, a pesquisadora faz o mapeamento dos gostos e hábitos culturais da chamada elite paulistana. Ela considera principalmente membros de famílias conhecidas como quatrocentonas que detêm alto capital econômico há muitas gerações, procurando demonstrar a pertinência do modelo de diferenciação social bourdiesiano para compreender as relações que se desenrolam entre grupos sociais na cidade de São Paulo. Em sua pesquisa, a partir da realização de uma série de entrevistas, a socióloga destrincha de maneira minuciosa os gostos e hábitos da classe alta paulistana.

A pesquisadora concluiu ser possível encontrar entre as classes altas paulistanas o gosto burguês, aquele que se adquire por meio do estudo e da convivência desde os primórdios com elementos da cultura dita erudita, legítima. Assim, foi possível encontrar entre os entrevistados, práticas tais como a frequência assídua a concertos de música clássica, espetáculos de dança, teatro, museus, conhecimento a respeito de artes plásticas. Pulici também verifica que as regras de savoir-vivre trazidas por manuais de etiqueta divulgados no Brasil encontram correspondência entre as práticas e valores do grupo pesquisado. Nesse sentido, de acordo com a pesquisadora, o chamado bom gosto, como forma de diferenciação,

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de fato se estabelece em oposição ao que os grupos dominantes acreditam se tratar de um gosto vulgar.

Por fim, a pesquisadora estabelece comparações entre as práticas dos entrevistados que moram em bairros nobres mais antigos de São Paulo (principalmente Jardins) e que, em sua maioria, possuem riqueza acumulada há várias gerações e aqueles que são moradores de condomínios fechados (principalmente Alphaville), também áreas nobres da cidade, mas que tiveram, em sua maioria, uma ascensão social recente (são a primeira geração de endinheirados). Acaba por estabelecer diferenciações entre os dois grupos quanto a suas práticas culturais, mostrando que os endinheirados de ascensão social recente se mostram bastantes desinteressados em relação às práticas culturais eruditas, renunciando aos ganhos simbólicos que advém dessas atividades e priorizando as práticas de consumo em que se adquire bens materiais.

Resultados bastante distintos são encontrados pela antropóloga Diana Lima em trabalho intitulado Sujeitos e objetos do sucesso: Antropologia do Brasil emergente (2008).

Neste trabalho a pesquisadora busca compreender o fenômeno social dos “emergentes da Barra” (Barra da Tijuca, Rio de Janeiro), grupo de pessoas cuja ascensão social e as práticas de consumo conspícuo foram amplamente noticiadas pela imprensa carioca e nacional durante os anos 1990.

Lima trata a respeito da produção discursiva que se faz sobre a figura dos emergentes da Barra (ora aprovando, ora reprovando suas práticas). Os discursos jornalísticos acabaram estabelecendo uma espécie de rivalidade entre dois grupos das classes altas carioca: a “elite tradicional” e os “emergentes”. Os primeiros, moradores da zona sul da cidade, os segundos, moradores da Barra da Tijuca (localizada na zona oeste). Apesar da aclamada “futilidade”

dos emergentes, evidenciada por suas práticas de consumo conspícuo, amplamente divulgada pela imprensa e comentada, de acordo com a antropóloga, nas conversas cotidianas das pessoas da cidade do Rio de Janeiro, inclusive entre as pessoas da dita “elite tradicional”, Diana Lima conclui que, na realidade, não existe diferença significativa entre as práticas de consumo dos emergentes e da elite estabelecida. Ambas marcadas pelo consumo intenso de bens:

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Os emergentes consomem muitos bens e, dentre eles, bens para seu conforto físico, para sua diversão e para a aparência. Mas, acho que a forma (dita excessiva e ostensiva) como tudo isso é consumido não os diferencia da camada social que a coluna social trata como “elite tradicional” (LIMA, 2008, p.97).

O estudo de Lima é importante como dado etnográfico, uma vez que faz o mapeamento das práticas operadas pelas classes altas cariocas. Com destaque para as práticas de consumo que são indistintamente conspícuas, sejam elas operadas por classes altas “tradicionais” ou “emergentes”.

Discutindo a respeito da delimitação de fronteiras de prestígio em sociedades estratificadas, a antropóloga percebe que no microcosmo por ela estudado, o gosto, tal qual trabalhado por Bourdieu, não opera como um significativo demarcador de aproximações e diferenciações. Mais do que isso, Lima percebe que a chamada arte legítima, pouquíssimo reverbera entre as classes altas cariocas, sejam elas antigas ou de ascensão social mais recente. Em contraposição o consumo conspícuo ocupa posição de destaque.

No entanto, as diferenciações que se estabelecem tendo por parâmetro o chamado bom gosto aparecem em campo em discussões travadas pela mídia. Ao estabelecerem uma espécie de conflito/disputa entre tradicionais e emergentes, essas discussões colocam como principal parâmetro diferenciador entre as duas elites a posse (tradicionais) ou não posse (emergentes) do “bom gosto”. O que nos leva a crer que de alguma forma a ideia de cultura legítima, operando como linguagem de distinção diferencial, encontra acento em valores socialmente difundidos.

O que Lima deixa claro é que as diferentes frações da classe alta carioca não é cultivada (nos moldes bourdiesianos), seja ela tradicional ou emergente. Em seu estudo é como se as lutas simbólicas/classificatórias operassem em duas dimensões. Uma que diz respeito ao microcosmo das classes altas cariocas onde não se encontram indivíduos cultivados ou que valorizam o “cultivo de si” e onde, na realidade, os valores preponderantes são os de trabalho intenso, consumo conspícuo e sucesso. E outra que se dá na mídia e no que Lima trata por glamour system, onde se discute a respeito de quem são os constituintes da verdadeira elite (tradicionais x emergentes) tendo por critério o cultivo de si e o bom gosto.

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Os dois estudos apresentados são interessantes porque são pesquisas relativamente recentes realizadas sobre atores e grupos sociais socioeconomicamente bem posicionados nos esquemas de estratificação social no Brasil, apontando suas práticas e valores, assim como tratando a respeito de valores difundidos socialmente quando se trata de definir o prestígio social. Os achados são distintos, distanciam-se na maioria dos pontos, mas se tocam em outros. O estudo de Lima destaca-se porque questiona a pertinência da diferenciação social que se dá por meio da posse de cabedais da cultura erudita e aponta para a importância do trinômio trabalho árduo, dinheiro e consumo conspícuo como ethos positivado e disseminado entre as classes altas e também em outros campos sociais (a imprensa, por exemplo) como forma a embasar e justificar o prestígio social. No entanto, existe também a discussão, principalmente na imprensa e em manuais de etiqueta publicados no país, sobre a legitimidade ou não de pessoas, grupos, valores e práticas tendo por critério a posse de capital cultural enquanto cultura erudita. É também mais ou menos nesse sentido que se dá a discussão, que imprensa e manuais de etiqueta insistem em destacar, sobre a oposição entre tradicionais e emergentes (a riqueza antiga e a riqueza nova), em torno da qual se discute a legitimidade dos atores sociais.

Como já pude perceber com base em pesquisa realizada com agentes sociais possuidores de alto capital econômico e alto grau de escolaridade na cidade de Brasília, a distinção social sustentada pela apreciação de bens culturais relacionados às “grandes artes”

possui muito pouco trânsito (Lima, 2013). Sustento-me em tal afirmativa porque durante minha pesquisa de mestrado, além de investigar a respeito das práticas culturais dessas pessoas, acompanhei o colunismo social da cidade, e pude verificar que a produção discursiva que se faz exaltando o prestígio dos bem posicionados passa pela exaltação dos hábitos de consumo, das viagens realizadas, das festas e restaurantes frequentados. Mas também das realizações profissionais e de certo ideal de “bom gosto”. Esse último diz respeito justamente às práticas de consumo, ou seja, o que essas pessoas estão consumindo e exibindo em festas, principalmente. Mas isso pode ser apenas um aspecto próprio ao colunismo social, deve ser verificado, pois uma coisa são as práticas realizadas por essas pessoas e outra, é a produção discursiva que se faz sobre elas. Ainda assim, os discursos produzidos sobre esses sujeitos e suas práticas precisam ser considerados, pois contribuem

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para a construção da legitimidade e do valor social dos atores e de seu estilo de vida, dizendo algo a respeito do espaço social e simbólico na cidade.