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CAPÍTULO 4. A HIGIENE PARA AS BAIANAS DE ACARAJÉ: DO SIGNIFICADO AOS SENTIDOS

4.1 Higiene: aprender a ordenar e proteger

O processo de atribuição de sentidos e o aprendizado das práticas higiênicas têm sido pouco estudados na atualidade. As pesquisas e obras que abordam tal tema, em geral, são publicações que analisam o Movimento Higienista entre os Séculos XIX e XX a partir de uma perspectiva de adestramento e controle social imposto pelas autoridades sanitárias (SANT‟ANNA, 2011; BRÁS, 2008; BOARINI, 2006; COSTA, 2004; CAPONI, 2002; CHALLOUB, 1999).

Embora esse não tenha sido um objetivo central do presente trabalho, a partir da análise do material empírico, foi possível identificar três principais elementos

formadores do que as interlocutoras do estudo compreendem como impurezas: o discurso popular, o discurso biomédico e o discurso religioso. Cada um, por seu turno, também ditará as maneiras de evitamento, afastamento ou enfrentamento. É importante esclarecer que esse construto cultural parece ser erigido pela conjunção de tais blocos que se inter-relacionam, devido à sua porosidade. O contexto social não é apenas a área de interface entre eles, mas confere-lhes a fluidez como propriedade peculiar. Já o discurso popular, em grande parte enunciado pela família e grupos sociais próximos, parece ser a base sobre a qual os demais são agregados, conformados. Sendo assim, as práticas higiênicas serão o resultado dessa conjunção. Mas, antes de discorrer sobre elas, cabe tratar dos aspectos do seu alicerce.

As condutas que atualmente adotamos surgiram de um movimento lento, em grande parte provocado pelas pressões sociais às quais fomos sumetidos. Ainda na primeira infância, tem início o que Rodrigues (2010, p.99) refere como uma “batalha entre os pais e a criança”. Caras feias, palmadas, alterações no tom de voz são citados pelo antropólogo como métodos usados pelos adultos para imprimir a noção de que as eliminações corporais devem ser controladas, repelidas e afastadas.

A educação torna a criança sensível aos olhares e julgamentos do outro, um comportamento induzido, inculcado pelos cuidadores através da coação e repreensão, munindo-as de sentimentos de vergonha e embaraço, contribuindo para que seus comportamentos se conformem ao padrão instituído e arraigado no grupo social ao qual pertencem (ELIAS, 1994). Apesar de questionáveis, esses artifícios acabam por incutir no educando as noções de poluição do educador. A disparidade de forças garante a vitória dos adultos em prol do controle cultural.

Desse modo, a transmissão do complexo sistema simbólico dos pais ou cuidadores, contribui para a constituição do sujeito. Hall (2006, p.38), apoiando-se nas ideias de psicanalistas como Jacques Lacan e Freud, afirma ser a recepção um processo inconsciente. Ao que cabe acrescentar a presença do fator emocional e, consequentemente, do respeito às figuras paterna e materna que, de certa forma, garantem a preservação dos seus ensinamentos. É urgente considerar que esse não é um fenômeno neutro. Os pais também interagem socialmente e as suas concepções são híbridas, assim como os significados que suas filhas, hoje baianas

Para atender aos ideais civilizatórios, os médicos higienistas, adentraram as escolas e lares. Os espaços públicos e privados reservados ao cuidado e à educação feminina na Bahia entre os séculos XIX e XX, reforçavam ideologias, relações de poder e projetavam papéis sociais. Desde a infância, a futura mulher deveria ser modelada para se tornar esposa e mãe dedicada, religiosa, disciplinada e zeladora do lar (COSTA, 2004; PASSOS, 1994). Os cuidadores das nossas interlocutoras viveram em meio a esse contexto. Suas mães, através da educação escolar ou doméstica, adquiriram tais valores e concepções e, ao seu tempo, repassaram aos seus descendentes.

Ainda com relação à construção da identidade, Hall (2006) defende que a sua formação acontece ao longo do tempo, portanto, permanece incompleta e, como é diretamente influenciada pela interação social, “muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado”. A partir dessa ponderação, retomaremos então os outros dois elementos.

O discurso biomédico chega a essas mulheres por diversos meios. No programa de televisão, no consultório médico, nas salas de aula recebem instruções, recomendações, treinamentos que enfocam a higiene. Os métodos agora são outros: a linguagem técnica, em parte popularizada por termos coloquiais, busca esclarecer a “ignorância dos riscos de contaminação”, adoecimento e morte, como vimos em outro estudo da nossa autoria (MAGALHÃES et al, 2011).

Contudo, é imprescindível compreender o processo de construção de riscos a partir do entendimento de que são forjados em determinados contextos sociais, culturais e históricos. Enquanto o risco biomédico é baseado em probabilidades estatísticas objetivas, as pessoas leigas percebem-no subjetivamente com base em suposições ontológicas e cosmológicas (CASTIEL, GUILAM e FERREIRA 2010; LUPTON, 2005).

Mais uma vez, observa-se a “batalha”, agora em prol da saúde. Entretanto, a pressão exercida já não é mais capaz de vencer a guerra de braços. A tão almejada ubiquidade esbarra na resistência relativa, principalmente quando representa uma ameaça à identidade. Como veremos, são abertas concessões, mas todas são de certa forma, negociadas e, ao serem incorporadas ao sistema simbólico, justificadas. Se a crença biomédica traz a noção de corpo contaminado, a crença religiosa volta-se à impureza do ser maculado pelos defeitos morais. Sendo assim, atender aos ditames do discurso religioso é, para as interlocutoras do estudo, uma forma de

respeito e cumprimento das regras, atos imprescindíveis à aproximação com a divindade. Lutar contra tais princípios seria uma forma de insurreição, que ameaçaria o seu futuro. Ainda assim, micro-manipulações são feitas para acatar outras normas.

Retornando à edificação para analisá-la em sua totalidade, constatamos que, para as interlocutoras do estudo, higiene significa ordem. Suas crenças, comportamentos e atitudes ratificam a tese postulada por Mary Douglas (1991, p.16), que chegou a tal conclusão através da análise das concepções de diversas sociedades em todo o mundo. Temos assim, um cotidiano marcado por um processo imanente de conflitos e conciliações.

Fazendo uma analogia das noções de poluição com a vida social, a autora sustenta: “[...] o que não está com ela, não é parte dela e não está sujeito às suas leis, está pelo menos, virtualmente, contra ela”. Observamos que essa ideia de oposição reside na obrigação de classificar e delimitar o lugar de cada ser, objeto, atitude, sentimento.

A casa, a família, o ponto de venda, o tabuleiro, a comida, o seu corpo habitam o pólo sagrado. Tudo o que ameaça a sua ordem é encarado como perigoso e relegado ao pólo oposto. Uma linha demarcatória estabelece os limites entre os dois lados, mas permite a sua transição a depender do contexto, sendo o puro e o impuro categorias relativas. Diante da zona intersticial, a baiana põe-se a postos. Olha, toca, cheira, prova, ouve, intui o que representa risco. Vigia e protege ao dispensar cuidados especiais, que examinaremos posteriormente.