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Capítulo 3: A “casa dos Orates”: assistência aos alienados e profilaxia das

3.1 A história da assistência aos alienados no Brasil segundo Juliano Moreira

Partimos da história da assistência contada inicialmente por Juliano Moreira, em um texto de 1905, publicado no Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Medicina Legal e Ciências Afins– dois anos antes da criação da Sociedade –, para observarmos, na sequência, como as questões assistenciais apresentadas pelo psiquiatra baiano foram retomadas por ele e por outros membros da Sociedade, após a criação desta, no contexto das reuniões e de novas publicações nos Arquivos Brasileiros.

138 Neste texto publicado no primeiro número dos Arquivos Brasileiros, com o título “Notícia sobre a evolução da assistência a alienados no Brasil”, Juliano Moreira, então diretor do Hospício Nacional de Alienados, faz uma retrospectiva histórica sobre o desenvolvimento dessa assistência no Distrito Federal e em outras capitais brasileiras. Ele procura demonstrar, sob uma perspectiva progressiva e linear, como a maneira de “tratar” as pessoas consideradas alienadas “evoluiu” do mais completo descaso e desamparo para com estes até a fase em que a medicina e a “psiquiatria moderna” puderam “tratar” destas pessoas de uma forma “terapêutica”.

Moreira (1905) começa sua narrativa fazendo um recuo até o período colonial, a fim de demonstrar que, então, “os alienados”, “idiotas” e “imbecis” eram “tratados de acordo com suas posses”. Para os “abastados”, existia a possibilidade de tratamento domiciliar ou na Europa, se estes fossem tranquilos, e, para os agitados, “punham-nos em algum cômodo separado, soltos ou amarrados, conforme a intensidade da agitação” (Moreira, 1905: 54). Para os “mentecaptos” pobres, sobravam as alternativas de vagar pelas ruas ou serem recolhidos às cadeias, onde, segundo o autor, eram “barbaramente” amarrados e muito mal alimentados, vindo a falecer rapidamente. O autor caracteriza a terapêutica da época como baseada em “sangrias e sedenhos quando não de exorcismos católicos e fetichistas. (...) os curandeiros e ervanários tinham também suas beberagens (...) com que prometiam sarar os enfermos” (Moreira, 1905: 54).

Segundo o autor, nenhuma providência foi tomada em relação ao aumento dos casos de alienação mental até 1830. Para ele, este aumento na incidência de casos de alienação era consequência do acelerado crescimento da população do Rio de Janeiro, após a vinda da corte de D. João VI para o Brasil em 1808, somado ao “(...) rápido desenvolvimento do meio urbano, um certo gosto pelo luxo e o aumento na luta pela vida”. Somente em 1830, surgiram os primeiros protestos contra a situação dos alienados; naquele ano, o relator da comissão de salubridade da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, Dr. Jobim, teria reclamado “urgentes modificações no modo de distribuí-los, nos cuidados de asseio”, protestado “contra os maus tratos que lhes infligiam” e clamado pela “criação de um asilo especial para alienados”. Estas denúncias pesavam diretamente contra as prisões e a Santa Casa de Misericórdia, para onde os alienados “infelizes” e “desgraçados” eram levados, e, mesmo depois de confirmadas pela Comissão da Câmara Municipal, nada foi feito até o final da década de 1830, apesar dos constantes debates entre os médicos e das denúncias publicadas na imprensa diária sobre o assunto (Moreira, 1905: 54-55).

139 Moreira cita os protestos do Dr. Sigaud, no Diário de Saúde em 1835, contra “os inconvenientes do livre trânsito pela cidade de alienados que, expostos à irritação dos garotos, chegavam a cometer crimes”. Também menciona a memória do Dr. Luiz Vicente de Simoni sobre a “Importância e necessidade da criação de um manicômio ou estabelecimento especial, para o tratamento dos alienados”, publicada pela Revista Médica Fluminense em 1839. Naquele período, o local destinado aos alienados na Santa Casa de Misericórdia era estreito, dividido em 12 pequenas “células”, com dois leitos cada, tendo como área de locomoção para os loucos apenas um corredor com duas janelas que davam para o jardim e pátio interno. Estes ficavam amontoados nestes espaços, sendo expostos à curiosidade e às provocações dos pedestres e sujeitos aos castigos no tronco, que durante o dia era usado para punir os escravos do hospital e à noite para acalmar os doentes em “acesso de delírio” (Moreira, 1905: 55).

Somente em 1839, o Provedor José Clemente Pereira teria ouvido o apelo dos médicos e solicitado à Santa Casa urgência no atendimento das reclamações dos “homens da ciência”, posteriormente enviando, em julho de 1841, um ofício ao ministro do Império Candido José de Araújo Vianna, que relatava os problemas em manter os alienados na Santa Casa de Misericórdia e solicitava a “fundação de um hospital de alienados”, cujo nome poderia ser D. Pedro II, em homenagem à coroação do imperador. Muito rapidamente, no mesmo mês em que o ofício fora enviado, foi promulgado o decreto imperial de 18 de julho de 1841, criando o Hospício de Pedro II142, anexo à administração da Santa Casa de Misericórdia (Moreira,

1905: 56-57).

Neste texto, Moreira destaca quatro marcos relevantes para o que denominava “evolução” da Assistência a Alienados no Brasil, até o ano de 1905. O primeiro é a fundação do Hospício Pedro II, enquanto um “influxo inicial”; a seguir, a criação da cadeira de psiquiatria das Faculdades de Medicina, em 1883; o terceiro é “a volta do Hospício à administração do Estado”, com a separação da Santa Casa de Misericórdia em 1890, que, “por seu alto alcance social”, marcava “uma era nova nos problemas da assistência”; e, por fim, a promulgação da lei federal de assistência (1903). Todos estes momentos, além de servirem como balizas do “progresso” alcançado, na visão do alienista, teriam impulsionado a assistência no Brasil para o caminho “vasto” da “ciência e da verdadeira filantropia” (Moreira, 1905: 97-98).

140 Em 1923143, Juliano Moreira voltava a se pronunciar sobre a história da psiquiatria,

então alargando mais os períodos que analisa e redimensionando os marcos propostos. Ao discursar por ocasião da comemoração na Sociedade do seu vigésimo ano como diretor da Assistência, ressaltava a importância da criação do hospício como o verdadeiro marco inicial da assistência aos alienados no Brasil, ao invés dos decretos de 1890, que expressariam o terceiro marco da história da psiquiatria proposto pelo autor em seu texto de 1905. A inauguração do hospício, que representava um “influxo inicial”, se tornara – mais que a legislação – o grande baluarte da psiquiatria brasileira. Moreira estava se referindo ao decreto n. 142A, de 11 de janeiro, assinado pelo ministro Aristides Lobo, que separou o hospício da administração da Santa Casa, passando aquele a ser denominado Hospício Nacional de Alienados; e ao decreto n. 206A, de 15 de fevereiro do mesmo ano, que aprovou “as novas instruções” e anexou ao HNA as Colônias da Ilha do Governador, criando assim a “Assistência médico-legal dos alienados”. Ainda em 1890, foi aprovado o regulamento da assistência, sendo nomeado, como diretor geral desta, o Professor Teixeira Brandão, e como diretor das colônias o Dr. Domingos Araújo. No mesmo período, foi criado o Pavilhão de Observação do Hospício144, para evitar a internação de indivíduos cujo “estado de alienação”

ainda não tivesse sido verificado e também servir para as aulas de clínica psiquiátrica (Moreira, 1905: 65).

Analisando o artigo de Moreira (1905), é possível perceber que, além de narrar a história da assistência, ele tem como objetivo incluir sua participação nesta história. Ele o faz procurando demonstrar sua influência na criação da lei de assistência aos alienados, em 1903, e ressaltando também as reformas realizadas no HNA desde o início de sua gestão, como forma de defender que a tutela dos alienados pela psiquiatria traria consideráveis “benefícios terapêuticos” para estes.

Moreira (1905) cita que foram realizados os seguintes melhoramentos no hospício: “pintura geral do edifício, construção de quatro novos pavilhões para doentes, construção de nova cozinha com aparelhamento a vapor e dependências elétricas, preparação de quatro novas enfermarias, construção de uma sala de operações assépticas, instalação de uma sala de curativos, fundação de uma sala de eletroterapia, e uma de mecanoterapia, construção de um pavilhão para oficinas, construção de um novo necrotério com sala de autopsias modelo, levantamento de dois pavilhões leves para o abrigo dos doentes em dias chuvosos, iluminação elétrica geral do estabelecimento, aquisição de novas camas para as novas enfermarias,

143 Ver discurso proferido por Juliano Moreira na sessão de 26 de março de 1923. ABNP, 1923: 55-66. 144 Segundo Venancio (2003), o Pavilhão de Observações recebia “os pacientes com atendimento

gratuito, suspeitos de alienação mental, que ali chegavam por meio das autoridades públicas. Estava exclusivamente destinado à clínica psiquiátrica e de moléstias mentais da Faculdade de Medicina” (Venancio, 2003: 888).

141 reforma no edifício de lavanderia, revisão dos esgotos e modificação de lavabos para doentes” (Moreira, 1905: 75-76).

Juliano Moreira ressaltava que, durante a reforma do HNA, esteve afastado da direção deste, por “motivo de moléstia”, ficando a execução das obras sob a responsabilidade dos diretores interinos, a princípio Sá Ferreira e depois Afranio Peixoto145 (Moreira, 1905: 76).

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