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JOÃO PESSOA E A GEOGRAFIA DO DESEJO

1.1 História de Jonas, história de João Pessoa

Fim de tarde em um cinema pornô, na rua Cardoso Vieira, centro de João Pessoa. Estou na área de fumantes conversando com um rapaz. Dizia ter 26 anos, era bonito segundo o olhar dos demais rapazes que ali se encontravam. Bermuda simples e estampada, uma camisa sem qualquer estampa; calçava tênis, boné e tinha no pescoço um escapulário prateado. Enquanto conversávamos, encostado à parede ele se masturba. Havia ali uma mistura de desinteresse e excitação. Sem dúvida estava interessado na conversa, mas não saberia dizer se seu maior interesse é o papo ou na ‘presa’. As 18h horas o sino da Igreja das Neves soa as badaladas da missa noturna. Ágil, e de modo quase automático, o rapaz troca as mãos. Masturba-se com a esquerda e faz o sinal da cruz com a direita. Estranho, mas não digo nada. Parece não haver ali qualquer contradição ou constrangimento. Simplesmente, um ritual cotidiano. Eu no meu, ele no dele. A situação ilustra bem as complexidades e múltiplas camadas de elementos sociais que configuram a dinâmica dos jogos afetivos e eróticos em uma cidade como João Pessoa.

46 Ainda que possa ser percebida como uma cidade de grande porte5 estabelecendo relações metropolitanas com outros municípios e estados, o processo de formação da população em João Pessoa e a ocupação dos bairros é caracterizada pela expansão de um modo de vida interiorano para a capital através das oportunidades e promessas de facilidades nos campos do trabalho, educação e infraestrutura. Esse processo pode ser localizado no século XX com a construção das avenidas Epitácio Pessoa e Cruz das Armas no primeiro quarto de século, e se intensificaram a partir da década de 1960 com as políticas dos conjuntos habitacionais (LAVIERI; LAVIERI, 1997; GONÇALVES, 1999; ANDRADE, 2007) e a pavimentação dessas avenidas, além da intensificação do sistema de transporte, facilitando assim o acesso à praia e a cidades vizinhas.

Os projetos de expansão das áreas de moradia através dos conjuntos habitacionais possibilitou a integração da cidade a equipamentos de lazer, em especial na região da praia, que até a década de 1950 consistia em um distrito não integrado ao território da cidade. A abertura e pavimentação da avenida cruz das Armas, no eixo norte-sul, possibilitou a melhoria do acesso a outras cidades com estilos de vida mais próximos aos ideais de modernidade dos grandes centros como Recife. Todavia, em termos sociais e culturais, a intensificação de sucessivas ondas migratórias do interior para a capital no período compreendido entre 1950 e 1980 e que conformou a população da cidade estava caracterizada pela manutenção de grupos domésticos expandidos, em geral oriundos de municípios vizinhos e que nesse primeiro momento mantiveram relações de apadrinhamento, vicinalidade e modos festivos próximos àqueles da vida no campo.

Longe de uma imagem idílica, os valores e ideais que estruturavam a vida no campo e que foram importados para a nova habitação na capital estavam sobremaneira vinculados à valorização da religião e do trabalho como princípios organizadores da moral e das relações. Não se tratava ainda da imagem de nordestino comprometida com valores como a extrema virilidade e a simbiose com o meio rústico. Em suma, tratava-se de um estilo de vida pacato com valorização do espaço doméstico e familiar, das relações com a igreja e o sagrado, bem como dos laços de vicinalidade que se estendiam para além do campo. Esses elementos confirmavam, na capital, hábitos típicos da sociabilidade interiorana: a missa ou culto aos domingo, as conversas de fim de tarde

5 Conforme as instruções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, são consideradas cidades de

47 com cadeiras postas à calçada, o apadrinhamento, a elasticidade e manutenção de laços com os sítios e municípios de origem, entre outros.

Conforme sugerido por um dos interlocutores, o processo de expansão da cidade em direção à zona sul e também ao litoral com o aumento da oferta de lazer possibilitou também a aproximação à espaços de troca erótica onde os desejos por outros homens não eram tornados públicos e assim não competiam com a moralidade dos modos de vida interioranos na cidade. Quando o conheci, Jonas tinha 56 anos e havia mudado pra João Pessoa junto com a família no final da década de 1970. Na sala da sua casa Jonas mantinha os retratos pintados dos avós e dos pais, bem como um retrato pintado seu do período de infância. Junto à estante de madeira e aos sofás fotografias de outros momentos: o batizado dos irmãos, os desfiles cívicos, casamentos. Originários de uma pequena cidade no sertão paraibano, o pai viera para trabalhar no comércio além de possibilitar ao ele e os irmãos a possibilidade de melhores condições de estudo nos cursos de segundo grau na capital.

Segundo Jonas, ainda que houvesse na sua cidade de origem a possibilidade de encontros com outros rapazes nos sítios e festas, a chegada à cidade e as ofertas de lazer em bairros mais distantes aos fins de semana também era convertida na possibilidade de encontros furtivos, em especial na região da Lagoa, onde se encontravam lojas, pequenos bares e restaurantes, além do Cine Teatro Plaza. Foi a partir desses encontros que Jonas teve sua primeira transa com outro homem, bem como, anos depois, já na universidade, teve sua primeira relação com outros “entendido”, como costumava-se referir naquela época às pessoas que assumiam sua orientação homossexual, ainda que não de maneira evidentemente pública. Foi na universidade também que Jonas teve contato com o que na época era o “movimento homossexual”, a partir de colegas nos cursos de comunicação social, ainda que dissesse não gostar das pessoas desse meio. Todavia, é possível sugerir que o encontro que esse tipo de experiência tiveram efeitos sobre a forma como ele pensa sua vida, em especial seus desejos: “antes eu achava que era errado, mas depois de um monte de coisa que vivi, só acho diferente”.

Não pretendo tomar a experiência de Jonas como uma narrativa para a confluência e transformação dos modos de vida caracteristicamente interioranos em João Pessoa, mas é possível depreender que, ao passo que no período entre 1960 e 1980 houve uma intensa ocupação habitacional de João Pessoa, esse período é caracterizado também, em um contexto nacional, pela visibilidade de questões relativas à homossexualidade masculina a partir de espaços mais politizados, com a emergência,

48 por exemplo, dos primeiros grupos homossexuais em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. No contexto local é nos anos 1980 que se observa também uma efervescência nos equipamentos de lazer que se notabilizaram como espaços receptivos a um público homossexual, especialmente homens, a exemplo do bar da Xoxota, na região de Tambaú. O bar da Xoxota era um espaço que reunia estudantes, jornalistas, artistas e outros profissionais liberais que beber, dançar e mais usualmente conversar. Era um local também conhecido pelo consumo de maconha, razão que aumentava também a constância das batidas policiais. Ainda por Jonas soube que nesse período era comum encontrar homens que saíam para encontrar amigos, paquerar e beber na região do Hotel Tambaú, além da Universidade Federal da Paraíba, locais que até hoje servem como pontos de encontro e de estabelecimento de trocas sexuais e afetivas.

Os principais centros de encontros sexuais que pude observar em João Pessoa se configuravam exatamente a partir de espaços de passagem caracterizados por um grande fluxo de pessoas. Nesse contexto sobressaem-se de maneira mais notória a praia e os banheiros públicos e de livre acesso. A partir de traços em comum é possível reconhecer esses dois domínios como pertencentes a um circuito mais amplo que reúne agentes interessados no que pode ser por hora sintetizado como sexo em (lugar) público. Ainda que essa dimensão pública do sexo possa ser observada de maneira recorrente em outros espaços que não os mencionado nesta seção, dada a iminência dos encontros entre corpos, desejos e possibilidades, a praia e os banheiros públicos são os espaços que usualmente melhor tem servido como região de encontro6.