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Capítulo 2 – Falsa abolição: legislação não é sinônimo de justiça social

1) História de mobilização das trabalhadoras domésticas no Brasil – Pré

Constituinte.

A participação das mulheres brancas de classe média no mercado de trabalho perpetua engrenagens de manutenção da realidade vivida por inúmeras mulheres negras durante a história. Transferem os serviços domésticos para outras mulheres,

submetem-nas a péssimas condições de trabalho – baixa remuneração e jornadas de

trabalho exaustivas – e acabam perpetuando a lógica racista instaurada (GONZÁLEZ,

1983). A naturalidade com que esse privilégio é exercido é garantida por uma lógica de reprodução de opressões garantida por um Estado/estado patriarcal, classista, heteronormativo e racista.

A história de mobilização das trabalhadoras domésticas em favor da luta por direitos e visibilidade, não obstante ainda não serem reconhecidas enquanto categoria de trabalhadoras nessa época, começa em 1936 com dona Laudelina de Campos Melo que funda a primeira Associação de trabalhadoras domésticas do país em São Paulo (ALVES, 2013). O primeiro momento da mobilização de trabalhadoras domésticas foi a reivindicação pelo direito ao sindicato (BERNARDINO-COSTA, 2015). A Associação buscava igualdade jurídica de tratamento com relação a outras categorias de trabalhadoras/es: conquista do status de sindicato que permitiria uma melhora na proximidade do diálogo com o Estado em busca do reconhecimento de outros direitos trabalhistas.

O Código Civil vigente nessa época ainda datava de 1916 e tratava o trabalho doméstico como caso de “locação de serviços”. Aos trabalhadores “locados” só existia uma garantia: contraprestação pelos serviços prestados. Mesmo com a promulgação da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) por meio do Decreto-lei n.º 5.452 publicado no dia 1º de maio de 1943 pelo então presidente Getúlio Vargas, a situação das trabalhadoras domésticas não mudou. Isso porque, a despeito dos celebrados avanços comemorados com a publicação das CLT, o artigo 7º do texto em sua alínea ‘a’ excluiu as trabalhadoras domésticas do rol de trabalhadores aos quais se aplicariam os preceitos da Consolidação, vejamos:

Art. 7º Os preceitos constantes da presente Consolidação, salvo quando for, em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam: a) aos empregados domésticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas; [...]. (BRASIL, 1943, grifo nosso).

A negativa ao direito de organizarem-se em sindicatos impulsionou os primeiros momentos de expansão do movimento de trabalhadoras domésticas, principalmente através da figura de dona Laudelina e da primeira Associação de trabalhadoras domésticas fundada por ela. A não-regularização do trabalho doméstico pela CLT, não obstante tenha atrasado muito a conquista de direitos pela categoria, acabou sendo um impulso importante para um segundo momento de expansão do movimento de trabalhadoras domésticas. A década de 1960 inicia com o surgimento de parcerias importantes como o movimento sindical, o Teatro Experimental do Negro e a Juventude Operária Católica (JOC) (BERNARDINO-COSTA, 2015).

O Teatro Experimental do Negro aparece através do contato da categoria com o movimento negro, sobretudo em Campinas, por conta de dona Laudelina. O fortalecimento resultante desse encontro pode ser exemplificado através da cobertura das discussões acerca de um Projeto de Lei (PL) do Deputado Café Filho em 1950 que pretendia regular a profissão das trabalhadoras domésticas realizada pelo jornal “O Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro”, que era editado e dirigido por Abdias do Nascimento (BERNARDINO-COSTA, 2015).

Joaze Bernardino-Costa (2015) chama atenção para a importância da JOC na nacionalização do movimento de trabalhadoras domésticas. Enquanto o Teatro Experimental do Negro transitava principalmente no eixo Rio-São Paulo, a Igreja Católica alcançava todo o território brasileiro. Dois eventos ocorridos em 1958 e 1960,

organizados pela JOC, são importantíssimos na história da mobilização dessa categoria: Conferência Nacional e Primeiro Encontro Nacional de Jovens Empregadas Domésticas, respectivamente. O primeiro foi uma proposta da Juventude para chamar a atenção da população para a insegurança e desamparo jurídico vividos pelas trabalhadoras. O segundo aconteceu no Rio de Janeiro e, como o nome sugere, reuniu 24 trabalhadoras de várias regiões do país. Também abriu portas para que outros eventos acontecessem, como o Primeiro Congresso Regional que ocorreu em Recife em 1961 e reuniu mulheres de 4 estados: Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.

A atuação da JOC e o seu impulso de nacionalização do movimento junto à crescente colaboração de outros sindicatos, contribuíram para o surgimento de Associações de Trabalhadoras Domésticas em outros estados do país. A despeito da orientação religiosa da JOC, as associações e grupos que surgiam não eram subordinados à Igreja e possuíam, sobretudo, uma orientação classista. (BERNARDINO-COSTA, 2015). Creuza Oliveira falou um pouco sobre a presença da Igreja Católica no princípio da articulação do grupo de trabalhadoras domésticas em Salvador e como ela reagiu diante disso.

CREUZA: [...] tinha uma pastoral das doméstica que se reunia lá na Praça da Sé, naquela igreja católica que tem na Praça da Sé. Aí tinha lá o padre Maton... é... Maton... Maton... o padre Maton, e tinha lá uma senhora que era freira, que fazia a reunião. E esse grupo dizia que era a pastoral das doméstica. E eu cheguei ir nessa pastoral em algumas reuniões, numas duas reuniões. Mas aquela reunião não me agradou porque falava que a doméstica tinha que ser... era... como é que diz... a santa Zita era a padroeira das domésticas. E santa Zita foi empregada doméstica... que é italiana, né, a origem da santa Zita, é italiana. E santa Zita era uma doméstica obedient e, que obedecia os patrões, e que a gente tinha que obedecer a patroa, porque a patroa era como se fosse a segunda mãe. E não era isso que eu queria ouvir, né. Apesar de eu ainda não ter uma consciência política, nem de gênero, nem de raça, mas aquilo não soava bem dentro de mim, de dizer que patroa é a minha mãe. Que eu tinha que ver aquela patroa como se fosse minha mãe. E eu dizia ‘não, ela não... não é minha mãe... não é assim...’. E aí eu deixei de participar. Até que um dia eu vi no rádio que existia esse grupo lá no colégio Antônio Vieira, que se reunia duas vezes no mês. Que é no segundo domingo e no quarto domingo que se reunia lá no santuário Nossa Senhora de Fátima , né. Todo segundo e quarto domingo à tarde. E eu fui visitar esse grupo, e chegando lá fiquei decepcionada porque eu pensei que eu ia achar muita gente, e quando cheguei lá tinha um grupinho pequeno, né. E eu aí comecei, participei da primeira reunião, e gostei do que tava falando. (informação verbal, grifos nossos).

Em 1968 aconteceu o 1º Congresso Nacional das Trabalhadoras Domésticas em São Paulo, fruto da ação autônoma das trabalhadoras. Essa nova fase vivida pelo

movimento das trabalhadoras domésticas era orientada pela intenção de auto reconhecimento enquanto classe trabalhadora e ocupante de um dos polos da dualidade patrão/empregado. “As campanhas desenvolvidas durante esse período –

inícios da década de 1960 a meados da década de 1980 – tinham como foco o

reconhecimento classista-profissional das trabalhadoras domésticas”

(BERNARDINO-COSTA, 2015, p. 66).

Em 11 de dezembro de 1972, foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) a Lei n.º 5.859 a fim de dispor “sobre a profissão de empregado doméstico” (BRASIL, 1972). Definia “empregado doméstico” em seu art. 1º como “(...) aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas (...)” (BRASIL, 1972). Apenas na década de 70 as trabalhadoras domésticas passaram a ter alguma legislação que tratasse especificamente da categoria. Com isso quero destacar, por exemplo, que apenas na década de 70 tiveram o direito a ter carteira assinada expresso em lei.

A Lei n.º 5.859/72 previa alguns direitos trabalhistas como férias anuais remuneradas de 20 dias úteis, filiação à Previdência Social como segurada

obrigatória25 e a anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS)

supracitada. Não tratou de questões importantes como o horário de trabalho ou de quantas horas seria a sua jornada; essas matérias permaneceram a critério dos empregadores. Importa salientar que essa norma também não revogou o art. 7º, alínea ‘a’ da CLT. Destarte, além de ser aprovada com atraso de 29 anos com relação à CLT, uma das principais e mais significativa legislação dos trabalhadores e trabalhadoras, a Lei n.º 5.859/72 já nasce em atraso, pois mantém a categoria de domésticas desamparada com relação à maioria dos direitos garantidos aos empregados urbanos.

Até meados da década de 1980, não obstante a nacionalização e expansão do movimento, o protagonismo da luta estava situado majoritariamente no eixo Sul- Sudeste, com exceção de Recife. Simultaneamente, o movimento de trabalhadoras domésticas no Brasil começa a dialogar com o movimento feminista. O crescimento das mobilizações em outros estados, sobretudo na Bahia, foi fundamental para

25 A Lei Ordinária da Previdência Social (Lei n.º 3.807/60) já havia apontado a possibilidade de filiação

das trabalhadoras domésticas à Previdência, no entanto, eram seguradas facultativas, isto é, a contribuição dependia exclusivamente das próprias trabalhadoras domésticas. Com a Lei n.º 5.859/72 passaram a ser seguradas obrigatoriamente.

incentivar esse intercâmbio e para aproximar as militantes das discussões raciais e feministas acerca da política nacional. A Associação Profissional das Trabalhadoras Domésticas da Bahia surgiu em 1986, como narra Creuza de Oliveira, sua primeira presidenta:

CREUZA: Em oitenta e seis a gente fundou a Associação Profissional das Trabalhadoras Domésticas da Bahia. E isso eu entrei no grupo em oitenta e quatro. Aí em oitenta e seis a gente fundou a associação, que a gente não podia ser sindicato, então fundamos a associação, e eu fui a primeira presidenta da associação, né. Aí ficou como associação até... até noventa. Aí quando foi em noventa a gente transformou a associação em sindicato, né. Que agora esse ano vai fazer vinte e sete anos, né. E aí a gente t á aqui nessa batalha (informação verbal).

A relação com o movimento feminista estreitou-se ainda mais também a partir da região Nordeste. Em 1985 uma ONG feminista de Recife chamada SOS Corpo prestou assessoria à organização do 5º Congresso Nacional das Trabalhadoras Domésticas que aconteceu na cidade de Olinda em Pernambuco (BERNARDINO - COSTA, 2015). O intercâmbio de forças com outras mulheres permitiu a participação das trabalhadoras domésticas na Constituinte. O diálogo com movimentos partidários, sindicais e negro perpassam toda a história de luta da categoria, não obstante, foi da consolidação da parceria com as mulheres que surgiu a possibilidade de luta na Assembleia Constituinte pela conquista de direitos a serem garantidos pela nova Constituição que se planejava.

2) Trabalho doméstico e Constituição Cidadã: participação das trabalhadoras