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Parte I: O QUE É A COBRA?

2.1 História como devir

A noção de viagem é fundamental para se entender a literatura do século XIX, conforme Flora Süssekind expõe no estudo citado anteriormente. Dois momentos se fazem necessários para explicar a sua tese para compreender os autores daquele período. O primeiro diz respeito ao nacionalismo literário que marcou de modo particular o início daquele século. Assim, para buscar uma voz que fosse “autenticamente” nacional, os escritores da época elegeram um “modelo” bem preciso: os viajantes estrangeiros que haviam passado pelo Brasil e deixado suas impressões, perplexidades, estudos e projetos em vários tipos de relatos.

A influência dos relatos de viagem na literatura do século XIX pode ser analisada por vários ângulos. O que vou eleger é aquele que coloca em evidência o paradoxo que reflete bem a situação do Brasil no momento em que os escritores, não podendo contar com uma tradição literária nacional, vão buscar nos relatos dos estrangeiros o “estilo” e a “temática” para desenvolver suas histórias, de modo a dar vazão ao projeto de autonomia cultural e que, portanto, fosse uma expressão “autêntica” das coisas do Brasil. Ao elegerem tais relatos, os escritores reconheciam que os estrangeiros que escreveram sobre o Brasil podiam servir de “modelo” exatamente por serem estrangeiros e, assim, possuírem uma garantia de “autenticidade”, segundo a concepção sociológica positivista que predominava na época, e que pregava o devido “distanciamento” como condição para o conhecimento de um determinado objeto.

Logo, foi a busca por essa autenticidade que marcou o desejo dos escritores no momento de dar “voz” aos seus projetos nacionalistas, o que não deixa de refletir, de maneira bem clara, o que se pode chamar de “espírito da época”. Comprovam isso os próprios relatos dos viajantes que passaram pelo Brasil, ao longo do século XIX, marcadamente definidos por uma corrente cientificista que descobriu na América uma fonte inesgotável de fenômenos por serem conhecidos, e, portanto, apostava-se, nesse conhecimento, o futuro da ciência, no qual se jogava o progresso da humanidade, na concepção naturalista daquele momento.

Nesse sentido, mais um paradoxo nos é oferecido para tentar entender a escrita do século XIX, que não deixa de ser o próprio paradoxo da “escrita de viagem”, assim como aparece nos relatos em questão. Esses são definidos por um afã de conhecimento total, que pretende dar conta de toda a diversidade dos fenômenos naturais, humanos e cósmicos que

os viajantes europeus encontraram nas terras do novo continente. Mas, como tal tarefa está sempre mais além da capacidade humana de conhecimento, a escrita que anseia dar conta do “real” tem sempre de admitir o seu fracasso.

A visão cientificista do mundo, que marca de maneira profunda os relatos dos viajantes que passaram no século XIX pelo Brasil, vai estar presente também na literatura que assumiu tais relatos como “modelo”. Isso é verificado de maneira efetiva, quando se trata de escrever a respeito da natureza brasileira, aliás, a maior fonte de “inspiração” para os literatos de então. O encontro de uma visão moldada pelo afã científico, como era o caso dos europeus que chegavam para estudar a realidade brasileira, com uma paisagem que não tinha qualquer comparação com aquelas a que estavam acostumados no Velho Mundo, criou um choque entre escrita e natureza que é bastante visível na literatura brasileira do Novecentos.

Tal choque vai gerar mais um dos paradoxos que irão contribuir para moldar a mirada ofídica da qual estou falando. Se existe a pretensão de dar conta de toda a exuberância que caracteriza a natureza tropical, mas como a escrita, evidentemente, não dará conta de objetivar tal pretensão, surge um procedimento literário que pode ser definido como “escrita-em-trânsito”, para tomar uma expressão que aparece nos estudos de Flora Süssekind.105 Essa é marcada pelo volume grande de informações, acontecimentos, peripécias, que vão sempre remetendo sua explicação para “algo a mais”. De fato, o afã totalizador tem como efeito o sentimento de que tudo ainda está por ser feito. A percepção de inacabamento é o preço que o naturalismo do século XIX pagou por ter pretendido uma visão universalizante da natureza.

Por ser formado por uma “escrita-em-trânsito”, no qual se aninham de maneira contundente os paradoxos de uma visão naturalista diante de uma natureza rebelde à classificação, a literatura brasileira do século XIX, de maneira particular, a do início desse período, oferece algumas possibilidades para que se possa aproximá-la do conceito de desvio, como estudado no capítulo anterior.

Vimos que, neste estudo, a noção de desvio é devedora de uma maior, a que foi formulada com ajuda de uma certa filosofia do devir. Desvio = devir. Os paradoxos temporais são, portanto, uma das marcas que apontam o drama antropológico de uma

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escrita que, embora saiba não poder ultrapassar os limites impostos pelo tempo, a esses, no entanto, procura sempre transcender. A tensão entre o momento que passa e aquele que já é parte desse momento, exatamente porque já passou ou porque ainda vai passar; a ideia de contemporâneo de Giorgio Agamben é pertinente para que se possa analisar a “escrita-em- trânsito”, aproximando-a de algo como o movimento das cobras nas praias amazônicas, que dão volteios, tentando apagar as suas próprias pegadas, mas nisso as releva em sua condição de que estão sempre exatamente “em-trânsito”, desvindo; ou “devendo” sempre a si mesma.

Tal concepção coloca em suspensão a postura evolucionista que tanto marcou o século XIX. O “em-trânsito” pode dizer dos limites da visão naturalista, que se manteve na crença de que, mesmo ainda não tendo instrumentos para compreender a exuberância do Novo Mundo, com o evoluir da ciência, viria o momento em que, como a máquina do mundo de Carlos Drummond de Andrade,106 tudo iria se explicar. A análise que pretendo sustentar está, como se percebe, indo por outro caminho, aquele que toma como ponto de partida o próprio inacabamento. Esse não só diz respeito a um suposto “fim”, ao qual o movimento se dirige, pois está presente no próprio início, já é esse, que também é “inacabado”.

Assim, em contraponto a uma visão recheada da especulação de que, um dia, ao se entender o desenvolvimento dos fenômenos naturais, ter-se-ia uma explicação definitiva para o surgimento da própria natureza, vou assumir uma posição orientada pelo método genealógico de matiz nietzschiano, o que busca as “origens” não propriamente para se obter uma explicação definitiva para o fenômeno que se propõe a estudar, mas sim para verificar as condições que possibilitaram o seu aparecimento dentro da história. A história entendida como devir, a meu ver, ajuda a colocar o estudioso dentro de uma perspectiva que não faça pouco caso da história, mas evita torná-lo cativo de certo “cronologismo”.

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