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História do cerco de Lisboa, o Raimundo de José Saramago

3. Ficções teóricas ou teorias ficcionais

3.1 Traduzindo segundo uma visão tradicional

3.1.2 História do cerco de Lisboa, o Raimundo de José Saramago

Está demonstrado, portanto, que o revisor errou, que se não errou confundiu, que se não confundiu imaginou, mas venha atirar-lhe a primeira pedra aquele que não tenha errado, confundido ou imaginado nunca. Errar, disse-o quem sabia, é próprio do homem, o que significa, se não é erro tomar as palavras à letra, que não seria verdadeiro homem aquele que não errasse.

José Saramago, 2011, p. 21 Raimundo Benvindo Silva é um revisor de textos (ou escritor frustrado, como é apresentado) solteiro, que vive sozinho, cercado de livros, ganha pouco e revisa textos de que não gosta, mas que, como a “sociedade exige”, respeita a hierarquia que lhe é imposta de ser fiel e subserviente ao original e ao autor. Raimundo seria como “qualquer” outro revisor não fosse por um detalhe, detalhe este que o fez visível.

Assim como Raimundo Morel, Raimundo Silva estava de posse das provas de um livro que estava revisando, com a diferença de que o Senhor Silva, como o pessoal da editora o chamava, revisava o livro de um famoso historiador. Tratava-se da última revisão do livro História do Cerco de Lisboa, uma vez que Raimundo Silva seria o último a olhar as provas antes da publicação final:

Apesar da competência profissional com que o ouvimos expressar-se durante a conversa com o historiador, é tempo de introduzir aqui uma primeira dúvida sobre as consequências da confiança de que o investiu o autor da História do Cerco de Lisboa, acaso em hora de fatigada displicência ou com preocupações de próxima viagem, quando permitiu que a leitura final das provas fosse tarefa exclusiva do técnico dos deleatures, sem fiscalização. (p. 20)

O revisor está prosseguindo com sua revisão, no seu ritmo, quando recebe um telefonema da editora cobrando a entrega das provas revisadas. Embora tenha argumentado que

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revisões feitas às pressas dão ocasiões a erros, o responsável da editora estava irredutível quanto à data de entrega. Sem tempo hábil, o revisor, pela primeira vez, não faria a leitura completa do livro, além disso, nutria certa antipatia pelo autor em questão.

No entanto, como era uma pessoa séria em seu trabalho, folhearia todas as páginas, mesmo que não as lesse por completo. Então, em determinado momento, algo o detém:

[...] Raimundo Silva olha, de um modo tão fixo que parece vago, a página onde se encontram consignados estes inabaláveis factos da História, não por desconfiar de que nela esteja ocultando algum último erro, uma qualquer pérfida gralha que tivesse arranjado antes de esconder-se nos refegos de uma oração gramatical tortuosa [...] Está como fascinado, lê, relê, torna a ler a mesma linha, esta que de cada vez redondamente afirma que os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa [...] Que disparate, que disparate, e como se precisasse de confirmar a radical opinião, tornou a pegar na folha de papel [...] É um disparate, insiste Raimundo Silva como se estivesse a responder-nos, não farei semelhante coisa, e por que a faria, um revisor é uma pessoa séria no seu trabalho, não joga, não é prestidigitador, respeita o que está estabelecido em gramáticas e prontuários, guia-se pelas regras e não as modifica, obedece a um código deontológico não escrito mas imperioso, é um conservador obrigado pelas conveniências a esconder as suas voluptuosidades, dúvidas, se alguma vez as tem, guarda-as para si, muito menos porá um não onde o autor escreveu sim, este revisor não o fará. (SARAMAGO, 2011, p. 41-42)

Depois de uma noite difícil, na disputa interior entre o médico e o monstro, o revisor cede ao “desejo de (indevidamente) assumir o lugar do autor” e inclui a partícula “não” em uma frase do livro revisado, alterando completamente o fato histórico que revela o apoio dos cruzados aos portugueses – fator decisivo para garantir o cerco e a consequente queda de Lisboa.

[...] percebe-se pela maneira como Raimundo Silva está a sorrir neste momento, com uma expressão que não esperaríamos dele, de pura malignidade, desapareceram-lhe do rosto os traços do Dr. Jekyll34, é evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade [...]. (SARAMAGO, 2011, p. 42)

E então, “a partir desse ato consciente e de extrema interferência, em que assume, finalmente, seu desejo de reescrever o texto que revisa, sua vida muda” (ARROJO, 2003, p. 197).

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O título original é Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde traduzido como O médico e o monstro. Disponível em: <

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O revisor, então, encaminha o texto revisado normalmente para a editora. O erro é descoberto, mas não antes de ser publicado, o que obriga a editora a acrescentar uma errata.

Graças a sua experiência como revisor, Raimundo não é demitido, no entanto, a editora contrata uma mulher para supervisioná-lo: Maria Sara. A relação dos dois evolui e ela acaba por incentivá-lo a reescrever o episódio da história de Portugal que ele subversivamente havia comprometido. Raimundo começa então a escrever sua versão da história do cerco de Lisboa, sem a participação dos cruzados. Nesse meio tempo, também inicia um relacionamento amoroso com sua supervisora.

Apesar da mudança na condição de Raimundo Silva, agora com extraordinária visibilidade, e de sua aparente vitória na rivalidade entre autor e revisor, Saramago não tarda a mostrar sua autoridade em um trecho em que o narrador onisciente esclarece quem controla o destino do revisor. Logo, o narrador deixa claro que Saramago é o verdadeiro autor do livro História do cerco de Lisboa e que o revisor Raimundo Silva, mesmo quando passa a reescrever o livro, nunca deixará de ser chamado de revisor. Pode-se dizer que

[...] os interesses objetivos do narrador (e, portanto, do Autor) parecem se concentrar, sobretudo numa idealização romântica do seu próprio poder autoral e do contexto em que esse poder é exercido e reconhecido, estabelecendo um contraste marcante entre essa situação extraordinária e a precariedade do contexto geralmente associado ao revisor e aos outros profissionais que realizam trabalho igualmente “secundário”. (ARROJO, 2003, p. 200)

Em ambos os enredos apresentados, no conto de Kosztolányi (1996) e na história de Saramago (1998), há uma idealização da figura autoral, como autoridade divina e inquestionável, detentora da verdade absoluta (como se o texto fosse estático e objetivo) – a intenção autoral; permanece em destaque a valorização da fidelidade e a estigmatização do trabalhador textual como escritor frustrado (no caso do revisor de Saramago, que demonstra tédio pelo seu trabalho, ao mesmo tempo em que nutre um desejo de escrever seu próprio romance). Além disso, a ideia presente no livro de Saramago, também compartilhada pelo senso comum sob a influência da visão tradicional, é a de que o profissional da área de letras (neste caso, o revisor) só se torna um profissional digno ao desempenhar uma função que supostamente envolva a criação (é preciso

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que se torne escritor35). Quando Raimundo ocupa o lugar privilegiado de autor, reescrevendo o texto que revisa, a vida dele, inclusive no campo amoroso, muda completamente. O "pobre” revisor não pôde ter nada disso até se tornar escritor. Outro ponto interessante a esse respeito é a suposição de que para traduzir (ou revisar) não é preciso ser criativo ou ter talento e de que escrever é um dom inerente aos autores (QUERIDO, 2011b, p. 89).

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