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I São Paulo: a lógica da produção da metrópole e suas “periferias”

2. História da ocupação e do bairro

As ocupações de terras que ocorriam na cidade e na região na década de 80, algumas vitoriosas, como a do “ Filhos da Terra”, trouxeram novos elementos para o debate da questão urbana e dos loteamentos na periferia. Durante todo o século XX, a ocupação das áreas periféricas se deu através de loteamentos que não continham as benfeitorias exigidas pela legislação urbanística, mas que tinham, pelo menos, como ponto de partida, a compra legal de terreno, através do pagamento de prestações por vários anos e pelo recurso da autoconstrução.

Na década de 80, o enfrentamento do problema de moradia para quem não consegue pagar aluguel ou ter acesso a financiamentos para a compra da casa própria sofre algumas mudanças significativas. A partir desse período, vários grupos populares se organizaram e, enfrentando o regime autoritário, iniciaram movimentos de ocupação de áreas urbanas, denunciando suas graves condições de vida e a falta de políticas públicas para as sérias conseqüências sociais da crise econômica. Por outro lado, a classe trabalhadora passa a ser alvo do “negócio do loteamento clandestino”, em que grileiros apossam-se de terrenos públicos ou privados, às vezes com problemas de titularidade, – tornando-se “loteadores” e passando a vender lotes com falsos documentos ou contratos.

Figura 1 - Ponto de ônibus Oficial, na Rua dos Pinheiros, no Jardim Felicidade, no qual há uma linha que passa pelo Jardim Filhos da Terra (nome da linha), numa alusão a origem dos movimentos de loteamentos na região.

O nascimento de um bairro como o Jardim Felicidade, em 1993, representa ainda uma outra possibilidade de ocupação/invasão, que é a que queremos discutir: da condição inicial similar a outros processos, como a venda de lotes irregulares através de loteador/grileiro, para a consolidação de um recurso espontâneo e privado para o problema de moradia.

A história do bairro está na memória de poucas pessoas e, ainda assim, se apresenta como um quebra-cabeça de difícil reconstituição total. É importante notar que quase metade dos moradores entrevistados, 45,3% , simplesmente declarou nada saber sobre a história do bairro, que tem pouco mais de 10 anos.

Assim, há poucos nomes, grupos, fatos e saberes que enfeixam a ocupação inicial. Das reuniões e movimentos que ocorriam na região desde a década de 80 sobre a questão de moradia e ocupações, soube-se de problemas de titularidade dessa gleba. E, assim, sem muita preparação ou organização, um grupo de aproximadamente 12 famílias, que não estavam ligados organicamente à central dos movimentos da região, instalou-se no local e a notícia da “invasão” se espalhou, através do “boca-a-boca”. O elemento

disparador da constituição do lugar, para a grande maioria, foi a necessidade dos próprios moradores de ter um lugar para morar, espremidos pela impossibilidade de continuar pagando aluguel.

Como colocou Marilda Mazzini em entrevista realizada em setembro de 2001:

“Um movimento que houve ocupação espontânea, que fugiu dessa central de invasões de loteamentos clandestinos, que a gente assistiu nos últimos anos foi aqui no Jardim Felicidade. Mas o Jardim Felicidade, veja bem, é área da Klekin, que é vulnerável.

Já tinham tentado invadir várias vezes, e o Jardim Felicidade foi uma ocupação espontânea, não foi dirigida, não tinha organização, não tinha nada, então foi ocupando, claro, é óbvio que com a ocupação começaram a surgir os “xerifes”, que tomaram conta, mas não foi uma coisa intencional.

Nós defendemos o Jardim Felicidade na justiça por conta de uma série de problemas de título da Klekin, que é um título muito antigo. Eu acho que o advogado da Klekin não era do ramo, pois ele entrou com ação de reintegração de posse e o título era muito vulnerável para isso. Bom, a gente perdeu o processo, mas os moradores estão lá até hoje”.

A partir da realização de entrevistas que incluíram alguns moradores antigos e lideranças atuais ou antigas reconstruímos a história desse bairro, mas que, em vários aspectos, poderia ser também a história de vários outros bairros da cidade.

Os depoimentos abaixo reconstroem um pouco a história:

N. : “Quando eu morava no Jd. Brasil as coisas foram ficando difícil, o aluguel foi ficando caro e eu conversei com minha esposa, não é isso que eu queria, vir para São Paulo para ficar parado por muito tempo. Então, chegou uma hora que não tinha mais condições, morava no Jd. Brasil, pavimentação, tinha tudo, asfalto, água, luz, bacana.

Mas não era meu, não ia ficar pagando uma coisa que não era meu, que nunca vou ser dono. Eu falei com minha esposa, a gente tinha uma reserva guardada, surgiu oportunidade de comprar um terreno aqui no bairro, no Jd. Felicidade. E

nós enfrentamos. Não foi fácil, porque quando chegamos aqui não tinha nada. Não tinha água, não tinha luz, não tinha esgoto, não tinha condições de vida, de nada.

Só que eu falei assim: só que eu não quero invasão, eu não queria. Eu especialmente, colocar lá não, aí vai ter muito problema no final. Essas coisas, começar abaixar lá, até conseguir mesmo assim, corremos o risco de comprar. Invasão você pode perder, mas é melhor arriscar do que pagar aluguel.(...) Eu comprei através do meu irmão, que comprou um (terreno) aqui primeiro. Ele me falou que tinha um pessoal aqui vendendo terreno. Eu procurei vários terrenos aqui, andei, andei, aí tinha um vizinho dele que tinha um terreno para vender. A gente veio olhar o terreno”.

B. : “Morava na Vila Queiróz, no quintal dos outros. Não era aluguel, era de favor . Como eu tava na rua com filho nas costa , ela deixou eu morar lá, fazer um barraquinho. Eu fiz o barraquinho e fiquei morando lá na casa dela. Assim que falou que tava tendo essa invasão foi que eu vim.Quem me falou foi o cunhado do meu marido. Que tinha uma invasão. Ele falou, vamos? E eu falei: vamos embora! Peguei, tinha tudo nas costas e vim embora..Ele já soube da boca de outro também e aí reuniu aquele bando de pessoal e nós viemo pra cá.

(...). Eu ia pegar lá na avenida, mas eles não deixaram. Eu cheguei aqui e aí esse homem que morava aí em baixo falou : Não, a invasão é daqui prá cima. Daqui pra cima vocês pode pegar. Aqui pertence a mim. Foi o que eu fiz, escolhi pelo meio do matagal, ficava mais próximo deles aí. Só morava eles. Ai eu fiquei aqui”.

F: “Eu me separei e fiquei uns 8 meses com a minha irmã e já havia [sido] a invasão do Felicidade. Aí como não tinha jeito de vendar a casa para dividir, não é? Eu não tava a fim de dividir também. Você tem um bem, depois da batalha que foi, fica muito difícil, você tem uma estima por aquele bem. Aí eu deixei ele na casa e fui aventurar. Procurei por lá e achei um terreno lá numa amiga minha e ela disse: pode pegar esse aí. Foi uma batalha dura. (...) Já tinha bastante gente lá. E aí eu comecei a frequentar as reuniões naquela praça onde tem a Igreja Católica e aí a necessidade de ter meu canto para mim e para minha filha. Meu filho ficou na casa com o pai. E eu estava na casa da

minha irmã com a filha. Casa dos outros é dos outros. Aí eu encarei, peguei um terreno, aí fiz um barraco. Bem apertadinho mas cabia cama, fogão, armário.”

M.: “Foi por causa do aluguel, nós ganhávamos pouco, e apareceu essa oportunidade aqui, antes nós conhecíamos aqui, mas não era ocupado, depois eu soube através de outras pessoas, aí eu vim de vez, e já tinha a ocupação, aí já tava tudo loteado, e ele falou que tinha outra casa, e ele casou com outra mulher, aí ele passou pra mim o local. (....) Foi por um colega de trabalho, ele morava do outro lado, ele já tinha vindo pra cá, a mulher que ele casou, a companheira dele, ele morava sozinho e ofereceu pra gente comprar, já tinha um ponto aqui, mas na realidade de muitos não foram assim, muitas pessoas, já tinham casa em outro local e ocuparam aqui e aquelas que precisavam mesmo foram adquirindo com essas pessoas, comprando por um valor simbólico.”

S. Prá mim era horrível antes. Eu estava acostumada no Tucuruvi, tudo,

entendeu? Imagine isso daqui há 8 ou 10 anos atrás! Era só eucalipto, era terrível! Aí, conversando com meu irmão, ele falou: tem um amigo meu que mora no Fontális. Lá perto tem uma invasão de terra. E ele soube de pessoas que tem um terreninho baratinho lá.

Mas essa invasão tinha acontecido fazia 15 ou 20 dias”.

Aí nós estivemos aqui e conversamos com um, com outro, que aqui era só uma demarcação assim: eles punham barraquinhos de madeira, uns fio de arame, entende? E tinha aquele monte de pessoas que ficavam acampadas no lugar, né?

É.... essa invasão, pelo que eu senti, ela foi totalmente desorganizada. Porque teve as pessoas no começo que falavam... No nosso caso mesmo, o rapaz que demarcou este terreno, ele demarcou 6 lotes. Aí, desses 6 lotes, ele pôs uma pessoa para ficar olhando e pessoa que era meio perigosa, entendeu? E ele ficou vendendo terreno, mas por preço baratinho, assim, que nem eu tava falando”...

O dinheiro que eu tinha na época ainda faltou 150 mil, um negócio assim. (...) Aí o rapaz me deu uma semana de prazo pra gente arrumar esse dinheiro ...Ou pagava ou entregava de volta o terreno. (...) Eu fiz empréstimo....meu cunhado fez um empréstimo no banco desse dinheiro, pra mim pagar pra ele por mês. Aí eu cheguei aqui pra dar o dinheiro num sábado, onde o rapaz ficava num barzinho. Aí ele já falou:

não é mais 600 é 900. Aí eu peguei, pus o dinheiro lá e falei pra ele:

ó, você é homem. (Porque eu não fiz contrato, não fiz nada, foi tudo de boca). O que eu combinei com você tá aqui. No sábado eu te trouxe o dinheiro. Agora se você não é homem, o problema é seu. Eu virei as costas, montei no caminhão e fui embora. E falei: se eu chegar lá e tiver gente no terreno, quando eu voltar aqui eu derrubo tudo, com o caminhão eu dou uma ré e derrubo tudo. Porque é 4 anos de emprego que eu tinha, tudo, entendeu? (....) E.... lá a gente já estava no despejo!

JN. : (...)Através do meu irmão, ele conhecia um pessoal que comentou com ele que tinha uma invasão e que o pessoal estava vendendo terreno. Aí nós viemos, olhamos e gostei. Não é que gostei, precisava, morava de aluguel.(...). Aquele tempo, tinha uma poupança, tirei tudo de lá, o dinheiro que tinha recebido da firma que eu tinha saído. Aí comprei.”

(....) A maioria invadiu realmente, só que eu tinha medo. Então deixei acalmar e quando acalmou as coisas, procurei o dono, o dono da Klekin. Aí o rapaz que estava vendendo e compramos.”

JR.: “O pessoal falava né, eu perguntava: Onde tinha terreno mais barato por aqui, tal, assim. Falaram: tem uma invasão lá, que o pessoal tá fazendo invasão. Mas quem era o invasor? (perguntei). Lá não tem invasor, falaram. O pessoal se reúne e cada um pega um terreninho para ele. Não pode pegar terreno mais e paga um para ele. Aí eu vim para aqui e cheguei aqui e peguei um para mim, até foi o contrário, eu comprei, paguei R$100,00 reais do início. (...) Eu comprei dele e não se encontra aqui no meio de nós, já vendeu. (...)Daqui pra frente fui ficando aqui, depois entramos em acordo com o pessoal e abrimos a associação.”

C: “A comunidade tomou conhecimento de que pessoas estavam vendendo terras e todos se dirigiam para lá porque existia uma associação que estava vendendo terra. (...) Eu também tomei conhecimento dessas terras e fui para lá e também comprei. (...) Documentos muito perfeitos, certo? Todos registrados em cartórios, a falcatrua era tão perfeita que, não deixava a desejar de jeito nenhum sabe?(...). E a gente que é muito leiga nessas coisas e a gente acreditou. (...)

Não, a associação dos grileiros, dos loteadores, dos invasores da terra começou em 1990/92, foi quando a gente apareceu. A associação dos loteadores chamava-se Associação de Amigos de Bairros Jova Rural II, certo? E foi quando a gente entrou como adquirente de lote,né. Todos nós lá éramos adquirente. A parte do Felicidade já foi mais uma ocupação. E nós fomos adquirente e nós compramos dele. Então aí,no começo não era muitos, eram poucos, porque muitos não tinham a geladeira, o fogão para trocar ou para negociar uma parte em dinheiro. Então foi menos gente, mas hoje a área está totalmente tomada sabe, a ponto de não ter um local para a gente fazer um posto de saúde. E a união dos moradores do Portal II se deu em l995, fomos eleitos no meio da rua. Na época tinha até um político, Henrique Pacheco, que estava lá junto com a comunidade, deu o maior apoio, fez um trabalho grande na área junto com a gente; onde a gente foi eleita no meio da rua e estamos lá até hoje lutando pelo direito do cidadão.”

Muitos confirmam que o bairro era só mato e eucalipto. Outros até colocam que era uma fazenda. Outros ainda declaram saber que era propriedade de uma empresa de água mineral, a Klekin. Ou ainda que era uma fazenda da empresa Klekin, que tinha muitos herdeiros. A imagem abaixo dá uma idéia da área original:

Figura 2 – imagem da gleba antes da ocupação (1992). Acervo pessoal de entrevistado

No início, os próprios moradores foram dividindo os lotes. Uns acamparam no lote para uso próprio. Alguns pioneiros, porém, “se apossaram” de alguns lotes para comercializá-los, tornando-se “loteadores”.

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