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O lugar lógico para começar é com a possibilidade que o processo de transmissão do texto tenha sido normal.

Em circunstâncias normais, quanto mais um texto seja mais velho do que os seus concorrentes, tanto maiores serão as suas possibilidades de sobreviver numa maioria simples ou maioria absoluta dos textos existentes em qualquer dado período subseqüente. Mas o mais velho de todos os textos é o autógrafo. Assim sendo, deve-se concluir que uma maioria absoluta de textos será muito mais capaz de representar corretamente o caráter do original do que uma pequena minoria, a não ser que tenha havido algum deslocamento radical na história da transmissão. Isso é uma verdade patente quando se trata de uma proporção esmagadora de 8:2. Sob quaisquer condições de transmissão razoavelmente normais, seria … bem impossível uma forma textual posterior adquirir tão grande predomínio de testemunhas existentes.301

Mas eram as condições de transmissão razoavelmente normais?

Os Escritos do N.T. Foram Reconhecidos?

Críticos naturalistas gostam de presumir que os escritos do Novo Testamento não eram reconhecidos como Escritura quando primeiro apareceram, e assim, através do descuido resultante, na transcrição, o texto ficou confuso e a redação original ficou “perdida” (no sentido que ninguém mais sabia ao certo qual era) desde o início. Assim Colwell diz: “A maioria dos manuais e guias impressos disponíveis (incluindo o meu!) lhe dirão que essas variações foram o fruto do tratamento descuidado, o que era possível porque os livros do Novo Testamento ainda não haviam alcançado uma posição forte como ‘Bíblia’."302 E Hort havia dito:

Baseado na literatura existente, a pureza textual mal atraía interesse. Não existe evidência para mostrar que de modo geral se tomava cuidado a fim de escolher para transcrição os exemplares que tinham maiores reivindicações de serem considerados autênticos, se de fato o conhecimento e a perícia necessários estavam disponíveis.303

Antes de aceitar a palavra de Hort a respeito, a prudência exige uma revisão do terreno. O lugar para começar é no princípio, quando os apóstolos ainda estavam escrevendo os Autógrafos.

O período apostólico

301Z.C. Hodges, “A Defense of the Majority Text” (notas de curso não publicadas, Dallas Theological

Seminary, 1975), pag. 4.

302Colwell, What is the Best New Testament?, pag. 53.

303Westcott e Hort, pag. 9. Cf. pag. 7. É claro que Hort considerava a "literatura sobrevivente" como

representativa do quadro textual nos primeiros séculos. Esta idéia infundada e enganadora continua a ser um fator importante no pensamento de alguns estudiosos, ainda hoje.

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É claro que pelo menos o apóstolo Paulo considerava os seus escritos como sendo autoritários— ver 1 Co. 14:37, Gl. 1:6-12, Cl. 1:25-26, 1 Ts. 2:13, 2 Ts. 2:15 e 3:6-14. Também é razoável concluir de Cl. 4:16 e 1 Ts. 5:27 que ele esperava que os seus escritos tivessem uma audiência maior do que apenas a igreja destinatária. De fato, em Gálatas 1:2 ele se dirige “às igrejas da Galácia.” João também é bastante claro—Ap. 1:1-3 e 21:5. Tanto Paulo (Rm. 16:25- 26, Ef. 3:4-5) quanto Pedro (1 Pd. 1:12,25; 2 Pd. 3:2) declaram que várias pessoas estavam escrevendo Escritura no seu tempo, presumivelmente incluindo eles próprios.

Em 1 Tm. 5:18 Paulo coloca o Evangelho segundo Lucas (10:7) no mesmo nível de Deuteronômio (25:4), chamando ambos de “Escritura.” Tomando o ponto de vista tradicional e conservador, geralmente se pensa que 1 Timóteo tenha sido escrito no período de cinco anos após Lucas.304 O Evangelho de Lucas foi reconhecido e declarado, por autoridade apostólica, ser Escritura tão logo que saiu do prelo, por assim dizer.

Em 2 Pd. 3:15-16, Pedro coloca as Epístolas de Paulo no mesmo nível com “as outras Escrituras.” Embora algumas tivessem sido produzidas talvez quinze anos antes, em outras a tinta mal havia enxugado, e talvez 2 Timóteo ainda não havia sido escrito quando Pedro escreveu. Os escritos de Paulo foram reconhecidos e declarados por autoridade apostólica serem Escritura tão logo que apareceram.

Clemente de Roma, cuja primeira epístola aos Coríntios comumente é datada cerca de 96 DC, fez amplo uso das Escrituras, apelando para a sua autoridade, e colocou o material do Novo Testamento lado a lado com o do Velho Testamento. Clemente citou Sl. 118:18 e Hb. 12:6 lado a lado como “a palavra santa’’ (56:3-4).305 Ele atribui 1 Coríntios ao “bendito Paulo, o apóstolo” e diz acerca dele: “com verdadeira inspiração ele vos escreveu” (47:1-3). Ele cita claramente Hebreus, 1 Coríntios e Romanos, e possivelmente Mateus, Atos, Tito, Tiago e 1 Pedro. Aqui está o bispo de Roma, antes do final do primeiro século, escrevendo uma carta oficial à igreja em Corinto, na qual uma seleção de livros do Novo Testamento foi reconhecida e declarada por autoridade episcopal ser Escritura, incluindo Hebreus.

A Epístola de Barnabé, datada entre 70 e 135 DC, diz em 4:14: “vamos ter cuidado, como está escrito, para que não se ache entre nós que ‘muitos são chamados e poucos escolhidos’.” A referência parece ser a Mt. 22:14 (ou 20:6) e a frase “como está escrito” pode justamente ser considerada como expressão técnica que se refere a Escritura. Em 5:9 há uma citação de Mt. 9:13 (ou Mc. 2:17 ou Lc. 5:32). Em 13:7 há uma citação livre de Rm. 4:11-12, palavras atribuídas a Deus. Semelhantemente, em 15:4 achamos: “Observai, filhos, o que significa ‘ele terminou em seis dias’. Significa que o Senhor terminará tudo em seis mil anos, porque com Ele

304Para uma declaração de minhas pressuposições, ver Apêndice A.

305Estou ciente que poderia ser Pv. 3:12 (LXX) em vez de Hb. 12:6. Clemente repetidamente cita ambos

os livros por toda a carta e assim, neste ponto, ambos seriam candidatos iguais. Mas Clemente

concorda exatamente com Hebreus enquanto Provérbios (LXX) difere em uma palavra importante. Além disso, o ponto principal do capítulo 56 de Clemente é que a correção deve ser aceita graciosamente como sendo do Senhor, o que também é o assunto de Hb. 12:3-11. Uma vez que, evidentemente, Clemente tinha ambos os livros na sua frente (no próximo capítulo ele cita nove versículos consecutivos, Pv. 1:23-31), então a concordância exata com Hebreus é significativa. Se ele escolheu deliberadamente a redação de Hebreus em lugar da de Provérbios, o que poderia isso implicar quanto à autoridade relativa dada a ambos os livros?

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um dia significa mil anos. E Ele mesmo é minha testemunha, dizendo: ‘Eis que, o dia do Senhor será como mil anos’.”306

O autor, fosse quem fosse, claramente reivindica autoria divina para esta citação que parece ser de 2 Pd. 3:8.307 Em outras palavras, aqui 2 Pedro é considerado Escritura, tanto quanto Mateus e Romanos. Barnabé também possivelmente fez alusões a 1 e 2 Coríntios, Efésios, Colossenses, 1 e 2 Timóteo, Tito, Hebreus e 1 Pedro.

O segundo século

As sete cartas de Inácio (de cerca de 110 DC) contêm prováveis alusões a Mateus, João, Romanos, 1 Coríntios e Efésios (na sua própria carta aos Efésios, Inácio diz que eles são mencionados “em todas as epístolas de Paulo”—um pouco de hipérbole, mas claramente ele estava ciente de um corpo paulino), e possíveis alusões a Lucas, Atos, Gálatas, Filipenses, Colossenses, 1 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo e Tito, mas bem poucas são citações claras e mesmo elas não são identificadas como tais.

Policarpo, escrevendo à igreja dos Filipenses (c. 115 DC?), tece um fio quase contínuo de claras citações e alusões aos escritos do Novo Testamento. O seu uso maciço das Escrituras relembra Clemente de Roma, contudo Clemente utilizava mais o Velho Testamento enquanto Policarpo usava mais o Novo. Existem talvez cinqüenta citações claras tiradas de Mateus, Lucas, Atos, Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, 1 e 2 Pedro, e 1 João, além de muitas alusões inclusive a Marcos, Hebreus, Tiago, e 2 e 3 João. (O único escritor neotestamentário não incluído foi Judas!)

A sua atitude para com os escritos do Novo Testamento fica clara em 12:1: “Estou certo que vós sois bem treinados nas Escrituras sagradas, …Agora, como se diz nessas Escrituras: ‘Irai-vos, e não pequeis’, e: ‘não se ponha o sol sobre a vossa ira’. Bem-aventurado aquele que observa isto.”308

Ambas as partes da citação poderiam ser de Ef. 4:26, mas tendo-a dividido, Policarpo talvez tenha se referido a Sl. 4:5 (LXX) na primeira metade. Em todo caso, ele está declarando

Efésios como sendo “Escritura sagrada”. Um subsídio a mais quanto a sua atitude se acha em 3:1-2.

Irmãos, eu vos escrevo isto acerca da justiça, não por iniciativa própria, mas porque primeiro me convidastes. Porque nem eu, nem ninguém como eu, é capaz de competir com a sabedoria do bendito e glorioso Paulo, que vivendo entre vós, cuidadosa e firmemente ensinava

306Tenho utilizado a tradução feita por Francis Glimm em The Apostolic Fathers (New York: Cima Publishing Co., Inc., 1947), pertencente à coleção The Fathers of the Church, ed. Ludwig Schopp.

307J.V. Bartlett diz sobre as fórmulas de citação utilizadas em Barnabé para apresentar citações das

Escrituras: “o resultado geral é uma doutrina de inspiração absoluta,” mas ele não se dispõe a admitir que 2 Pedro está sendo usada. Oxford Society of Historical Research, The New Testament in the

Apostolic Fathers (Oxford: Clarendon Press, 1905), pags. 2, 15.

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a palavra da verdade face a face com os seus contemporâneos, e estando ausente, vos escreveu cartas. Pelo exame cuidadoso de suas cartas sereis capazes de vos fortalecer na fé que vos foi dada, “que é a mãe de todos nós, …“309

(Isto veio de um que era talvez o bispo mais respeitado da Ásia Menor no tempo dele. Foi martirizado em 156 DC.)

A segunda carta, assim chamada, de Clemente de Roma geralmente é datada antes de 150 DC e parece claramente citar Mateus, Marcos, Lucas, Atos, 1 Coríntios, Efésios, 1 Timóteo, Hebreus, Tiago e 1 Pedro, com possíveis alusões a 2 Pedro, Judas e Apocalipse. Depois de citar e comentar uma passagem do Velho Testamento, o autor prossegue dizendo em 2:4: “Uma outra Escritura diz: ‘Eu não vim chamar os justos, mas pecadores’” (Mt. 9:13; Mc. 2:17; Lc. 5:32). Aqui há um outro autor que reconheceu os escritos do Novo Testamento como Escritura.

Duas outras obras primitivas, o Didaque e a carta a Diogneto, utilizam os escritos do Novo Testamento como autoritários mas sem expressamente chamá-los Escritura.

O Didaque aparentemente cita Mateus, Lucas, 1 Coríntios, Hebreus e 1 Pedro, e tem possíveis alusões a Atos, Romanos, Efésios, 1 e 2 Tessalonicenses e Apocalipse.

A carta a Diogneto cita Atos, 1 e 2 Coríntios, enquanto faz alusão a Marcos, João, Romanos, Efésios, Filipenses, 1 Timóteo, Tito, 1 Pedro e 1 João.

Uma outra obra primitiva, o Pastor de Hermas, muito usada nos séculos segundo e terceiro, faz alusão relativamente clara a Mateus, Marcos, 1 Coríntios, Efésios, Hebreus e especialmente Tiago.

Desde a metade do segundo século obras relativamente extensas de Justino Mártir (martirizado em 165) chegam às nossas mãos. O seu “Diálogo com Trifo” demonstra conhecimento adestrado do Velho Testamento ao qual ele atribui a mais elevada autoridade possível—em Trifo 34 diz: “para persuadir você que não tem entendido nada das Escrituras, lembro-te de um outro Salmo, ditado a Davi pelo Espírito Santo.”310 A finalidade de Trifo é provar que Jesus é Cristo e Deus e portanto aquilo que ele disse e mandou era da mais elevada autoridade.

Em Apol. i. 66 Justino disse: “Porque os apóstolos nos relatos escritos por eles, que se chamam de Evangelhos, desta maneira transmitiram aquilo que lhes foi mandado….”311 E em

Trifo 119 ele disse que do mesmo modo que Abraão creu na voz de Deus: “de igual modo nós,

tendo crido na voz de Deus falada pelos apóstolos de Cristo,…”

309Ver nota de rodapé 6.

310Utilizei a tradução constante no Volume I de The Ante-Nicene Fathers, ed., A. Roberts e J. Donaldson

(Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1956).

311Utilizei a tradução por E.R. Hardy em Early Christian Fathers, ed., C.C. Richardson (Philadelphia: The

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Também parece claro em Trifo 120 que Justino considerava os escritos do Novo Testamento serem Escritura. De bastante interesse é uma referência inequívoca ao Apocalipse em Trifo 81. “E ainda mais, havia um certo homem conosco cujo nome era João, um dos apóstolos de Cristo, que profetizou, por uma revelação que lhe foi dada, que aqueles que crêem em Nosso Cristo habitariam mil anos em Jerusalém.”312

Justino continua dizendo: “Como também Nosso Senhor disse,” e cita Lucas 20:35; assim evidentemente ele considerava o Apocalipse como autoritária. (Enquanto tratando do Apocalipse, em 165 DC Melito, Bispo de Sardes, escreveu um comentário sobre o livro.)

Uma passagem bem esclarecedora acorre em Apol. i.67.

E no dia chamado domingo há uma reunião num lugar, daqueles que moram ou nas cidades ou no campo, e os relatos dos apóstolos ou os escritos dos profetas são lidos enquanto o tempo permitir. Quando o leitor termina, o presidente num discurso nos exorta e convida a imitar essas coisas nobres.313

Quer a seqüência sugira ou não que os Evangelhos eram preferidos sobre os Profetas, claro é que ambos eram considerados autoritários e igualmente admoestados aos ouvintes. Notar ainda mais que cada congregação deveria possuir a sua própria cópia dos escritos dos apóstolos para poder lê-los, e que tal leitura acontecia cada semana.

Atenágoro, em seu “Apelo,” escrito no início do ano 177, cita Mt. 5:28 como Escritura:

“…não nos é permitido sequer um olhar concupiscente. Porque as Escrituras dizem: ‘Aquele que

repara uma mulher com concupiscência, já cometeu adultério no seu coração’ “ (32).314 Ele trata de maneira semelhante Mt. 19:9, ou Mc. 10:11, em 33.

Teófilo, bispo de Antioquia, no seu tratado a Autólico, cita 1 Tm. 2:1 e Rm. 13:7 como “a Palavra Divina” (iii.14); cita o quarto Evangelho, dizendo que João era “inspirado pelo Espírito” (ii.22); Isaías e “o Evangelho” são mencionados em um parágrafo como Escritura (iii.14), e ele insiste em diversas passagens que os escritores jamais se contradiziam. “As declarações dos Profetas e dos Evangelhos se acham coerentes, porque todas elas foram inspiradas pelo único Espírito de Deus” (ii.9; ii.35; iii.17).315

Os escritos sobreviventes de Irineu (faleceu em 202 DC), sua obra principal Contra

Hereges sendo escrito no ano 185 aproximadamente, são mais ou menos iguais em quantidade

aos de todos os pais anteriores juntos.

312Ver nota de rodapé 10.

313Ver nota de rodapé 11. Seu cuidadoso estudo dos papiros literários cristãos antigos tem levado C.H.

Roberts a concluir: "Isto indica o uso cuidadoso e normal das Escrituras pelas comunidades locais" (Manuscript, Society and Belief in Early Christian Egypt [London: Oxford Univ. Press, 1979], pag. 25). Ele também infere de P. Oxy. iii. pag. 405 que uma cópia de Adversus Haereses, escrita por Irineu em Lions, foi trazida a Oxyrhynchus dentro de bem poucos anos depois de ter sido escrita (Ibid., pags. 23, 53), eloqüente testemunho da extensão de tráfego entre as antigas igrejas,.

314Ver nota de rodapé 11, exceto que Richardson é o tradutor, aqui.

315Tirado de G.D. Barry, The Inspiration and Authority of Holy Scripture (New York: The McMillan

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O seu testemunho à autoridade e inspiração das Escrituras Sagradas é claro e inequívoco. Difunde-se por todos os seus escritos; e este testemunho é de valor incomum porque deve ser considerado como representando pelo menos três igrejas, aquelas de Lions, Ásia Menor e Roma. O uso autoritário de ambos os Testamentos é claramente estabelecido.316

Irineu afirmou que os apóstolos ensinavam que Deus é o Autor de ambos os Testamentos (Contra Hereges IV. 32.2) e evidentemente considerava que os escritos do Novo Testamento formavam um segundo cânon. Ele citou todos os capítulos de Mateus, 1 Coríntios, Gálatas, Efésios, Colossenses e Filipenses; citou todos menos um ou dois capítulos de Lucas, João, Romanos, 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, e Tito; citou a maioria dos capítulos de Marcos (incluindo os últimos doze versos), Atos, 2 Coríntios, e Apocalipse; e citou todos os outros livros do N.T. exceto Filemon e 3 João. Estes dois livros são muito pequenos e talvez Irineu não tivesse ocasião de fazer referência a eles nas suas obras existentes, mas isto não significa que ele não soubesse a respeito deles, nem que os tenha rejeitado. Evidentemente as dimensões do cânon do Novo Testamento reconhecido por Irineu eram muito próximas ao que afirmamos hoje.

Do tempo de Irineu em diante não poderá existir mais dúvida sobre a atitude da Igreja para com os escritos do Novo Testamento: são Escritura. Tertuliano (em 208) disse com respeito à igreja em Roma: “a lei e os profetas ela reúne em um volume com os escritos dos evangelistas e apóstolos” (Receita contra Hereges, 36).

Os Cristãos Primitivos Eram Cuidadosos?

Tem sido largamente afirmado que os Cristãos primitivos não tiveram preocupação ou não foram capazes de guardar a pureza do texto. (Lembre-se das palavras de Hort acima citadas). Mais uma vez precisamos revistar o terreno. Muitos dos primeiros crentes eram Judeus devotos que tinham uma reverência e um cuidado inatos (que chegava aos jotas e tis) para com as Escrituras do Antigo Testamento. Essa reverência e esse cuidado seriam naturalmente passados para as Escrituras do Novo Testamento também.

Por que será que críticos modernos imaginam que os cristãos primitivos, e particularmente os líderes espirituais entre eles, fossem inferiores em integridade ou inteligência? Um Pai citando de memória ou adaptando uma passagem à sua finalidade num sermão ou numa carta, de maneira nenhuma significa que ele usaria a mesma liberdade ao copiar um livro ou trecho. A honestidade simples exigiria que ele produzisse uma cópia fiel. Devemos presumir que todo o mundo que fez cópias dos livros do Novo Testamento nos primeiros anos foi um bobo ou um velhaco? Paulo certamente era homem tão inteligente quanto qualquer um de nós. Se Hebreus foi escrito por alguém outro, aí era outro homem de elevado entendimento espiritual e capacidade intelectual. Haviam Barnabé e Apolo e Clemente e Policarpo, etc., etc. A Igreja teve homens de raciocínio e inteligência em todas as épocas. Começando com o que

sabiam ser o texto puro, os primeiros pais não precisavam ser críticos textuais. Só precisavam

ser razoavelmente honestos e cuidadosos. Mas não existem motivos sobejos para crermos que exerceriam vigilância e cuidado especiais?

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Os Apóstolos

Os próprios apóstolos tanto declaram os escritos do Novo Testamento serem Escritura, o que criaria reverência e cuidado por parte dos fiéis no seu tratamento, quanto expressamente advertiram os crentes a ficarem de alerta contra falsos mestres—ver At. 20:27-32, Gl. 1:6-12, 2 Tm. 3:1-4:4, 2 Pd. 2:1-2, 1 Jo. 2:18-19, 2 Jo. 7-11, Jd. 3-4, 16-19. A afirmação de Pedro a respeito do torcer das palavras de Paulo (2 Pd. 3:16) sugere que havia consciência e preocupação quanto ao texto e à maneira pela qual estava sendo tratado. Reconheço que os apóstolos se concentravam mais na interpretação do que na transcrição do texto, mas mesmo assim, uma vez que qualquer alteração resultaria numa interpretação diferente, podemos razoavelmente deduzir que a sua preocupação pela verdade incluiria a transmissão fiel do texto. Aliás, mal poderíamos pedir uma expressão mais clara desta preocupação do que aquela apresentada em Ap. 22:18-19. 2 Ts. 2:2 evidentemente se preocupa com autenticidade.

Os Pais primitivos

Os Pais primitivos fornecem algumas pistas úteis sobre a situação. As cartas de Inácio contêm diversas referências a um considerável intercâmbio entre as igrejas (as da Ásia Menor, Grécia, Roma) por intermédio de mensageiros (muitas vezes oficiais), o que parece indicar um profundo sentimento de solidariedade vinculando-as, e uma ampla circulação de notícias e atitudes—um problema com um herege em um lugar logo ficaria conhecido em todos os lugares, etc. Que havia forte sentimento sobre a integridade das Escrituras, Policarpo deixa claro (7:1): “Quem perverter as palavras do Senhor…esse é primogênito de Satanás.” Críticos de nossos dias podem não gostar da terminologia de Policarpo, mas o uso de termos tão fortes deixa claro que ele estava mais do que atento e preocupado.

Semelhantemente, Justino Mártir afirma (Apol. i.58): “os demônios iníquos também destacaram Marcion de Pontus.” E em Trifo xxxv ele diz a respeito dos hereges ensinando doutrinas dos espíritos do erro, que esse fato: “nos incita, nós que somos discípulos da verdadeira e pura doutrina de Jesus Cristo, a sermos mais fiéis e firmes na esperança anunciada por Ele.”

Parece óbvio que atividade herética causaria que os fiéis ficassem com maior cuidado e os obrigaria a definir nas suas próprias mentes aquilo que iriam defender. Assim sendo, o cânon truncado de Marcion evidentemente incitou os fiéis a definirem o verdadeiro cânon. Mas Marcion também alterou a redação de Lucas e das Epístolas de Paulo, e através de suas recriminações amargas fica claro que os fiéis estavam tanto cientes quanto preocupados. De passagem podemos observar que a atividade herética também fornece evidência indireta que os escritos do Novo Testamento eram considerados como Escritura—para quê falsificá-los se não

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