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As histórias d’O Bairro

Um dia Arrigo esmurrou Carlo, porque ele tinha dito que gostava de Maria. Ela era irmã de Arrigo. Àquela época, Maria trabalhava em uma modista do centro. Passava batom nos lábios, tirando-o com os dedos, pela escada, antes de voltar para casa. Era

do grupo em relação à história do lugar, da cidade, da Itália, da sua própria identidade em relação à identidade da nação.

14Em italiano, “popolo minuto”. A opção por “raia miúda” procura enfatizar o quanto a vida do povo estava distante da vida das elites. A marginalização dos artesãos, operários, trabalhadores, aprendizes e o permanente estado de miséria do povo são o motivo do silêncio secular. Os tipos populares são flagrados, neste momento, na sua imobilidade diante da história (por isso não suspeitam da relação entre poder e espaço), ainda que em alguns vibre o desejo revolucionário (o qual nasce, ironicamente como o próprio Giorgio adverte, da própria vida em comunidade).

15 Em italiano, “ciompi da se stessi traditi”; “ciompo” é um termo histórico regional, usado no século XIV para designar um tipo de trabalhador assalariado, pertencente a um ofício, especialmente o da lã (Lo

Zingarelli, 2005). Figurativamente, o Dicionário Martins Fontes (2004) registra “plebeus, rampeiros”. Lo

Zingarelli, 2012, registra que, em 1378, houve o tumulto “dei ciompi”. Segundo o contexto, a escolha por “ciompi” parece fazer alusão ao papel político da classe, bastante atuante, mas que acaba por perder força junto aos donos do capital. A opção de traduzir “ciompi” por “trabalhadores” procurou garantir o sentido mais amplo desta espécie de “tipo de trabalhador assalariado” (evitando as especificações tais quais “cardadores”, “plebeus”, “rampeiros”).

16A escolha por manter o nome da prova de ciclismo em italiano, “Giro d’Italia”, deveu-se ao fato de ser essa uma corrida tradicional, iniciada em 1909, e que se mantém ainda nos dias atuais. O próprio Pratolini publica uma reportagem sobre esta prova ciclística, na qual se lê sua paixão pelo esporte de modo geral e pelo Giro em especial, visto dentro de uma moldura cuja nostalgia faz ressoar os tempos da adolescência. Pratolini já tinha participado em 1947 do Giro, escrevendo sempre sobre o evento para o Il Nuovo

Corriere, um periódico de Firenze (PRATOLINI, Cronache al giro d’Italia. Vasco Pratolini al 38º Giro d’Itália, 2010). Essa sua proximidade com os esportes também lhe rendeu uma coluna que assinava no

149 uma moça que já desabrochara: tinha uma voz baixa e quente, falava como se a cada palavra atribuísse um pecado. Tinha comprado uma bolsa que abria frequentemente enquanto caminhava para se olhar no espelhinho.

“É uma vaidosa17”, disse Giorgio. “E por uma vaidosa não vale a pena brigar.” Até Arrigo pareceu concordar. Depois disse:

“Mas é minha irmã. Se vocês soubessem como deixa minha mãe louca!”

Estávamos na praça Beccaria, acabávamos de sair do cinema. Reconciliou-nos o prestidigitador que apresentava ao público os seus cães amestrados. Para que o círculo dos espectadores não se fechasse muito (depois que tinha atraído as pessoas, equilibrando no nariz um bastão e simultaneamente jogando umas argolas), rodava entre as pessoas à sua volta uma bola de trapos amarrada à extremidade de um longo barbante. As pessoas recuavam; enquanto nós pegávamos o projétil no ar e o arrancávamos das suas mãos. O homem nos insultava aos gritos; nós usávamos a bola em molinete contra ele. Os cachorrinhos, com os olhinhos perdidos entre o pelo, levantavam-se nas patas traseiras latindo. O povo, alegre, nos protegia. O prestidigitador era um homem idoso, de rosto macilento, uma voz de eunuco; ele implorava quase desesperado:

“Sempre os mesmos”, dizia. “Desgraçados! Vão acabar com meu ganha pão18!” As pessoas riam. Quando cansávamos da brincadeira, devolvíamos a bola de trapos e a corda. Ele dava início à apresentação. Vestia os cachorros como palhacinhos, depois como magos, colocando na cabeça deles, preso ao pescoço por um elástico, um cone bordado de estrelas. Aqueles pequenos animais davam piruetas, saltavam para dentro da argola, andavam por entre as pernas do dono enquanto ele fingia passear indiferente. No final, o cão Lolli pegava na boca um prato de latão e dava a volta entre os espectadores que lhe presenteavam com moedas.

17 A tradução ideal seria um termo mais jocoso, dado que “vanesio” vem de “Vanesio”, nome do protagonista da comédia “Ciò che pare non è”, de Fagiuoli, de 1724 (Lo Zingarelli, 2005). Há em italiano o termo “vanitoso” para “cheio de vaidade”, mas a ideia parecer ser um tanto mais irônica e ligeira. Por não se ter encontrado uma palavra melhor, optou-se neste e em outros contextos por “vaidosa”.

18 O ditado -“Mi rovinate il pane!” - comenta a ousadia do grupo, que se diverte às suas custas, compondo uma cena bastante cinematográfica, na qual o centro é o próprio prestidigitador com o seu molinete em movimento em torno de si e das pessoas e sendo presa dos adolescentes. A linguagem e a representação dos tipos populares aproximam o texto da estética neorrealista, contrapondo-se ao tom lírico e nostálgico usado pelo narrador no capítulo anterior, quando descrevia a vida no Bairro e as suas sensações diante do cotidiano da gente do lugar. As variações do texto se dão ao longo de todo o livro e, como se procurou mostrar, acompanham a mistura das línguas, enfeixadas em uma paisagem linguística pautada pela diversidade de registros.

150 Pensávamos no que fazer depois. Gino quis ficar para assistir ao filme mais uma vez; e já que Giorgio também nos deixara, porque sua mãe precisava dele, sobrávamos os dois adversários pacificados e eu. Falamos do filme, planejamos para o próximo domingo um passeio pelas colinas, enquanto andávamos no sentido de San Piero, parando alguns minutos diante da mostra do florista, onde, exposta em primeiro plano, havia uma plantinha florida que não conhecíamos dentro de um vaso.

Luciana passou junto com uma amiga. Elas estavam de braços dados e riam, empolgadas. Elas não nos viram. Avistamos dois jovens de calças compridas que as seguiam. Os meus companheiros sabiam que eu estava apaixonado por Luciana. Senti um golpe no peito, humilhado por ainda usar calças curtas, por minha feição adolescente com apenas uma penugem preta no buço. Acho que as faces me ardiam em brasa.

Carlo era o mais maldoso de todos nós - ou apenas o mais triste como contarei. Seu cinismo precoce incentivava permanentemente a minha timidez. Acenou para Luciana. Disse-me:

“Ela está te traindo, hein?”

Eu me ofendi: o tom da sua voz era maligno; os seus olhos eram amarelos, quase de gato. De boca fechada, fazia pouco do meu rubor, encarando-me. Respondi:

“Por quê? Não sou dono dela. Aliás, ela sequer sabe que eu...”, queria completar: “gosto dela!”. Mas não consegui.

Meu coração batia. Virei em direção à vitrine de flores; embaçava o vidro com o meu hálito, ou talvez os olhos se turvassem com as lágrimas. Arrigo me puxou por um braço.

“Vamos”, disse. E completou: “Devo ter um cigarro ainda. Quer?” Ia pegar o cigarro, quando Carlo o tirou da minha mão. Disse:

“Seu bobão! Vá atrás dela. Pare-a antes deles, caso contrário, eles a roubam de você.”

Arrigo disse:

“É, esse pode ser o momento certo.”

Obrigaram-me a me mexer, a seguir as garotas e os dois cortejadores, que se aproximavam delas. Meu coração batia forte; estava acalorado e cansado como depois de uma longa corrida. Afastei os cabelos da testa.

Luciana e a amiga (uma tal de Marisa, eu a conhecia, morava para os lados do Madonnone; sabia que tinha tido muitos namorados) tinham alcançado a Porta alla

151 Croce e se despediram. A amiga foi pela rua Aretina; Luciana entrou na Alameda para voltar para casa. Também os dois jovens se separaram, parecia já combinado, cada um seguindo a garota designada.

Luciana andava pela Alameda, rente às árvores, como evitando de propósito a calçada. Já era noite e sua figurinha entrava e saía dos círculos de luz dos lampiões. Pensei em começar a correr, em ultrapassar o jovenzinho e caminhar com ela; mas, assim fazendo, tinha medo de desagradá-la, de perder também a sua amizade. O suor me gelava na testa, como se me tomasse uma repentina fraqueza: e o vento leve da Alameda me dava frio. Contornava o muro do Campinho pela calçada; pancadas de tamborim, gritos me atingiam. Passou um bonde estrilando na virada da rua do Agnolo.

O rapaz tinha alcançado Luciana, caminhando a seu lado. Gostaria de poder fugir, mas temia que os amigos me seguissem; eu me proibia de me virar e sofrer a humilhação de vê-los escarnecer terrivelmente de mim pela minha derrota. A garota e o rapaz agora andavam com mais vagar; percebia que ele fumava. Prosseguiram pela Avenida até o Lungarno. Eu os espiava, escondido atrás da Torre della Zecca, reprimindo um soluço. Um caminhão me impediu a visão, parando exatamente na minha frente: o motorista desceu e mexeu em torno do capô.

Estava para ir para o outro lado da Torre, quando uma mão me agarrou pelos ombros, me virou com violência e dois bofetões me atingiram as faces. Diante de mim, estava o prestidigitador, parecia diabólico, feroz. A sua voz de eunuco disse:

“Atreva-se novamente amanhã!”

Ele levava a tiracolo a caixa com os apetrechos para o seu espetáculo. Abaixei os olhos para me recuperar do aturdimento, sem vontade alguma de reagir. Os cachorrinhos me fitaram com o focinho levantado, inimigos eles também.

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