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MARÇO À SETEMBRO DE

2.2. HISTÓRIAS DE MEDO E/OU O MEDO NA HISTÓRIA

O medo é fruto da mente211

. Sentimento humano e complexo, o medo é por isso mesmo, uma produção mental subjetiva, sustentada por discursos que a legitimam e pelo aparato mental dos homens que se relacionam com as incitações de alarme que as ameaças do meio ambiente físico e/ou social representam. O alvorecer da modernidade européia foi, com efeito, um momento histórico cujas expressões de medo podem ser examinadas à luz da relação da Igreja e do Estado com as minorias étnicas e religiosas consideradas dissidentes pelo discurso do poder.

Em meio às ameaças que os comportamentos heréticos representavam para o corpo social cristão, verifica-se a fundação de instituições de ordem, controle e vigilância social cujo emprego de discursos ideologicamente alicerçados na conduta religiosa e moralizante do Cristianismo foi largamente utilizado. Mais do que empregar procedimentos jurídicos e regimentais, as instituições formadas pelos membros da Igreja expressavam o vigor de uma cultura religiosa que se pretendia homogênea e missionária, cujo sentido salvacionista num momento marcado por medos de natureza escatológica e obsidionais sublinha um traço característico da mentalidade destes homens.

A Inquisição portuguesa insere-se neste movimento e sua atuação no Reino e nos espaços sob colonização lusa atesta o exercício empreendido por esta instituição na depuração das consciências religiosas dos súbitos do Rei e no combate aos indivíduos associados ao pecado e, logo, à heresia. Logo, parece aqui se encontrar uma perspectiva para leitura do fenômeno da atuação inquisitorial nos espaços da América portuguesa do século XVI que implica na análise da intima relação desta instituição com a emergência de uma sensibilidade de medo no corpo social. Não obstante a evidente relação entre a Inquisição e a temática do medo, esta parece ter circulado de maneira periférica nos trabalhos da historiografia brasileira da Inquisição, sendo sua inserção geralmente pontual, quando relacionada a outros aspectos da Inquisição analisados por esta historiografia.

Em seu trabalho sobre as moralidades e desvios sexuais no Brasil colonial, Ronaldo Vainfas já apontara, em algum sentido, para o empenho da Igreja pós- tridentina na normatização da moral e dos costumes, aliando, além dos mecanismos

institucionais, uma campanha de organização social e de homogeneidade cristã fortalecida pela intimidação dos fiéis frente aos desvios de comportamentos que eram associados às heresias combatidas pela Inquisição. Nesse sentido Vainfas assinala:

Organizar as massas com base na família cristã, fazê-las crer na verdade divina segundo as regras da Igreja, o amplo programa da moderna Reforma Católica carecia de outros meios além dos arranjos institucionais e da disciplina eclesiástica homologados em Trento. A viabilização da nova pastoral – ou a moderna difusão do antigo cristianismo – pressupunha sistemática intimidação dos fiéis, permanente ameaça com os horrores que Deus reservava aos que ousassem desviar-se de si 212

Assim, ao mesmo tempo em que o Cristianismo se expandia, com seu ímpeto missionário, para as possessões coloniais da América portuguesa, trazia consigo uma linguagem eclesiástica ameaçadora para as massas dissidentes. A intimidação primeira da Inquisição, talvez residisse na pena de excomunhão por ela aplicada àqueles que fossem coniventes com os erros de fé que as heresias representavam. Todos aqueles que tivessem noticias das práticas heréticas contidas no monitório da Inquisição eram obrigados a denunciá-las, o que, segundo Vainfas, “já carregava em demasia a consciência da população” 213.

No estudo dos “Agentes da Fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil

Colonial”, Daniela Calainho se debruça numa análise historiográfica sobre os

Familiares do Santo Ofício – leigos que se candidatavam ao cargo, passando por uma série de procedimentos para averiguação de sua ascendência e “pureza de sangue”; serviam à Inquisição no exercício de suas funções, instigando a população para a delação, observando comportamentos alheios e mesmo efetuando prisões em nome do Santo Ofício – sustentando que estes indivíduos eram muito mais que simples “espiões” a dispor do Santo Ofício, ao considerá-los como um dos alicerces principais da “pedagogia do medo” sugerida pelo historiador Bartolomé Benassar 214.

Ao analisar os processos para obtenção do cargo de Familiar do Santo Ofício, a autora evidencia a atuação destes colaboradores da Inquisição avaliando o controle desta instituição sobre o espaço colonial. Calainho sustenta que a função dos indivíduos investidos da função de Familiar do Santo Ofício era bem maior do que se realmente atribui. Segundo a autora,

Seu papel não se restringia a detectar e delatar heresias, mas também a provocar delações mediante pressões psicológicas e até físicas sobre os

212 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., 1989, p. 32. 213 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., 1984, p. 224.

possíveis acusadores. Enfeixando em si todo o temor e medo inspirado pela Inquisição, o Familiar era, pois, a „imagem externa do Santo Ofício 215 A interessante análise realizada por Calainho, de fato, aponta para alguns elementos integrantes da experiência da Inquisição com a produção e difusão de sensibilidades de medo. De modo global, os autores que na historiografia brasileira dos estudos inquisitoriais se debruçaram, periférica ou efetivamente, sobre a relação entre a atuação inquisitorial na América portuguesa e o emprego de discursos de medo, encontram na tríade formulada por Bartolomé Bennassar a formulação primeira de suas problemáticas, tanto parece ser que no estudo já aludido sobre as moralidades brasílicas, Vainfas assinala que a conivência da sociedade às investidas da Inquisição resultava mesmo daquilo que “Bennassar chamou de „pedagogia do medo‟, espectro da Inquisição associado ao segredo dos processos, ao pavor da morte na fogueira, do confisco de bens e da infâmia que recaia sobre os condenados do Santo Ofício” 216.

Aos três elementos que Bennassar considera na sua “pedagogia do medo” – a memória da infâmia pública, a ameaça da miséria e o segredo da denúncia – juntam-se, na experiência colonial, outros tantos. Quando operadas à luz do problema cristão-novo, as formulações produzidas por esta historiografia devem considerar a tradição de perseguição ao judeu, os discursos detratores e sua associação à heresia. A Inquisição pareceu operar na sistematização de uma campanha anti-marrana que compreendia a transformação de medos sentidos – ou seja, os homens de Igreja organizando-se para fazer frente ao medo da heresia – para medos produzidos, sobretudo, através de um complexo aparelho institucional que sutilmente difundia, através da intimidação e pregações, o medo no corpo social. Ângela Maia em “À sombra do medo – cristãos

velhos e cristãos novos nas capitanias do açúcar” é mais uma autora da historiografia

dos estudos inquisitoriais que parece integrar a tradição historiográfica que se preocupou em investigar o funcionamento da Inquisição à luz da “pedagogia do medo” de Benassar217. A autora se debruçou na compreensão do rompimento dos laços de sociabilidades entre cristãos-velhos e novos no período de inspeção inquisitorial, considerando a atuação do Santo Ofício da Inquisição no Brasil quinhentista como elemento desagregador do padrão de sociabilidades harmônicas que se operava na colônia, entre os grupos sociais antagônicos no Reino. A autora expressa bem o que os relatos fornecidos à mesa inquisitorial representam numa conjuntura de intimidação e

215 CALAINHO, Daniela Buono. Op. cit., 2006, p. 36. 216 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., 1989, p.224. 217 MAIA, Ângela Vieira. Op. cit., 2003, p.144.

difusão do medo na população inspecionada, entendendo mesmo que os relatos expressos na documentação inquisitorial são evidências do medo difundido pelo Santo Ofício ou de alguma maneira relacionado a ele. Segundo Ângela Maia,

as denúncias e as confissões apresentadas diante da Mesa do Visitador são indícios de medo: medo de ser acusado ou de ser suspeito. Esse medo que levava homens e mulheres a confessar, denunciar e apontar, levantou suspeitas, desorganizou a sociedade desestruturando a convivência das pessoas na Colônia, beneficiando uma Instituição que defendia a ferro e fogo uma ortodoxia religiosa, moral e mental para manter intocado um modelo próprio de Poder218

Um exame geral da historiografia brasileira sobre a Inquisição quer se trate de trabalhos que exploram a perspectiva das sensibilidades de medos produzidas pelo Santo Ofício ou obras que, ao analisar os demais aspectos do funcionamento inquisitorial, sublinham a relação entre o Santo Tribunal e dimensão dos sentimentos, permite assinalar que a difusão do medo pela Inquisição estava intimamente ligada, apesar das supostas sutilezas do discurso institucional, a engrenagem que os procedimentos investigativos do tribunal representavam. Aqui se processa fundamentalmente um dos pontos integrantes da “pedagogia do medo”, operacionalizada nestes trabalhos para a compreensão do fenômeno da Inquisição e da difusão do medo por ela engendrado. Quando aponta os métodos de interrogatórios da Inquisição, caracterizados pelo segredo constante e controle de informações, Ângela Maia sublinha o caráter peculiar daquilo que talvez possa se denominar de “cultura do segredo inquisitorial”, ou seja, o controle de informações exercido pelo inquisidor no decorrer das investigações das condutas religiosas, que silenciava o nome dos acusadores, as circunstâncias envolvidas e mesmo os crimes dos quais se acusava. Nesse sentido a autora assinala que a Inquisição tornava-se efetivamente um terror social, haja vista que

seu método de interrogatório mantinham em segredo a acusação, forçando o acusado, ao tentar adivinhar os motivos de sua detenção, a denunciar ou envolver muitas outras pessoas. Assim, a prisão de um individuo significava o envolvimento de muitos nas malhas do terrível tribunal; o que então, por si só servia para desencadear o pânico219

No Diabo e a Terra de Santa Cruz, Laura de Mello e Souza não deixou de sublinhar a dúbia condição das testemunhas que denunciavam os erros de fé de outrem. Dúbia, sobretudo, devido a real possibilidade de a testemunha transformar-se de colaboradora do Santo Ofício a possível ré. Desta forma, Mello e Souza ao caracterizar

218 MAIA, Ângela Vieira. Op. cit., 2003, p. 53. 219 Conf. MAIA, Ângela Vieira. Op. cit., 2003.

a eficácia do discurso inquisitorial no imaginário dos colonos, sugere como característica de uma sociedade marcada pelo medo, a celeuma de sentimentos e comportamentos instigados pelos procedimentos de investigação empregados do Santo Ofício português. Assim sendo, a autora argumenta que

Sobre a cabeça de cada testemunha pesava sempre a ameaça de ser transformada em réu por procedimento análogo ao que ela tivera quando denunciara voluntariamente um conhecido. Em outras palavras, a Inquisição transformava cada testemunha num réu em potencial. Em vez de desencorajar as denúncias, entretanto, esta possibilidade ameaçadora fazia com que proliferassem ainda mais: todos tentavam livrar-se de eventuais denúncias e ganhar a confiança do inquisidor, apresentando-se enquanto delatores 220

Inevitavelmente todos os indivíduos assentados nos espaços sob jurisdição do Rei – e não se trata de uma hipérbole do discurso historiográfico –, estavam à mercê de sofrer um processo inquisitorial caso seus comportamentos fossem heréticos e suficientemente investigados pelo Santo Ofício para verificação das possíveis culpas, podendo mesmo qualquer sujeito, dependendo da gravidade de seu crime, ser desterrado, flagelado publicamente, obrigado a pagar multas à justiça inquisitorial, ser enfim, condenado as diversas penitências que englobavam o complexo funcionamento da Inquisição. A ameaça que o Tribunal representava estimulou o comparecimento de muitos sujeitos inquietos para delatar os comportamentos suspeitos que a Inquisição julgava e condenava. Inquietos, sobretudo, devido ao medo de possivelmente ser denunciado, pois, qualquer ato, palavra ou gesto que fossem mal interpretados em alguma situação cotidiana, poderia se transformar em matéria herética para o Santo Tribunal. Esta é a idéia geralmente expressa nos estudos inquisitoriais. O comparecimento efetivo da população para delatar pessoas próximas ou distantes, parentes ou amigos, foi estimulado pelo medo da denúncia mútua; muitos na dúvida se seriam ou não denunciados por algum desvio cometido, apresentavam-se ao visitador listando as culpas, que viram ou ouviram falar, de outros indivíduos. A análise que Vainfas realiza em sua obra sobre os desvios dos padrões morais que foram delatados a Inquisição no Brasil sugere, com efeito, que o medo estava efetivamente relacionado aos testemunhos relatados ao visitador. O autor, nesse sentido, nos informa:

Os que atendiam à convocação do visitador, apressando-se a delatar erros alheios ou confessar os próprios, eram movidos por algumas espécies de medo. Antes de tudo pelo medo de ser acusado, o que levava muitos a se anteciparem às denúncias apresentando-se ao visitador ou a delatarem os outros para „mostrar serviço‟ à Inquisição.221

220 SOUZA, Laura de Mello e. Op. cit., 1986, p. 300. 221 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., 1989, p.226.

Vainfas complementa ainda sua argumentação sustentando que

Medos variados, portanto, empurravam a população para as confissões e denúncias ansiosamente esperadas pelo visitador. Mas sobre todos os medos, fossem quiméricos ou razoáveis, imperava um pânico difuso e geral que (...) associava a Inquisição à tortura, pauperização, infâmia e morte. 222

No Brasil do século XVI, as visitas inquisitoriais parecem representar, nesse sentido, a operacionalização de uma campanha de averiguação religiosa cuja constante intimidação dos fiéis se fazia presente. As confissões e denúncias realizadas a Heitor Furtado entre 1593 e 1595 no conjunto espacial das capitanias inspecionadas por este, apontam, com efeito, as conseqüências da intimidação inquisitorial na campanha de averiguação das práticas religiosas dos colonos. O número de confissões que se tem noticia com a documentação conhecida, num primeiro momento parece ser mínimo se observado do ponto de vista global de uma atuação que durou cerca de dois anos naquelas capitanias. Apenas 62 confissões referentes a Pernambuco, Itamaracá e Paraíba são conhecidas pela historiografia devido a incompletude das fontes da primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil. No entanto, mesmo ainda em menor número quando comparados as confissões de cristãos-velhos, os 14 relatos – cerca de 22% das confissões – contidos nesta documentação, permitem inferir não só que os cristãos- novos confessaram-se menos que os cristãos-velhos – possivelmente por medo de verem-se envolvidos na engrenagem punitiva da Inquisição, haja vista a suspeita de fé que recaia sobre eles – , mas também o complexo jogo da adesão da população ao discurso inquisitorial, na pressa em confessar-se antes de ser denunciado ou na justificativa da ignorância sobre o “erro” cometido e da retardatária tomada de consciência acerca destes erros somente com as informações do monitório de culpas. Segundo Ângela Maia,

As confissões eram sempre acompanhadas de declarações de boas intenções, ignorância da culpa e pedidos de perdão e podem indicar em alguns casos um verdadeiro medo espiritual de estar pecando se não colaborar com a Inquisição, mas a maioria demonstra o medo real de, se não se confessar, ver- se denunciado por outros e ser considerado mal intencionado, omisso ou mentiroso223

De fato, o exame atento das confissões permitirá a rápida verificação das formulações propostas pela autora supracitada. Confessando em sete de fevereiro de 1594 suas opiniões heréticas por afirmar que “o estado dos bons casados era milhor que

222 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., 1989, p.229. 223 MAIA, Ângela Vieira. Op. cit., 2003, p. 152.

o dos religiosos” 224, André Pinto – identificado na confissão como tendo “raça de

cristão novo” – alega que não entendia que sua era opinião era moralmente condenada pela Igreja, tomando contornos de blasfêmias. O relato de André Pinto aponta o sentido pedagógico dos documentos de propaganda inquisitorial no combate a heresia; a confissão estimulada pela tomada de consciência frente ao erro e pelo temor a Igreja. Complementa sua confissão afirmando que

quando ouviu publicar o edito da fé e papéis da Santa Inquisição na sua freguesia, soube e entendeu ser a dita proposição errada e herética e conheceu seu engano em que estivera simplesmente, pelo que vem pedir perdão a esta mesa, porque ele é bom cristão e temente a Deus e crê o que crê a Santa Madre Igreja 225

Destas confissões, sete estão relacionadas àquilo que os documentos da Inquisição permitem conceituar como “proposições heréticas”, ou seja, comportamentos e/ou afirmações de cunho pouco ortodoxo sobre matérias religiosas e assuntos de moralidade, refletindo por vezes o choque de interpretações entre dois níveis de culturas – o refinado estilo inquisitorial, sustentado por formulações teológicas, e as opiniões comuns da massa da população, muitas vezes ignorante em relação aos assuntos de fé. A confissão de André Pinto representa também esta dimensão, sobretudo, por que sua “opinião herética” indica efetivamente uma das blasfêmias geralmente proferidas por inúmeros indivíduos cristãos, tanto novos quanto velhos. Assim sendo, Estevão Ribeiro, “que tem parte de cristão novo”, confessou ter afirmado algumas vezes que “o melhor estado era o dos casados que o dos clérigos e dos frades” 226

; o cristão-novo Gabriel da Costa também confessou ter dito “que melhor era o estado dos casados que o dos religiosos” 227

, afirmando “que as ditas palavras disse então somente, sem advertir que eram heréticas” 228

, numa evidente tentativa de esclarecer ao visitador sua ignorância acerca da dimensão herética daquele assunto.

Isabel Fernandes, mameluca “que tem raça de cristã nova”, confessou-se a Heitor Furtado em 19 de dezembro de 1594, penúltimo dia de permanência da Inquisição na capitania de Itamaracá, por ter afirmado em uma peleja que tivera com uma escrava sua “(...) que descria do óleo que tinha recebido” 229

, rejeitando e descrendo assim, dos sacramentos e ritos da Igreja; afirmação que era entendida na perspectiva

224 Conf. Confissões de Pernambuco. Op. cit., 1984, p.30. 225 Conf. Confissões de Pernambuco. Op. cit., 1984, p.31. 226 Conf. Confissões de Pernambuco. Op. cit., 1984, p.26. 227 Conf. Confissões de Pernambuco. Op. cit., 1984, p.147. 228 Conf. Confissões de Pernambuco. Op. cit., 1984, p.148. 229 Conf. Confissões de Pernambuco. Op. cit., 1984, p.118.

inquisitorial certamente como blasfêmia contra a Igreja. A confessante relata que teria comentado com seu marido sobre as blasfêmias que tinha proferido e “ele lhe disse que lhe lembrasse para se vir acusar ao Santo Ofício” 230

. Não é necessário destacar a obviedade no atendimento do pedido de seu marido, apenas ressaltar as prevenções e pedidos de desculpas da confessante por seus comportamentos, haja vista que sobre as blasfêmias, Isabel Fernandes afirmou que as dizia “sem deliberação e sem ter a tenção do que as palavras soam”231

. Mais do que lembrar a obrigação de apresentar-se ao Santo Ofício, as palavras do cônjuge de Isabel Fernandes permitem verificar a emergência de uma consciência medrosa que era expressa muitas vezes na obediência aos estímulos inquisitoriais para a auto-acusação e delações alheias. Outras confissões sobre opiniões moralmente condenadas pela Igreja, e conseqüentemente, pela Inquisição podem ser verificadas na documentação nas confissões de Pedro Bastardo e Brás Fernandes em Pernambuco em fevereiro de 1594, e João Paris, na Paraíba, em janeiro de 1595.

As informações documentais sobre a condição religiosa e social dos confessantes em questão – se são cristãos-novos ou velhos – além ambígua, é escassa. Pedro Bastado afirmou “que não sabe se era cristão novo se velho”; Brás Fernandes é identificado na documentação por ambas as maneiras; já João de Paris também disse que não sabia se era cristão-novo ou velho. De todo modo, suas confissões, devido mesmo essa ambigüidade que as caracterizam, são consideradas aqui para integrar um quadro geral das blasfêmias confessadas por indivíduos efetivamente identificados como cristãos-novos ou aqueles cujas evidências documentais associam-nos ao grupo dos conversos. É, portanto, neste sentido que estas confissões podem aqui ser entendidas. O primeiro confessou ter convivido durante sete anos no sertão entre os gentios, partilhando dos costumes indígenas, ”vivendo conforme os costumes dos ditos gentios, tingindo-se como eles e tomando e tendo muitas mulheres” 232

, chegou ao ponto de adotar um nome indígena – “Aratuam, que quer dizer Arara” – mas, em contrapartida, afirmou que “todas as ditas coisas fazia e dizia somente no exterior, porque quanto é no coração sempre teve firme a fé de Jesus Cristo” 233

; Brás Fernandes relatou ao inquisidor que em certa ocasião teria afirmado que as Bulas papais serviriam