• Nenhum resultado encontrado

Histórias em quadrinhos e representações culturais na contemporaneidade

Já discutimos, no presente texto, os vários sentidos atribuídos à palavra cultura; o nosso estudo abordará um dos aspectos indicados, o de produção artística e intelectual, visando, como foi explorado no tópico anterior, ressaltar os pontos de convergência entre produções artísticas e contexto histórico, com a ressalva de que tais expressões veiculavam, no caso da escolha do nosso estudo, uma posição de contestação, tanto aos padrões estéticos do que se produzia na época, quanto ao próprio contexto observado por seu produtor e pelo grupo artístico ao qual o mesmo pertencia. Vale aqui retornar a Chartier e sua afirmação de que as percepções do social produzem estratégias e práticas, e aproximá-lo de Eagleton (2005) e de sua concepção de que o valor das obras é atribuído coletivamente.

Partindo da ideia das produções artísticas como formas de percepção do social, incorporemos a essas produções os meios de comunicação de massa que surgem no frenesi da sociedade industrial e atravessam as épocas, ampliando sua influência sobre a sociedade e passando por processos de mutação em busca da adaptabilidade aos novos tempos.

A “era industrial” nos trouxe a expansão da imprensa e a mercantilização das informações, e não apenas dela, pois, a partir do momento em que o sistema capitalista passa

a adquirir contornos cada vez mais nítidos,

(...) a localização do eixo da vida social na relação dominante da produção sobre o consumo, na transfiguração dos objetos, coisas e até mesmo sentimentos em mercadoria, criou uma racionalidade típica e pragmática, essencialmente dirigida para a rentabilidade de qualquer atividade humana.

(COHEN e KLAWA, 1997, p. 104)

Dessa forma, tomamos a liberdade de afirmar que temos aqui o processo de mercadorização da cultura em seu estágio inicial. Através da abrangência dos meios de comunicação de massas, os sentimentos e sensações passam a ser vendidos, através de uma notícia chocante, em primeira mão, ou do suspense que o fim de um romance em fascículos pode proporcionar; ou até mesmo a alegria por um final feliz, ou as lágrimas por um acontecimento triste com determinado personagem com o qual se criou uma certa empatia, como em um seriado de TV, por exemplo.

Nesse clima, a imagem foi introduzida na vida das pessoas, aliada ao texto, tem seu poder de sedução ampliado. As imagens passaram a ser amplamente empregadas, seja em propagandas ou notícias; elas começaram a inundar o meio social com sua presença arrebatadora, carregando em si, mais uma vez recorrendo à Chartier, os interesses daqueles que as produziram. No caso da nossa fonte de estudo, as histórias em quadrinhos, podemos percebê-las não apenas como representantes de características culturais, mas também como produtoras de cultura.

Direcionando ainda mais nossa discussão, fechemos no atual contexto da cultura na sociedade pós-moderna, e tentemos explicar a condição dessa linguagem dentro das possibilidades deste contexto.

Tendo em vista o espaço de pluralidade verificado em tempos pós-modernos, a linguagem dos quadrinhos também não deixa de ser um campo plural. São vários os gêneros existentes atualmente, porém, devido à abordagem proposta no presente estudo, tomaremos como exemplo a indústria editorial dos quadrinhos, tendo como referência os Estados Unidos, e o movimento contrário à massificação e estandardização dessa produção, que inclui os autores dos quadrinhos conhecidos como underground, vertente veiculada a uma das formas de expressão da contracultura, pois

Para poder se falar em contracultura deve-se ter em mente que existe uma cultura, uma forma de pensar, compreender e significar o mundo que seja hegemônica, sendo então a expressão de contracultura uma forma de questionar (seja estética, seja conceitualmente ou ambas) essa hegemonia.

(COIMBRA e QUELUZ)

como suplementos dominicais de jornais, esse tipo de linguagem que teve início no final do século XIX, avançou até o século XX, tendo como característica forte o humor. Até a década de 1920, teve presença muito marcada nas histórias em quadrinhos, veiculadas nos jornais, um humor considerado leve e descompromissado. Aos poucos, os quadrinhos norte- americanos emanciparam-se da imprensa periódica e adquiriram espaço próprio.

Na década de 1930 ocorreu o despontar de um gênero que passaria a ser identificado como típico dos Estados Unidos: o dos super-heróis. Há muitas controvérsias sobre qual personagem teria iniciado este tipo de gênero, mas, ao que tudo indica, o início desse tipo de história teria sido com o personagem O Fantasma, criado por Ray Moore, em 1934, conhecido também como “o espírito que anda”. Esse personagem abriu caminho para os demais super-heróis, cujo sucesso ofuscou o brilho desse primeiro desbravador. No ano de 1938, tivemos o aparecimento do personagem Superman, escrito por Jerry Siegel e desenhado por Joel Shuster. Esse personagem foi desenvolvido em um momento de grande tensão, quando o mundo enfrentava o início da Segunda Guerra Mundial, e serviu à necessidade política norte-americana de criação de um símbolo que inspirasse a população, revestido de um poder de comunicação abrangente e centralizado em uma determinada figura, o Superman cumpriu esse papel.

No ano seguinte, foi criado o personagem oposto ao Superman, o Batman, criação de Bob Kane, entretanto, essa oposição deve ser entendida como uma complementaridade, duas faces de uma mesma moeda, pois o primeiro é um herói do dia, das luzes, enquanto o segundo prefere a noite, as trevas. Com o passar do tempo, esse “estilo” de fazer quadrinhos difundiu- se para outras partes do mundo, ao ponto de tal linguagem ser limitada, muitas vezes, à relação com esse gênero específico.

Na teia multifacetada, proporcionada pela pós-modernidade, surgiu um movimento em via contrária, que possibilitou a emergência do quadrinho underground. Este teve surgiu na contra-mão da vertente hegemônica, pois não se desenvolveu no seio da indústria cultural e sim na sua periferia. “Publicado de forma artesanal, vendido na rua pelo próprio desenhista e alguns amigos a própria obra satirizava todos os costumes e valores mais defendidos pelos conservadores” (PATATI e BRAGA, 2006, apud COIMBRA e QUELUZ).

Podemos entender o desenvolvimento do estilo underground como uma resposta ao código de ética imposto às histórias em quadrinhos. A partir da década de 1950, teve início uma perseguição aos quadrinhos a partir da repercussão das ideias defendidas pelo psiquiatra Fredric Wertham em sua obra Seduction of the Innocent. No livro Wertham afirmava que os quadrinhos eram uma leitura nociva às crianças, podendo levá-las à preguiça mental e à delinquência, a partir desse discurso foi elaborada uma série de códigos sobre o que poderia

ser abordado nos quadrinhos, aqueles que não estivessem de acordo com o código não receberiam o selo de qualidade e, consequentemente, teriam uma queda nas vendas. Após a instauração desse código os quadrinhos passaram por uma reformulação no seu conteúdo para atender às exigências nele contidas. Com temas totalmente opostos aos quadrinhos “industriais”, a proposta dos quadrinhos underground é realmente inovar, romper com os padrões estabelecidos pelo gênero dos super-heróis, mostrando àquilo que os códigos de ética impediam. A obra que inaugura este estilo é a publicação Zap Comics, de Robert Crumb:

A linguagem usada por Crumb e que depois serviria de inspiração para os quadrinistas brasileiros era normalmente do traço preto e branco, não apenas pelo baixo custo de impressão, mas também pelo contraste visual que provoca. As sombras eram normalmente representadas no trabalho de Crumb, mas isso não se tornou regra e posteriormente variou conforme a forma de trabalho de cada artista. (COIMBRA e QUELUZ)

Portanto, podemos identificar este tipo de linguagem como um rompimento com o modelo anteriormente estabelecido e, a propósito, dominante e industrial, de fazer quadrinhos, mas também como reflexo daquele momento histórico que contava com a presença do movimento hippie, a valorização da cultura pop, o espírito de rebeldia e questionamento dos sistemas e do status quo. A época proporcionou condições para o desenvolvimento dessa linguagem, experimentações e inovações na arte dos quadrinhos.

No caso do Brasil não poderia deixar de ser diferente, o contexto do desenvolvimento de linguagens alternativas também teve suas características próprias, que marcaram peculiarmente a produção dessas publicações alternativas. No Brasil, os autores adeptos do movimento de contracultura, buscaram uma expressão nacional, tupiniquim, para caraterizar seu movimento, encontrando na expressão udigrudi uma denominação adequada ao que pretendiam. Porém, guardaremos para os capítulos seguintes um aprofundamento das discussões sobre o quadrinho nacional, a Chiclete com Banana, de Angeli, pois, antes de tudo acreditamos ser necessário uma breve introdução sobre a linguagem das histórias em quadrinhos no tocante às suas questões estruturais.

1.4. Algumas considerações sobre o gênero das histórias em quadrinhos: conceituação e