• Nenhum resultado encontrado

HISTÓRIAS TUPI GUARANI CONTADAS À UMA PESQUISADORA NÃO-INDÍGENA

4. ENCONTROS COM OS E AS TUPI GUARANI EM UMA PERSPECTIVA

4.4. HISTÓRIAS TUPI GUARANI CONTADAS À UMA PESQUISADORA NÃO-INDÍGENA

Como mencionei no início deste capítulo, a questão Mbya Guarani e Tupi Guarani causava-me certa confusão. Por esse motivo, busquei, por meio das narrativas da txedjarãy, compreender, mesmo que minimamente, como se constitui a identidade Tupi Guarani.

Eu quero então contar a história. Tem muita gente que diz que não existe Tupi Guarani.

Realmente, Tupi não existe, porque Tupi é um tronco linguístico. E, eu não sei explicar como é que fomos denominados Tupi Guarani. Quando eu nasci eu já me conhecia por Tupi Guarani e eu só sei que a minha avó era Tupinambá daqui dessa região mesmo, entre Peruíbe e Itanhaém, depois o meu bisavô veio do Mato Grosso do Sul e aí casou com a minha avó que era descendente de Tupinambá, por parte de pai. Depois a minha mãe, era filha também de um índio que o pai dele era de Laranjinha lá do Paraná. E, ele era casado com uma Mbya, eu não lembro o nome dela. Eram Mbya do Paraná ou Santa Catarina.

E aí a minha mãe era filha desse Guarani lá de Laranjinha com Mbya e também vieram: a minha vó por parte de mãe, depois o meu avô casou com uma mulher que era Guarani Kaiowá, de Itaporanga. E aí assim... tivemos muitas misturas... e isso foi o motivo da minha briga quando eu entrei na faculdade64... que a gente começou... nós éramos 80 indígenas no estado de

São Paulo, a primeira faculdade e daí eles diziam que só tinha quatro etnias, no caso Guarani, Krenak, Kaingang e Terena...

Aí eu briguei muito para que eles destacassem Tupi Guarani. Porque até então eles chamavam nós de Guarani Mbya mas nós não éramos bem

Guarani Mbya... porque tem muitas coisas que a gente não fala igual, é diferente. E daí tinha algumas palavras que nós não nos entendíamos... E, eu só queria dizer que eu entendia porque nós... muito tempo, né, andando com os Guarani Mbya... e eu sabia bastante, mas dentro da minha comunidade mesmo... os meus pais, minha mãe, o meu irmão, eles não... eles só falavam Tupi Guarani mesmo... e o Nhandewa também, era um pouquinho diferente. (Diário de Campo, dezembro de 2019).

Considerando os relatos da txedjarãy Tupi Guarani, a negação da etnia Tupi Guarani parece ocorrer há décadas, mesmo que essa etnia apresente modo de vida, narrativas e língua próprios.

Por outro lado, para nós Tupi Guarani... ‘Nhandewa’ são todos os indígenas do Brasil, nós chamamos de Nhandewa, seja eles Terena, Krenak, Xavante ou Guarani Mbya mesmo. Então todas essas pessoas, a gente chamava de Nhandewa. Então nós não nos classificamos como Guarani Nhandewa e sim Tupi Guarani, de Tupi Guarani. (Diário de Campo, dezembro de 2019).

Ou seja, apesar de haver uma etnia nomeada Guarani Nhandeva, em Tupi Guarani a palavra “nhandewa” significa “indígenas”, sem distinção de etnia, o que demonstra a dificuldade de registro das etnias indígenas presentes no − chamado − território brasileiro. No que tange a questão das histórias, a txedjarãy conta:

E, na faculdade eu tive brigando muito com uma professora lá que dava aula de social... não lembro muito bem o nome dela agora. Foi quando eu brigava muito cobrando que eu era Tupi Guarani e tínhamos que ir para 5 etnias. E, aí ela pediu que eu contasse uma história Tupi Guarani que os Mbya não conhecessem, porque tinha vários Mbya e tinha também Tupi Guarani. E, aí eu contei uma história da minha cidade, de onde eu nasci e, certamente os Guarani não sabiam... E também foi contado pelos Guarani Mbya histórias que os Tupi Guarani não sabiam... Foi registrado então. Aí começou a valer como 5 etnias dentro da faculdade indígena. Já agora somos mais reconhecidos... porque até 2006 por aí, nós falávamos Tupi Guarani mas ninguém sabia quem eram esses Tupi Guarani. E hoje a gente sabe que de Itariri, do Bananal, alguns em Bertioga... Essas aldeias mais antigas eram tudo dos Tupi Guarani. (Diário de Campo, dezembro de 2019).

Dado esse relato de uma negação ocorrida nos passado, causa certo desconforto saber que hoje ainda haja poucos registros etnográficos da existência de uma etnia Tupi Guarani no meio acadêmico, bem como a negação de colegas, sem o devido espaço de respeito à possibilidade de sua existência, apesar da academia.

Parte deste trabalho consistiria em construir um livro de histórias Tupi Guarani com três educadoras da Tekoa Tapirema, entre elas a txedjarãy. Entretanto, conforme explicado anteriormente, o trabalho de campo referente a esse processo não pode ser realizado devido à pandemia de COVID-19. Por outro lado, minha aproximação com a Tekoa Tapirema e seus integrantes, por meio da construção e execução de projetos não-acadêmicos, vem ocorrendo desde 2019, quando participei de eventos em

conjunto com o Coletivo Cultive Resistência. Nesses eventos, auxiliei na organização e elaboração de uma apostila para um Curso de Grafismo e Pintura Indígena, ministrado na cidade de São Paulo por um dos filhos da txedjarãy, em março de 2020; participei da elaboração de três livros: (1) organizando um livro de histórias e atividades para a educação das crianças Tupi Guarani – todo em Tupi Guarani, com ilustrações e grafismos feito pelo professor de grafismo e pintura; (2) organizando e auxiliando na escrita de uma autobiografia da txedjarãy e seu encontro com as ervas – tendo como inspiração A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert; e (3) organizando e auxiliando na escrita de um livro de contos Tupi Guarani bilíngue para o público infanto-juvenil com enfoque intercultural.

Além dos projetos de livros, o conhecimento sobre escrita acadêmica desenvolvido no mestrado permitiu-me auxiliar o Coletivo Cultive Resistência e a Tekoa Tapirema na escrita de projetos para editais e membros da Tekoa em seus projetos de cursos, como o caso do Curso de Grafismo e Pintura Indígena, mencionado no parágrafo anterior e ilustrado na Figura 10.

Figura 10 - Foto do Curso de Grafismo e Pintura Tupi Guarani

Dentre os editais, conforme discutido na seção 1.5, ficamos em 5º lugar na linha 2 do Edital de Emergência da Fiocruz para combate à COVID-1965. No projeto

Alimentação e Vida na Aldeia, buscou-se oferecer Soberania Alimentar e Prevenção à COVID-19 para as doze aldeias localizadas na TI Piaçaguera. Assim, foram distribuídos kits de alimentos de origem ancestral, alimentos tradicionais brasileiros, kits de higiene e prevenção à COVID-19 e material de conscientização sobre a pandemia desenvolvido especificamente para as comunidades indígenas.

Por essas e outras razões que dizem respeito a questões afetivas, e que vão além de uma possível explicação acadêmica, minha convivência com a comunidade intensificou-se previamente à pandemia, quando pude estar na aldeia por vários meses. Durante a pandemia, nosso contato – por meio de ligações de vídeo e áudio – foi diário. As trocas, as conversas e as narrativas compartilhadas permitem-me trazer nas linhas que seguem mais alguns relatos, impressões, fragmentos e interpretações sobre os Tupi Guarani, construídos na convivência, na escuta e na pergunta.

Além das histórias, há também o mborai, o cântico Tupi Guarani. Há três tipos de mborai em Tupi Guarani: o mborai marae’ỹ, o mais sagrado de todos os cânticos e que só é cantado na Oy Gwatsu, a casa de reza; o mborai marangatu, que é um som sagrado que vem da alma de quem o profere e não tem letra; e o mborai mitã, traduzido do Tupi Guarani como cântico das crianças e também sagrado, composto pelo arranjo musical entre instrumentos e letras que narram histórias de origem, memória, espiritualidade, natureza e comunidade. O mborai está presente nos rituais e nas vivências, além de alguns serem divulgados nas suas redes sociais. Entre eles, está o mborai mitã, Imagem da Selva66, o qual foi escrito por um txeramõi já falecido,

referido como Pajé Trovão, e é considerado pela comunidade como um de seus cânticos mais sagrados:

Nhanderu, odjapó kwaray Ele primeiro fez o sol I'tsapé ywá

Ary re'i

Iluminando assim Nosso universo

E assim, fez o mundo dos índios e da natureza Nosso pai é Tupã

Ohhh, Nhanderu

65 https://www.youtube.com/watch?v=3hr-u_TrRfA&t=44s 66 https://www.youtube.com/watch?v=zc7zE5EAS8Q

Nosso pai é Tupã Ohhh, Nhanderu

Essa é a imagem da selva Essa é a imagem da selva (Diário de Campo – março/2020)

A motivação para a letra da canção ser em Tupi Guarani e português, segundo contam os membros da comunidade, é que, ao mesmo tempo em que cantam, explicam para quem não compreende Tupi Guarani, o que demonstra um ato de co- laboração intercultural vindo dos indígenas, os quais têm a vontade de compartilhar e, de certa forma, educar o outro sobre sua perspectiva.

Figura 11 - Preparação para o mborai marae’ỹ

Fonte: Arquivo Pessoal