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Histórico da estimulação essencial

No documento PR KAROLINA SIEBERT SAPELLI SCHADECK (páginas 44-48)

2 ESTIMULAÇÃO ESSENCIAL: HISTÓRIA E TENDÊNCIAS ATUAIS

2.2 Histórico da estimulação essencial

Para compreender o percurso histórico dos programas de estimulação essencial, é necessário que se conheça brevemente a história da Educação Especial. O histórico apresentando a seguir está baseado essencialmente no texto “Paradigmas da relação da sociedade com a pessoa com deficiência” de Aranha (2001).

Pode-se dizer que a transição do feudalismo para o capitalismo teve papel primordial na compreensão da pessoa com deficiência e da deficiência em si (ARANHA, 2001). Até o século XVI, o conhecimento da humanidade era essencialmente teocêntrico, ou seja, as explicações sobre os fenômenos eram centradas na ideia de vontade divina, possessão, castigo, pecado. A partir da revolução Burguesa, a Igreja enquanto instituição dominadora do conhecimento passa a perder força, e as explicações passam a apresentar um caráter antropocêntrico. Sendo assim, a visão sobre a deficiência começa a se desvincular da ideia de castigo e possessão, e passa a ser vista como uma disfunção do corpo. A partir deste momento, as explicações biológicas a respeito da deficiência ganham força, tornando-se, inclusive, objeto de estudo da medicina. Com a industrialização, o corpo passa a ser visto como uma máquina, e portanto, a deficiência é interpretada como uma disfunção, um defeito desta máquina.

No início do século XIX registra-se um marco na história da Educação Especial (LAJONQUIÈRE, 1992). Jean Itard, educador francês, documenta a tentativa de integração social de Vitor, o selvagem de Aveyron. Vitor foi encontrado no ano de 1800 em uma floresta de Aveyron, na França, completamente abandonado e comportando-se como “selvagem”. Itard adota o menino, e durante dez anos dedica-se à sua recuperação. Tal episódio é considerado uma referência para a Educação Especial por duas razões: primeiramente, porque pela primeira vez alguém documentava formalmente a tentativa de “treinar” uma pessoa com algum tipo de deficiência, e até este momento não se acreditava nesta possibilidade. Em segundo lugar, Itard demonstra uma superação da visão biológica-médica- determinista que até o momento era predominante diante das pessoas com deficiência, e trabalha com a premissa de que a interação social de Vitor tanto com o próprio Itard quando com outras pessoas é capaz de impulsionar o desenvolvimento e a aprendizagem do menino.

Entretanto, mesmo com os trabalhos de Itard, até meados do século XX percebe-se um predomínio da visão inatista diante da pessoa com deficiência. Ou seja, acreditava-se que se a pessoa tem algum tipo de deficiência ela nasceu com esta condição que é portanto, imutável. Impera a sensação de impotência e a crença de que a segregação é o melhor caminho para a pessoa com deficiência. Aranha (2001) denomina este período de Paradigma de Institucionalização, que segundo a autora seria “[...] o primeiro paradigma formal adotado na caracterização da relação sociedade – deficiência” (p. 167). Este paradigma é caracterizado pela crença de que só é possível tratar e/ou ensinar a pessoa com deficiência de maneira segregada, ou seja, em instituições direcionadas exclusivamente para tais pessoas, sendo inviável a possibilidade de que as mesmas tenham uma vida socialmente ativa ou possam frequentar instituições de ensino comuns.

De acordo com a mesma autora, a partir da década de 1960, o paradigma de institucionalização passa a sofrer severas críticas, na medida em que este modelo não prepara a pessoa com deficiência para o convívio social, e cria ambientes totalmente irreais e incompatíveis com as exigências da sociedade além dos muros das instituições. Tais críticas, somadas aos custos que o Estado tinha para a manutenção de tais instituições, fazem com que este paradigma seja reformulado e substituído pelo Paradigma de Serviços. De acordo com Aranha (2001), “Este (paradigma) teve, desde seu início, o objetivo de ajudar pessoas com deficiência a obter uma existência tão próxima ao normal possível, a elas disponibilizando padrões e condições de vida cotidiana próxima às normas e padrões da sociedade” (p. 171). Ou seja, a partir da década de 1970, inicia-se um movimento para a desinstitucionalização da pessoa com deficiência na tentativa de integrá-las à sociedade. É importante reassaltar que a primeira versão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, datada do ano de 1961 (BRASIL, 1961), já mencionava a importância da escolarização das pessoas com deficiência, ainda que com uma perspectiva integradora. A ideia de integração consiste em adaptar a pessoa com deficiência às exigências e padrões sociais, educando-a e treinando-a para que possa aproximar-se ao máximo da condição de “normalidade” atribuída às demais pessoas. Sendo assim, a pessoa com deficiência é vista como alguém que possui um “atraso” ou um “defeito”, e precisa equiparar-se aos demais, como se os outros fossem um ideal a ser atingido por ela. Neste contexto, foram criadas as chamadas instituições de transição, que não mantinham a pessoa com deficiência totalmente isolada em um local segregado, mas que eram ambientes mais protegidos e que poderiam preparar a pessoa aos poucos para sua integração social. Na área da educação, temos como exemplo de tais instituições as escolas especiais e as classes especiais.

Entretanto, o paradigma de institucionalização logo começou a enfrentar críticas. Isto porque o foco da mudança centrava-se na pessoa com deficiência, e não na estrutura social. As duas principais críticas neste sentido eram: 1- o fato de a pessoa com deficiência ser vista como inferior às demais pessoas, devendo buscar nelas um ideal a ser atingido; 2- a impossibilidade de que algumas pessoas com deficiência apresentassem desempenho e aparência semelhantes ou iguais aos demais, devido às suas características próprias de desenvolvimento cognitivo, físico e emocional. Por conta de tais críticas, a ideia de normalização começou a ser intensamente questionada e enfraqueceu.

As discussões e movimentos sociais começaram a deixar evidente que é inviável centrar apenas na pessoa com deficiência a total responsabilidade por sua integração social, mas é necessário que a sociedade também se reorganize para atender às necessidades de tais pessoas. Sendo assim, a partir da década de 1970,inicia-se o que Aranha (2001) chama de Paradigma de Suporte. Este paradigma estabelece que as pessoas com deficiência têm os mesmos direitos que todas as demais pessoas, além do direito ao suporte de acesso quando necessário. Sendo assim, o paradigma de suporte exige que ocorram ajustes mútuos: investimento para o desenvolvimento de habilidades específicas nos sujeitos, além de mudanças sociais para atender a pessoa com deficiência em suas necessidades. E tal paradigma é válido para todos os setores sociais: trabalho, educação, esporte, lazer. Expressão de tal paradigma são documentos como a Declaração de Salamanca (BRASIL, 1994), a Constituição Federal Brasileira (BRASIL, 1988) e a LDBEN de 1996 (BRASIL, 1996), que estabelecem que a educação é direito de todos e dever do Estado, sendo que o primeiro documento elenca metas claras para que todas as crianças com necessidades especiais sejam incluídas em escolas comuns.

Dentro deste processo, desenvolvem-se também os programas de estimulação essencial. Estes não se configuraram sempre da mesma forma, mas foram modificando seus métodos e objetivos junto às crianças atendidas. Até as décadas de 1960 e 1970, verifica-se que os programas de estimulação essencial não eram baseados em premissas educativas, mas baseavam-se em modelos médicos com o objetivo central de normalizar a criança com deficiência, sendo que o centro neste processo era o profissional de saúde (OLIVEIRA et al, 2013). A partir da década de 1980, entretanto, com as mudanças de visão sobre o desenvolvimento infantil, passa-se a compreender que a criança deve ser considerada em seu contexto; por conta disto, os programas de estimulação essencial passam a incluir de forma crescente a família e outros membros do contexto da criança em suas intervenções, com a preocupação de melhorar o bem estar da família em geral. Autores como Bronfrenbrenner

(1974) apontavam para esta tendência já na década de 1970, ao afirmar que os programas de estimulação essencial só podem ser eficazes quando suas intervenções não se encontram voltadas única e exclusivamente à criança, mas também a outros contextos onde ela vive, especialmente o núcleo familiar. Esta perspectiva ecológica acerca do desenvolvimento infantil aumenta as probabilidades de um desenvolvimento mais efetivo a nível cognitivo, social e psicológico, não apenas durante o período no qual a criança é atendida na estimulação essencial, mas também ao longo de toda a sua vida. O autor discute que intervenções individualizadas e centralizadas na criança tendem a perder sua efetividade em um curtíssimo período de tempo após o seu término.

Mesmo que tais discussões datem do século passado, muitos estudos demonstram que as mesmas nem sempre se efetivam na prática e no dia a dia dos programas de estimulação essencial. De acordo com Bolsanello (2003), ainda hoje percebe-se que muitos programas centralizam suas intervenções na criança, não apresentando a preocupação em envolver a família e outros contextos neste processo.

Para realizar um trabalho que envolva não apenas a criança, mas todos os contextos nos quais ela vive, é preciso que necessariamente este seja um trabalho interdisciplinar. Assim uma tendência atual dos programas de estimulação essencial é a de que os mesmos não sejam mais centrados no profissional de saúde, mas envolvam profissionais de diversas áreas, principalmente os da educação. É necessário, entretanto, que isto seja realizado a partir de duas condições: que os profissionais tenham formação e treinamento específicos para a atuação em estimulação essencial, e que o trabalho dos diversos profissionais não seja realizado de forma desarticulada. Caso isto ocorra, o trabalho torna-se multidisciplinar e a criança pode ficar sobrecarregada por tantas intervenções diferentes, prejudicando os resultados esperados pelo programa (OLIVEIRA et al, 2013).

Atualmente, a legislação brasileira prevê que os programas de estimulação essencial são aqueles direcionados a crianças entre 0 e 3 anos e 11 meses de idade (BRASIL, 2001). Ao pensarmos em uma perspectiva inclusiva, podemos considerar que tais intervenções não devem estar restritas apenas a escolas de Educação Especial, mas também estender-se a escolas de ensino comum. Isto porque, em primeiro lugar, temos cada vez mais crianças com necessidades especiais sendo incluídas nestas escolas e, portanto, necessitarão de intervenções a elas planejadas e direcionadas. Em segundo lugar, porque a estimulação iniciada logo nos primeiros meses de vida é importante não apenas para o desenvolvimento das crianças com deficiência, mas para o desenvolvimento de qualquer criança. De acordo com Guralnick (2001), a integração dos profissionais é um dos princípios fundamentais para

o efetivo funcionamento de um programa de estimulação essencial, e isto inclui não apenas profissionais de Educação Especial, mas profissionais da Educação Infantil como um todo.

No documento PR KAROLINA SIEBERT SAPELLI SCHADECK (páginas 44-48)