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2. PASSOS PARA LUZ

2.1 Histórico

O grupo de dança Passos Para Luz surgiu em 2003, na cidade de Belém do Pará, a partir de uma parceria entre o Centro de Dança Ana Unger e a Unidade Educacional Especializada José Álvares de Azevedo20 – UEES JAA. A proposta de levar o ensino da dança para pessoas deficientes visuais se configurou no contexto em que eu, professora do Centro de Dança Ana Unger, me encontrava, sendo instigada pela diretora da escola a construir um projeto social dentro do seu estabelecimento. Nesse período, eu estava estudando com o objetivo de prestar vestibular para o curso de Educação Física na

20 A Unidade Educacional Especializada José Álvares de Azevedo foi fundada em 7 de dezembro de 1953, na cidade de Belém. A Unidade tem aproximadamente 348 alunos matriculados, de bebês a pessoas da 3ª idade, que são atendidos em programas de Educação e Reabilitação, em três turnos, com atendimento diversificado que vai da Estimulação Precoce ao Ensino Superior. (Ver sítio: http://utjosealvares.blogspot.com.br)

Universidade Federal do Pará e, sempre que podia, realizava reuniões de estudo com duas amigas de colégio. A Unidade Educacional Especializada José Álvares de Azevedo, que atua no atendimento a pessoas com deficiência visual, pelo fato de ser o local de trabalho da mãe de uma de minhas amigas, servia de ponto de encontro eventual para o grupo. Ela trabalhava em um setor primordial para a reabilitação e socialização do deficiente visual, o de Orientação e Mobilidade (OM) e, por conta disso, pude ter, nesse lugar, meu primeiro contato com o universo do deficiente visual. Começava, assim, a entender o mundo de quem não enxerga, vislumbrado no contexto de um espaço totalmente adaptado.

A partir desse contato, pude me propor o que pode ser considerado minha primeira indagação: por que não oferecer a vivência da dança a pessoas com deficiência visual? Visualizando essa possibilidade, levei a proposta de dar aulas para essas pessoas à diretora do centro de dança em que ministrava aulas. Era o início do ano de 2003. Quando percebi o entusiasmo com que a proposta foi aceita, tratei de organizar um encontro entre as diretoras da Unidade Educacional Especializada José Álvares de Azevedo e do Centro de Dança Ana Unger. Neste acordou-se como daríamos início ao ensino da dança para deficientes visuais. Daí partiu-se para o trabalho de divulgação e para a formação das turmas: mais especificamente, decidiu-se que as atividades seriam voltadas para o ballet clássico, envolvendo crianças e adolescentes de 6 a 14 anos, divididos, por faixa etária, em duas turma, uma turma de 6 a 9 anos e outra turma de 10 a 14 anos.

As aulas foram iniciadas em agosto de 2003, nas dependências da Unidade Educacional Especializada José Álvares de Azevedo, mais precisamente na sala de educação física, onde permanecemos até o final daquele ano. Duas professoras ministravam as aulas: eu e minha amiga Cristina Pereira, também funcionária do Centro de Dança Ana Unger. Lembro-me que um dos momentos mais significativos aconteceu em uma das primeiras aulas. Um menino de seis anos (o único da turma), alegre e falante, me pediu: “Tia, posso te ver?”. Hesitei um pouco, sem entender de que maneira o verbo “ver” poderia ser traduzido, naquela circunstância, mas logo respondi: “pode!” Sem saber ao certo o que viria a seguir. O menino chegou, então, bem perto de mim e começou a tocar o meu corpo, meu rosto e meu cabelo. A cada detalhe percebido, ele verbalizava sua surpresa. Ao discorrer sobre o início do seu trabalho com deficientes visuais, Magda Bellini (2011, p. 101), afirma que nada do que sabia previamente a preparou para o impacto de se ver rodeada por esses corpos.

Esse início foi marcado pela dificuldade de compreender como o corpo poderia aprender a dançar, sem qualquer referência visual, ou quais eram as possibilidades de ensino/aprendizagem a serem construídas para/com o corpo do deficiente visual. Sem qualquer indicativo de trabalhos dessa natureza, realizados anteriormente, por meio dos quais pudesse estabelecer um suporte para o começo de minha nova jornada, encarei o desafio às escuras, sem saber ao certo até onde poderia ir.

Figura 16 – Aula de ballet para crianças do Grupo Passos Para Luz

Fonte: Arquivo do Grupo Passos Para Luz

Em janeiro de 2004, durante o processo de montagem do espetáculo A árvore

que chora: os homens que ganharam a vista e perderam os olhos, da Cia. de Dança Ana

Unger, que falava sobre os seringueiros, sobre o período áureo da borracha e sobre a técnica de queimar o látex, uma prática que cegava os trabalhadores, apresentou-se a necessidade de realizar um laboratório com pessoas deficientes visuais adultas. Assim, alunos da Unidade Educacional Especializada José Álvares de Azevedo foram convidados para participar de um ensaio da companhia. Presente a esse encontro, pude perceber quão rica era a movimentação de alguns dos deficientes visuais adultos, sua demonstração de domínio do espaço, com deslocamentos autônomos, movimentos expansivos e diversificados, com o uso do corpo inteiro e dos níveis espaciais – baixo,

médio e alto21. Vale ressaltar que esses deficientes visuais já eram alunos, a algum tempo, da Unidade Educacional Especializada e estavam reabilitados, possuindo autonomia de deslocamento, com ou sem auxílio de bengala. Essa experiência me proporcionou outro olhar para o deficiente visual e suas possibilidades, mesmo no corpo adulto, pois é de praxe, na dança, que se comece ainda criança, sendo negado, muitas vezes, ao adulto, a oportunidade de começar a dançar, sobretudo no ballet clássico. Foi formada, assim, a turma de dança para adultos deficientes visuais, inicialmente com cinco alunos, dois do sexo masculino e três do sexo feminino. Quatro deles possuíam visão subnormal e um cegueira. Nesse mesmo ano, as aulas foram transferidas para as dependências do Centro de Dança Ana Unger, medida que beneficiou tanto a turma de adultos quanto as de crianças, que passaram a usar um espaço mais adequado à prática da dança, numa sala com piso de madeira, barras e espelhos, aparatos necessários a esse tipo de atividade. Em abril do mesmo ano houve a estreia do grupo, no Theatro da Paz. Intitulado Olhar e Ver, o trabalho teve a particularidade de somar a participação das crianças e dos adultos deficientes visuais, em uma atuação conjunta com bailarinos videntes. Essa apresentação histórica, por ter sido a primeira com deficientes visuais na cidade de Belém, revelou ao público as potencialidades artísticas da pessoa com deficiência visual. Foi este o primeiro passo de muitos que viriam a compor a nossa trajetória dançante.

O trabalho com crianças só foi interrompido em 2006, em consequência de uma dificuldade muito grande em relação à frequência regular dos alunos, que não possuíam autonomia para se deslocarem sozinhos. Registrava-se um número considerável de faltas, o que impediu que o trabalho avançasse com esse grupo. Já no grupo de adultos, o trabalho fluía cada vez mais rápido, com aulas regulares, construções coreográficas constantes e inúmeras apresentações em teatros, shoppings, escolas e outros espaços da cidade. No ano de 2007, me inscrevi na Bolsa de Pesquisa, Experimentação e Criação Artística, do Instituto de Artes do Pará para desenvolver um projeto com o grupo Passos

Para Luz e fui contemplada. A bolsa de pesquisa me proporcionou a possibilidade de

investigar mais a fundo as especificidades da dança para o corpo do deficiente visual.

21 Nível espacial é a relação de posição espacial que pode ocorrer em duas instâncias: primeiro, de uma parte do corpo em relação à articulação na qual ocorre o movimento. Por exemplo, um braço pode estar alto, médio ou baixo em relação à articulação do ombro; segundo, do corpo todo em relação a um objeto, outros corpos ou ao espaço geral. Por exemplo, o corpo da pessoa está baixo em relação a uma cadeira ou a outra pessoa. (Cf. RENGEL, 2003)

Pude também organizar um caminho metodológico de ensino/aprendizagem para/com o bailarino com deficiência visual, que será discutido no item 2.3 deste capítulo. Como resultado tem-se a criação do espetáculo TransformAção22

. É esse processo artístico que

faz o trabalho do grupo ganhar reconhecimento e espaço no circuito artístico da cidade. Contemplada, com uma nova Bolsa de Criação/Experimentação Artística, também do Instituto de Artes do Pará, em 2011, passo a desenvolver a proposta de trabalhar com o grupo de dança Passos Para Luz, visando, desta vez, potencializar a autonomia dos bailarinos do grupo no processo criativo em dança. Essa iniciativa gera o espetáculo Dançar o Invisível, com a primeira coreografia feita, sob minha direção, totalmente pelos bailarinos.

Ao longo desses dez anos de trabalho, inúmeros alunos/bailarinos, professores, coreógrafos e artistas das mais diversas linguagens passaram pelo grupo, cada um dando a sua contribuição para a construção de um tipo de dança que transcende a visualidade e se lança a outros meios de compreensão e expressão artística deste corpo que dança, mas não vê.

Atualmente, o grupo atua, sob minha direção, de forma independente, contando com três bailarinos deficientes visuais, sendo apenas um do sexo masculino, todos com visão subnormal23 e na faixa etária entre trinta e cinquenta e seis anos.

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