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Historicizando a Educação Moral e Cívica: Livro Didático, Disciplina Escolar e Doutrina

4. REPRESENTAÇÕES DE CIDADANIA NOS CONTEÚDOS DOS LIVROS DIDÁTICOS DE EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA DURANTE

4.1 Historicizando a Educação Moral e Cívica: Livro Didático, Disciplina Escolar e Doutrina

A tarefa do historiador é, então, a de reconstruir variações que diferenciam os “espaços legíveis” – isto é, os textos nas suas formas discursivas e materiais – e as que governam as circunstâncias de sua “efetivação” – ou seja, as leituras compreendidas como práticas concretas e como procedimentos de interpretação. (CHARTIER, 1999, p. 12).

Chartier (1999) se remonta à tarefa do historiador ao trabalhar com livros como fonte, baseando-se em Michel Certeau para definir alguns procedimentos nessa prática. O primeiro ponto a ser definido pelo autor é a análise dos textos, ou seja, objetivos, estrutura e pretensões do livro. O segundo ponto é a história do livro, neste caso, a história dos livros didáticos de EMC, que será tratada neste capítulo. Por último, os estudos das práticas que se apossam dos livros, aspecto já esboçado no contexto histórico-educacional anteriormente.

A partir disso, podemos afirmar que a pesquisa no campo da História da Educação nos permite dialogar entre duas áreas distintas – Educação e História – que se

completam na busca por respostas, inquietações e novas formulações sobre o campo educacional. Quando tratamos da formação do cidadão na educação brasileira, por exemplo – em conjunto com as análises, estudos e pesquisas –, ficam-nos evidente as contradições, interpretações diversas sobre “o educar” no Brasil, bem como as várias concepções de educação existentes no percurso histórico.

Concordamos que compreender a disciplina de EMC, sua obrigatoriedade e seu papel na educação durante o regime é necessário, pois, para além da análise de um objeto, a disciplina de EMC por si só carrega diversas compreensões, estrutura e historicização própria.

Desejamos evidenciar como se deu o surgimento dessa disciplina na educação brasileira, como se caracterizou sua obrigatoriedade no Regime Militar e que tipos de conteúdos eram abordados.

Vale-nos discutir primeiro o que vem a ser uma disciplina escolar – esse componente tão elementar na educação e, ao mesmo tempo, tão influenciado pelo contexto em que é inserido. Segundo a definição de Fonseca (2003, p. 15), disciplina escolar é “o conjunto de conhecimentos identificados por um título ou rubrica e dotado de organização própria para o estudo escolar, com finalidades específicas ao conteúdo de que se trata e formas próprias para sua apresentação”.

O estudo sobre a história, o surgimento, as especificidades das disciplinas escolares se faz relevante, pois, a partir dele, compreendemos como determinados saberes se transformaram em disciplinas e como esses mesmos conhecimentos se modificaram a partir das necessidades de uma dada sociedade em um determinado contexto histórico. Nas palavras de Chervel (1990, p. 180), uma “‘disciplina’, é igualmente, para nós, em qualquer campo que se a encontre, um modo de disciplinar o espírito, quer dizer de lhe dar os métodos e as regras para abordar os diferentes domínios do pensamento, do conhecimento e da arte”. Esse caráter “disciplinar” pode ser tanto crítico, quanto ideológico e obter diversas relações com a política, contexto histórico e objetivos educacionais. Filgueiras (2006, p. 3377), ao dialogar com Bittencourt (2003) em seu texto, aborda que:

[...] a apresentação de certas disciplinas no currículo, opcionais ou obrigatórias, reconhecidamente legitimadas pela escola, está ligada não somente a questões didáticas, mas relacionam-se com o significado político que esses saberes desempenham em uma determinada conjuntura educacional.

No caso da disciplina de EMC, seu surgimento no Brasil ocorreu muito antes do Regime Militar.

Na realidade, trata-se de uma reintrodução, pois a cadeira de “Instrução Moral e Cívica” foi instituída em 1925, pela reforma Rocha Vaz, justamente como forma de combater o protesto estudantil contra o Governo de Arthur Bernardes. Foi reforçada durante o Estado Novo e, com a Constituição de 1946, teve seu caráter de obrigatoriedade revogado. (GERMANO, 1993, p. 134).

Notamos que, mesmo tendo suas próprias especificidades, tanto no primeiro momento, em 1925, quanto no segundo – durante o Estado Novo – e no terceiro momento, em 1969 – na Ditadura Militar –, a obrigatoriedade dessa disciplina se fundamentou no autoritarismo e por uma doutrina ideológica pré-determinada. Os pilares de sustentação foram os mesmos: a busca pela unificação entre a moral cristã (fundamentalismo religioso) e a força militar (patriotismo exacerbado), procurando almejar, assim, maior mobilização e controle nacional. Para Marcelino (2009, p. 19-20), tal “esforço em controlar os estudantes para obter seus interesses particulares e dentro do esquema de poder militar, estabelece as reais intenções de um ensino que acentua a moral, civismo, e a maneira que as pessoas devem agir dentro da sociedade”.

Quanto a essa análise histórica da disciplina, Chervel (1990, p. 193) aponta um aspecto relevante em relação ao tema. Segundo o autor, a “história das disciplinas escolares expõe à plena luz a liberdade de manobra que tem a escola na escolha de sua pedagogia”. Isto é, que formação era almejada pelo Regime Militar, qual o papel da escola, que objetivos a pedagogia colocada em prática obtinha e que finalidade a disciplina de EMC deveria desempenhar? Para Vaidergorn (2008, p. 408):

A formação desejada era a de uma boa cidadania, que se moveria em um mundo binário e maniqueísta (certo/errado, sim/não, bom/mau etc.), favorecendo assim uma concepção de poder. Seus pressupostos, zelados por uma Comissão Nacional de Moral e Civismo, eram o de controle e submissão, notadamente sobre o proletariado, clientela privilegiada das escolas públicas e potencialmente ameaçadora aos setores dominantes do Estado e da sociedade, da política e da economia.

Desse modo, em meio à conjuntura em que o país e a educação brasileira estavam inseridos no ano de 1969, a obrigatoriedade da disciplina de EMC representou

essa absorção de componentes político-ideológico-educacionais que o governo havia planejado.

Durante o período, o caráter ideológico era perceptível nos livros didáticos. O tema Cidadania e suas representações também sofreram influência dessa característica. Sobre essa articulação entre livro didático e o contexto em que se insere, Fonseca (1999, p. 204) assinala que:

O livro didático e a educação formal não estão descolados do contexto político e cultural e das estruturas de dominação, sendo, muitas vezes, instrumentos utilizados na legitimação de sistemas de poder, além de representativos de universos culturais específicos. Sua elaboração não parte, exclusivamente, de interesses pré-estabelecidos, mas incorpora as concepções de história e os sistemas de valores dos autores e de seu tempo.

Esses aspectos de dominação, legitimação, jogos de interesses e concepções de valores foram absorvidos na obrigatoriedade dessa disciplina, institucionalizada com o Decreto-Lei nº 869 de 1969, e consequentemente, nos livros didáticos de EMC. Tais livros, analisamos nesse trabalho, são marcados pelo caráter ideológico, valores dos autores e de seu tempo. Segundo Scocuglia (2009, p. 80),

[...] nada ficou mais impregnado nas ações educativas do Estado militar que a introdução obrigatória, em todos os níveis, da disciplina chamada “Educação Moral e Cívica” (no primeiro grau), Organização Social e Política do Brasil (OSPB) (no segundo) e Estudos de Problemas Brasileiros (EPB), nos cursos de graduação e pós- graduação.

Mais do que uma implantação, a obrigatoriedade representava uma estratégia de disseminar a ideologia ditatorial em todos os níveis na sociedade, desde as crianças até os adolescentes e adultos. Questões proeminentes foram abordadas pelo decreto e se faz válido apontá-las.

Quanto aos preceitos religiosos e patriótico-nacionalistas, por exemplo, no Art. 2º – este relacionado à finalidade da disciplina –, os incisos “a” e “d” chamam a atenção:

a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; [...] d) o

culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua historia. (BRASIL, 1969).

A importância dada aos “grandes vultos de sua história” demonstra uma representação de cidadão de cima para baixo. Ou seja, havia uma preferência pela história dos “grandes homens” e de seus “grandes feitos”. Conhecê-los e admirá-los era uma questão de civismo. Já o aspecto religioso, assim como o patriótico, estava em uma esfera moralista e conservadora. Essas características surgiram no século XIX – especialmente após à instauração da República – e foram utilizadas pelo regime para direcionar a formação do cidadão a partir de “grandes exemplos” da história.

Ao se buscar menções ao conceito de Cidadania nesse Decreto, encontramos o inciso “f” do Art. 2º, que remete também à finalidade da disciplina que se resume na: “compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sócio-político-econômica do País” (BRASIL, 1969). Embora o Decreto colocasse como finalidade a compreensão de direitos, sabemos que essa consciência de Cidadania era abordada como um complemento e não como um fundamento do “ser cidadão”.

Outro fator a se ressaltar do presente Decreto-lei foi a implantação da Comissão Nacional de Moral e Civismo: “Art. 5º. É criada, no Ministério da Educação e Cultura, diretamente subordinada ao Ministro de Estado, a Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC)” (BRASIL, 1969). Junto ao Conselho Federal de Educação (CFE), a CNMC foi responsável pela implantação e manutenção da disciplina de EMC no país. “Os livros didáticos de EMC, de OSPB e de Estudos dos Problemas Brasileiros – EPB, que seriam publicados, passavam anteriormente pelo parecer da CNMC” (FILGUEIRAS, 2006, p. 3.378).

No Art. 6º, alínea “a”, foi estabelecido que a função da CNMC, entre outras, seria: “a) Articular-se com as autoridades civis e militares, de todos os níveis de governo, para implantação e manutenção da doutrina de Educação Moral e Cívica de acordo com os princípios estabelecidos no artigo 2º” (BRASIL, 1969). Ou seja, essa implantação é marcada pela total ausência de participação pública e de debate docente no processo.

Contudo, o tema EMC não ganhou visibilidade no regime apenas em 1969. Em 1964, fruto do II Encontro dos Representantes dos Conselhos Estaduais de Educação, o Parecer nº 117, de 30 de abril, já trazia para debate o ensino de EMC nos estabelecimentos de ensino médio. Isso reafirma o quanto uma norma é fruto de um fato

social (necessidade de uma educação doutrinária) e de valorização por parte da sociedade e/ou governo. Segundo a lei:

O momento atual, do Brasil e do mundo, está a exigir, efetivamente, maior atenção para a formação da consciência dos adolescentes, quanto ao exercício dos seus deveres morais e cívicos. Trata-se do que há de mais essencial e básico na educação integral do homem. (BRASIL, 1964, p. 15).

A relevância dada à implantação de EMC não se dava apenas na formação de cidadãos, mas na consciência desses indivíduos sobre concepções atreladas aos interesses do regime: combate ao comunismo, patriotismo, consciência sobre deveres, virtudes cristãs, entre outros.

No mesmo ano, o Parecer nº 136, de 5 de junho, trazia novamente o tema. Para a lei:

a) a formação moral e cívica decorre da ação educativa da escola, considerada em tôdas as suas possibilidades e recursos; b) a formação moral e cívica é objetivo de escolas de todos os graus; c) a formação moral e cívica não fica isenta da influência de certos órgãos formadores da opinião pública, como rádio, TV e cinema. Nem da cooperação da família e da comunidade geral. (BRASIL, 1964, p. 72).

Além disso, traz aspectos negativos da EMC a serem avaliados e revisados:

a) o desconhecimento e a indiferença, pelos valores da cultura brasileira e pelas instituições vigentes; b) o excesso de autoridade, em detrimento da liberdade e do respeito à personalidade do educando e do mestre; c) o não cumprimento dos deveres por parte da administração do ensino, da direção da escola, dos professores, do corpo administrativo, e do corpo discente. (BRASIL, 1964, p. 73).

A preocupação em moldar a disciplina ao contexto existente se refletia nos debates recorrentes sobre o assunto. Muitos dos aspectos tratados nesse último Parecer se apresentam até mesmo limitados ao discurso, ao compreendermos a forma como a disciplina se deu verdadeiramente no país. Entre outras indagações, o Parecer ainda traz o valor em se abordar os vultos nacionais na formação de compêndios. Dentre os objetivos ditos primordiais, é citado o respeito aos direitos humanos e à liberdade, bem como o sentido de unidade nacional, a colaboração dos professores, o treinamento para a vida democrática, excursões para museus, bibliotecas, monumentos, entres outros.

Percebemos o quanto a inserção da disciplina de EMC se transformou em uma demanda social e política com seus diversos debates e possibilidades. Isso demonstra que cada disciplina, cada livro didático traz consigo percursos únicos de formação, instauração e obrigatoriedade, como o caso da disciplina estudada.

Vale ressaltar, ainda, que, em 1970, após a obrigatoriedade da disciplina, foram criados os Subsídios para Currículo e Programas Básicos de EMC, organizados pela Comissão Nacional da Moral e Civismo (CNMC). Segundo Filgueiras (2006, p. 2):

Esse programa foi indicado pela Comissão, para auxiliar na elaboração dos currículos e programas básicos da EMC. Os subsídios permaneceram como indicação aos programas de ensino durante o ano de 1970. O Parecer nº. 101/70 do CFE também anunciava a constituição de uma Comissão Especial para tratar dos assuntos relacionados à EMC.

O foco principal eram temas como família e escola. Além disso, eram expostos temas relacionados à Doutrina de Segurança Nacional, nos quais se enfatizavam o perigo comunista e a necessidade da EMC como enfrentamento a esse problema.

Em 1971, foi implantado o Parecer nº 94, organizado pelo CFE a partir de uma Comissão Especial. Filgueiras (2006, p. 2) afirma que essa comissão “fixou os Currículos e Programas de Educação Moral e Cívica em todos os níveis de ensino do País, em substituição aos Subsídios/70, da CNMC”. Ainda segundo a autora, “O CFE relutou o máximo possível à implantação da EMC como disciplina. Grande parte dos membros do Conselho era favorável a EMC como prática educativa, que permeasse toda a estrutura das escolas”.

Nesse Parecer, diferentemente do anterior, os temas eram mais amplos e se diferenciavam por abordarem questões mais educacionais ao “estabelecer conteúdos e atividades relacionados ao desenvolvimento dos alunos, com preocupações metodológicas de ensino e aprendizagem” (FILGUEIRAS, 2006, p. 3).

Compreendemos que a representação mais clara desses instrumentos legais se vincula ao caráter doutrinador e disciplinador da disciplina e seus conteúdos, bem como na busca por efetivar um comportamento ideal do cidadão.

Quanto aos conteúdos dos livros de EMC, Filgueiras (2014, p. 4), em seu texto Dois livros didáticos de educação moral e cívica diferentes: mecanismos de apropriação das prescrições oficiais, faz um breve, mas objetivo apontamento:

Os conteúdos da maioria dos livros didáticos de Educação Moral e Cívica giram em torno de três grandes temas: Civismo, Estado brasileiro e Moral. Estes temas apresentam por sua vez subitens: cidadania, patriotismo, nacionalismo, o trabalho e o trabalhador, a formação do povo brasileiro, a realidade brasileira, a família e a religião.

Percebemos que a função mais pertinente desses conteúdos e da própria disciplina, em geral, era doutrinar politicamente a sociedade brasileira. Tal ensino agia para garantir a dita “democracia”, esclarecendo aos jovens sobre o “perigo” do comunismo e, ao mesmo tempo, preparando indivíduos para sociedade. Entretanto, diferentemente do que se abordava nos livros, o país vivia em uma ditadura autoritária que buscava o controle – também – por meio da educação e dos livros didáticos. Dessa forma, “trata-se de um adestramento, minimizando a capacidade de pensar, pois não havia lugar para a cultura humanística e para a cidadania, embora o regime ditatorial fizesse constantes declarações de amor à democracia” (GERMANO, 2008, p. 329). Segundo Santos (2011, p. 6)50:

Refletindo sobre todas essas ações do governo em torno das práticas cívicas, concluímos que o principal objetivo era iniciar o seu projeto de formação do homem integrado51, um homem que se adequasse à sociedade em que vive, ou seja, um cidadão incorporado à sociedade, um cidadão acrítico. (grifo do autor)

A busca por moldar um cidadão passivo, oculto, forjado e não questionador era essencial para o controle da sociedade e para o desenvolvimento capitalista. Tal desenvolvimento necessitava de uma mão de obra controlada, sem direitos definidos – como trabalhistas –, e passiva às desigualdades sociais, às ausências da valorização da educação como instrumento de formação crítica e aos desrespeitos aos direitos humanos e de Cidadania.

Portanto, na concepção de Abreu e Inácio Filho (2006), a EMC fragmentou também o ensino de história e buscou, a partir das intenções do Estado, doutrinar os cidadãos para benefício próprio. Essa doutrinação, também denominada por Chervel (1990, p. 220) de “aculturação”, demonstra, segundo o autor, como as “disciplinas

50 Artigo apresentado no III Seminário de Dissertações e Teses do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar.

51 Termo utilizado em discurso por Jarbas Passarinho em 1973, ex-ministro da educação no governo do presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), em cuja gestão foi elaborada uma das principais reformas educacionais da ditadura militar (Reforma de 1º e 2º grau de 1971).

escolares intervêm igualmente na história cultural da sociedade. Seu aspecto funcional é o de preparar a aculturação dos alunos em conformidade com certas finalidades: é isso que explica sua gênese e constitui sua razão social”. Desse modo, o estudo dessa disciplina abre caminhos para investigações e reflexões pelos enlaces da História da Educação.

A partir do desenvolvimento do tema EMC, partimos para a análise das fontes escritas – os livros didáticos de EMC – com o objetivo de compreender as representações presentes nessas obras em relação à Cidadania.