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Historiografia, século XIX e Sinésio de Cirene: a compreensão de De Regno e De Providentia sob a ótica do logocentrismo.

De acordo com o historiador italiano Salvatore Nicolisi (1959, p. 06-7), o século XVIII manteve-se em silêncio no que diz respeito à tradução e comentários acerca das obras de Sinésio, e, no século XIX, coube a A. T. Clausen, com De Synesio philosopho Libyae Pentapoleos Metropolita commentatio (1831), fomentar o debate no meio acadêmico alemão. Nesta obra, Clausen fez um estudo minucioso de compilação e revisão dos discursos sinesianos. Sua atenção versou, em grande medida, sobre a trajetória biográfica do filósofo, observada por meio de sua produção literária. No que diz respeito à análise documental de De Providentia, em particular, reconhecemos que o historiador foi o primeiro a conceber o mito egípcio como construção alegórica, útil à compreensão do cenário político de Constantinopla do final do IV século.

Em seguida, o estudo sobre Sinésio foi conduzido por outro historiador alemão, J. G. Krabinger em Aegyptische Erzählungen über die Vorsehung (1835) que, assim como Clausen, apresentou um estudo monográfico e crítico

das obras sinesianas e também as organizou de acordo com a trajetória biográfica do filósofo. Destaca-se, em sua investigação, a relação entre o pensamento filosófico e os acontecimentos históricos a que Sinésio fez referência em suas obras, aspecto que havia sido negligenciado por Clausen (1831). As pesquisas em Sinésio foram seguidas pelos historiadores alemães R. Volkmann em Synesius von Cyrene (1869), E. Gaiser em Des Synesius von Cyrene ägyptische Erzählungen oder die Vorsehung (1886) e O. Seeck em Studien zu Synesios (1893).

Volkmann (1869) aprofundou o significado político de De Regno e De Providentia sob a perspectiva do pensamento filosófico de Platão, mobilizado por Sinésio; Gaiser (1886) publicou uma monografia especificamente sobre De Providentia com ênfase na relação entre história, política e filosofia, ampliando o debate filosófico dos estudiosos que o precederam, ao aludir a aspectos de diferentes correntes filosóficas que aparecem nas obras em questão, tais como platonismo, aristotelismo, estoicismo e pitagorianismo. Seeck (1893), por outro lado, aprofundou o problema da cronologia sinesiana, com destaque à relação cronológica entre o material epistolar de Sinésio e o discurso De Providentia, ademais de propor uma interpretação dos personagens mitológicos, supostamente obscurecidos em De Providentia, tendência que se segue até hoje.

Na França, os estudos sobre Sinésio foram liderados por H. Druon em Ouvres des Synésius: évêque de Ptolémais, dans la Cyrénaïque au commencement du V siècle (1878) em que também se nota a tentativa de conferir inteligibilidade à trajetória biográfica de Sinésio a partir de suas fontes históricas com a finalidade de compreender sua adesão ao cristianismo (1878, p. 5). Tal abordagem concebe as obras sinesianas em perspectiva linear e progressiva, indispensável à explicação de sua vida com ênfase sobre o processo de conversão ao cristianismo.

Assim, para o pesquisador, liberto do paganismo, ele (Sinésio) passou pela filosofia, para chegar ao título, ao mesmo tempo, de cristão (DRUON, 1878, p. 178). Para sustentar este ponto de vista, Druon (1878, p.180) utiliza, na conclusão, uma metáfora:

(...) a planta, nascida lentamente do sol, deve se firmar e depois se cobrir de folhas e flores antes de gerar os frutos. É preciso tempo e reflexão para fecundar e amadurecer o pensamento: encontram-se as flores em nosso escritor (Sinésio), mas não se podem lamentar os frutos ausentes (...)

O estudioso ratifica tal perspectiva ao mostrar as marcas do cristianismo presentes nas últimas obras de Sinésio, já que

(...) em três hinos, ou, se quisermos, cinco, quando muito, (...) duas Catastases, dois fragmentos das homilias, os discursos

contra Andrônico e aproximadamente cinqüenta cartas, as mais

importantes, isto é verdade, eis tudo o que nos resta do que ele escreve após sua adesão ao dogma cristão (DRUON, 1878, p.179).

Os fragmentos acima sinalizam que uma das preocupações do pesquisador versa sobre a gradativa aproximação de Sinésio ao cristianismo e demonstra tal hipótese por meio da análise das obras sinesianas em perspectiva histórica, como se a trajetória biográfica de Sinésio o levasse à gradual aceitação dessa corrente filosófico-religiosa. Para Druon (1878, p.110), a remissão a elementos do chamado paganismo, que perpassa a produção literária de Sinésio, justifica-se em razão da apreensão de aspectos morais, políticos e teológicos, úteis à consolidação do cristianismo e compatíveis com ele. Nesta obra, o autor alude superficialmente ao cenário político- administrativo, diferentemente da historiografia germânica, porquanto seu objeto de questionamento é a vida de Sinésio e a sua inserção entre os padres da Igreja 20.

Sob semelhante perspectiva, a historiografia anglo-americana, representada pelos historiadores Augustine Fitzgerald em The letters of Synesius of Cyrene (1926) e W. S. Crawford em Synesius, the hellene (1901), reconhece que Sinésio canalizou suas experiências religiosas para o cristianismo de maneira gradativa, todavia Crawford (1901, p.122) adverte que Sinésio aderiu nem ao cristianismo, nem ao neoplatonismo, estritamente falando, trata-se de uma incongruente composição de ambas: isto é,

20 Segundo Insuelas em Curso de Patrologia (1943) usa-se a expressão padres da Igreja para se referir a autores cristãos que poderiam ser clérigos ou leigos e que se notabilizaram em razão da qualidade de sua doutrina, dado o caráter disciplinar de suas vidas e aprovação posterior às suas exigências. Além disso, tal terminologia foi empregada pela própria Igreja a partir do século II d.C.

sinesianismo. Tal como Druon (1878) e Fitzgerald (1926), Crawford ressalta, subjacente às questões religiosas, as características pessoais de Sinésio como componentes úteis à explanação de sua trajetória biográfica, como se percebe no fragmento a seguir:

Ele é patriótico, ativo, diplomático, corajoso,

consciente, fiel – um excelente líder, experiente, quer de seus

voluntários, quer de seu clero. (...) Um aristocrata bem-nascido que vivera em importantes cidades e fez-se conhecido como grande homem do Império, ele tem muitos amigos influentes, e ele usa seu poder com eles para o que é bom. (CRAWFORD, 1901, p.513, grifo nosso)

Com base na leitura do fragmento acima e na vertente interpretativa adotada, em geral, pelos pesquisadores acima mencionados, verificamos que os estudos monográficos sobre Sinésio de Cirene, entre o início do século XIX e início do XX, guardadas as devidas proporções, inclinam-se, entre outros objetivos, à tentativa de reconstituição de sua biografia com base em seus próprios registros. Assim, os pesquisadores adotam um ponto de partida: o nascimento de Sinésio, e narram, em maior ou menor medida, a trajetória de vida do cirenaico de maneira teleológica, em grande parte dos casos, direcionada à aceitação do cristianismo. Outra característica marcante desses estudos versa sobre o caráter etapista e, portanto, fragmentado com que a vida do filósofo é contada.

Nicol (1886), por exemplo, organiza sua biografia da seguinte forma: 1. nascimento e educação de Sinésio: sua rede social e política, 2. Sinésio como patriota: sua embaixada a Constantinopla, Sinésio como cavalheiro da pátria, 3. Sinésio como filósofo, 4. Sinésio como bispo eleito de Ptolomaida, 5. Sinésio como bispo em atividade, 6. Sinésio como defensor da igreja, 7. Últimos dias de Sinésio. Já Crawford (1901) narra a vida de Sinésio sob os seguintes tópicos: 1. esboço da vida de Sinésio (biografia), 2. o filósofo, 3. o homem de ciência, 4. o literato, 5. o poeta, 6. o homem de ação, 7. o eclesiástico, 8. o humorista, 9. o cavalheiro da pátria, 10. o homem, 11. os amigos de Sinésio, 12. seus trabalhos.

Os exemplos expostos mostram uma tendência historiográfica preocupada não só com a restituição de sua biografia, mas também com o volume de informações e registros legados pelo cirenaico. Trata-se de um meio

de organização das informações em que cada etapa da vida de Sinésio é narrada sob a ótica de aspectos que se tornam mais relevantes que outros. Acrescenta-se o fato de que esse método, embora tenha a pretensão de ser crítico, apenas parafraseia as fontes do cirenaico. A crítica, nesses estudos, apoia-se em julgamentos pessoais dos historiadores, tendo em vista os valores morais da própria época em que estão inseridos, como se observa no fragmento acima. Nesses estudos, as narrativas sinesianas são reproduzidas sem que houvesse um questionamento sobre a intencionalidade do autor em disseminar determinadas ideias, visto que grande parte dos especialistas em Sinésio do período consideram-no uma figura-modelo no contexto da Antiguidade Tardia, exatamente como o cirenaico pretende nos fazer-crer.

No contexto da historiografia anglo-americana, convém salientar o trabalho investigativo do historiador J. C. Nicol, intitulado Synesius of Cyrene: his life and writings (1886), em que o estudioso, assim como seus antecessores, faz comentários sobre o conjunto dos discursos escritos por Sinésio, mais uma vez organizados com base na trajetória biográfica do cirenaico. Em seus comentários, o pesquisador destaca as críticas do cirenaico quanto à corte imperial e ao imperador Arcárdio e reproduz as lamentações do decurião sobre o cenário político sem que houvesse um olhar crítico acerca do posicionamento adotado por ele. Em outras palavras, Nicol (1886) mantém as impressões de Sinésio sobre o cenário político e esboça, por extensão, um panorama depreciativo que colabora para fundamentar a ideia de queda, declínio ou fim do Império Romano, abordagem pessimista que marcará a perspectiva predominante da historiografia até meados da segunda metade do século XX.

Sob a ótica de Sinésio, por exemplo, Nicol declara que os fatores que colaboraram para o declínio do Império relacionam-se à aceitação gradativa dos bárbaros em território romano, principalmente, nos ofícios públicos, à corrupção administrativa, aos vícios das grandes cidades, ao luxo da corte oriental e, finalmente, à morte de Teodósio, a qual resultou na divisão do Império, de acordo com o pesquisador, entre seus dois indolentes e incapazes filhos, os quais abriram caminho para ascensão dos bárbaros (1886, p.05). Quanto às circunstâncias históricas em que Sinésio está inserido, Nicol nos esclarece que:

No interior destes anos de declínio e desordem – este período de transição da velha fé à nova – no momento em que a velha civilização com todas as suas corrupções e requintes foi absorvida, no que diz respeito à existência; desapareceu em uma

corrente repentina de bárbaros (NICOL, 1886, p.06, grifo

nosso).

Nota-se que a compreensão histórica do Império Romano e dos discursos de Sinésio se vinculam, para o pesquisador, a questões internas: fortalecimento do cristianismo a partir do IV século e a questões externas: as incursões bárbaras. É digno de nota sublinhar que os estudiosos acima mencionados adotam semelhante ponto de vista sobre Sinésio de Cirene em seus registros, ou melhor, observamos, por parte dos especialistas em Sinésio, entre o início do século XIX e início do XX, apenas um trabalho de reorganização das informações transmitidas pelas fontes para fins didáticos.

Semelhante perspectiva é sustentada pela historiadora Alice Gardner em Synesius of Cyrene, philosopher and bishop para quem, em ambas as esferas (Estado e Igreja) dificuldades foram multiplicadas sem e com corrupção (1886, p.07). Sem, em razão das incursões bárbaras e, com, entre outras razões, pela venda de cargos políticos e emergência de líderes políticos dotados de vícios. Assim como Nicol (1886), Gardner também justifica o declínio do Império por meio de aspectos morais, especificamente relacionados às características pessoais de governantes e imperadores. O imperador Arcádio, por exemplo:

(...) era o mais indigno filho do grande Teodósio. Sem

nenhum vigor de caráter, inteiramente conduzido por um ministro

tirânico (Eutrópio), ou por seus espertos conselheiros, até mesmo com a irracional esposa Eudoxia, ele era capaz de (...) atos ocasionais de grande deslealdade e crueldade. (GARDNER, 1886, p.29, grifo nosso)

O trecho remonta ao cenário político romano do final do IV século e alude, mais precisamente, a personagens-chave da administração imperial por intermédio de juízos de valor depreciativos, o que, de certa forma, ajusta-se ao viés interpretativo adotado por Sinésio. Também reconhecemos, para composição desses juízos de valor, as influências do historiador Edward Gibbon em Declínio e Queda do Império Romano (1778). Com isso, diante de

um cenário político desfavorável à unidade político-administrativa, os autores apresentam Sinésio como uma figura-modelo em face de uma realidade conturbada. Para reforçar, tal perspectiva Gardner afirma que

(...) havia elementos em seu caráter tal como são raramente encontrados em alguém, práticas e espíritos

heróicos. Seu caráter nos atrai pela sua excessiva bondade e qualidades encantadoras, enquanto isto (contexto histórico)

ocasionalmente nos desaponta pela sua total falta de equilíbrio.

(GARDNER, 1886, p.69, grifo nosso)

Os fragmentos acima registram o contexto histórico conturbado no qual Sinésio estava inserido em contraste com suas características pessoais, normalmente exaltadas e concebidas como referência para o homem tardo- antigo. Os estudiosos, com isso, apropriam-se e apenas perpetuam a perspectiva de Sinésio em seus registros. Assim como propõe o historiador Tassilo Schmitt (2001, p. 56-7), não se considera a dicotomia entre realidade e retórica. O viés analítico adotado por esses historiadores colabora apenas para reprodução de informações identificadas nas fontes históricas. Com efeito, os historiadores que pretendem sinalizar, nas obras de Sinésio, elementos para justificar a decadência do Império Romano, encontrá-los-ão, sem, no entanto, reconhecer que tal abordagem é parte da organização retórica do discurso; e, portanto, não retratam o mundo, por assim dizer, “real” que se encontra fora dele.

Em perspectiva abrangente, sublinhamos que os historiadores, diante das fontes de Sinésio, reproduziam como realidade, isto é, como representação do mundo vivido aquilo que é, a nosso ver, retórico, ou seja, produto da manipulação de dados com a finalidade de referendar determinado posicionamento político-cultural. Esses estudos, concatenados com a restituição relativamente fiel da experiência de Sinésio e da apreensão de sua interpretação do mundo como forma de compreender os processos históricos a que estava submetido, partiam do pressuposto de que o conhecimento vivido se confunde com a compreensão do real.

Outra característica importante dessa historiografia versa sobre a tentativa de escrita da vida de Sinésio por meio de uma sequência cronológica e lógica dos acontecimentos e informações narradas. Isso confere às narrativas

do cirenaico uma linearidade progressiva e causal, cujo papel era atribuir sentido a elas.

O que também nos chama a atenção, nesses estudos, como já sinalizamos, é a concepção de crítica documental desses autores, a qual está alicerçada, em grande medida, em juízos de valor de caráter psicológico, isto é, com a finalidade de extrair conclusões psicológicas sobre a conduta do cirenaico; haja vista a inclinação desses intelectuais pela composição de descrições marcadamente morais, de tal forma que cada ação do cirenaico, revelada em seus registros, apresenta-se a partir de um antecedente moral que fundamenta, por sua vez, a narrativa.

De acordo com o sociólogo Montagner (2007, p. 252), essa busca de uma causalidade harmônica das histórias de vida individuais pode ser explicada pela necessidade, tanto por parte dos indivíduos quanto da ciência social, de atribuir um sentido às ações humanas, abordagem questionada por muitos pesquisadores contemporâneos, dada a dificuldade de atribuir sentido a um todo que escapa ao próprio sujeito biografado, o qual se encontra inserido em um contexto histórico, que também nos escapa21.

Em geral, observamos que, a despeito do enfoque singular que cada estudioso conferiu às obras sinesianas, há uma nítida inclinação por questões morais que integram suas narrativas. Tais questões contribuem em geral para uma explicação histórica do Império Romano alicerçada nas concepções de queda, fim ou declínio das instituições políticas imperiais. Temas como corrupção, subordo, perda do sentimento patriótico, defesa de interesses pessoais em detrimento de interesses coletivos, venda de cargos administrativos, entre outros, surgem como pano de fundo para evidenciar o posicionamento político de Sinésio, considerado como modelo, conforme mencionamos. Indagamo-nos, diante desses estudos, acerca do que teria motivado historiadores franceses, alemães e anglo-americanos, particularmente, a evidenciar questões morais nas obras de Sinésio no decurso do século XIX e início do XX. Embora seja uma questão complexa, haja vista as especificidades históricas de cada país e de cada historiador de História

21 Possivelmente por esse motivo, torne-se mais adequado, nas ciências humanas, discorrer sobre a construção da persona ou do ethos de um personagem histórico, porquanto tais termos considera o papel dos artifícios retóricos na construção da narrativa biográfica.

Antiga dentro desses países, propomos, como sugestão para reflexão, alguns indícios, uma vez que tal postura dos historiadores nos chama a atenção pela frequência com que tal tema era recuperado.

Inicialmente, convém salientar que essa abordagem não se restringe a historiadores especialistas em Sinésio de Cirene, nem foi introduzida por eles. Entre os especialistas do período que chamamos de Antiguidade Tardia, mencionamos Edward Gibbon em Declínio e Queda do Império Romano (1778) como grande referência para estudos posteriores sobre pensadores tardo- antigos. Nesse sentido, Thompson (1938, p. 117) faz menção ao trigésimo oitavo capítulo da obra de Gibbon, que pode nos ajudar a pensar o que teria motivado historiadores de História Antiga a adotar, com certa frequência, tal eixo temático no período em questão.

É dever de um patriota preferir e promover o interesse exclusivo e a glória de seu país de origem. Mas um filósofo pode estar autorizado a ampliar suas visões e considerar a Europa como uma grande república, cujos diferentes habitantes têm atingido quase o mesmo patamar de educação e cultura. A oscilação de poder continuará a flutuar e a prosperidade de nós mesmos ou os reinados vizinhos podem ser alternativamente exaltados ou depressos; mas estes eventos parciais não podem essencialmente prejudicar nosso estado geral de felicidade, o sistema de artes e leis e maneiras, os quais são vantajosamente distintos, acima do resto da humanidade, os europeus e suas colônias. (GIBBON, apud THOMPSON, 1938, p.117)

É possível que, ao mencionar os eventos parciais que não podem (...)prejudicar nosso estado geral de felicidade, o autor reporte-se aos desdobramentos político-culturais das revoluções inglesas dos séculos XVII, em que, entre outros fatores, questionaram e puseram fim ao absolutismo e ao predomínio dos privilégios da nobreza. Objetivava-se, em geral, pensar em uma forma de governo que se desvencilhasse das concepções de Império e se aproximasse, em contrapartida, do modelo republicano. Sob essa linha de raciocínio, seria conveniente aos estudiosos de História Antiga intensificar os aspectos degenerativos da monarquia e salientar as virtudes, concebidas como “republicanas”, de personagens históricos como Sinésio de Cirene. Julgamos oportuno lembrar que a escrita da História, nesse momento histórico, não tinha o caráter de científica, o que só ocorreria no transcorrer do século XIX.

Dessa forma, o destaque aos aspectos político-culturais europeus, tal como Gibbon demonstra nesse excerto, não é uma atitude arbitrária de valorização da sociedade europeia e, por extensão, britânica por meio dos valores morais helenísticos e da república romana. A nosso ver, as dissensões políticas que se fizeram presentes no continente europeu, especialmente na Inglaterra, desde o século XVII, o fortalecimento da burguesia no cenário político inglês e sua projeção ao continente americano, após a emancipação política dos Estados Unidos, explicam, ao menos em parte, o caráter moralista adotado por vários estudiosos de História Antiga, o qual pode estar associado, a nosso ver, a uma tentativa de construir a identidade de um grupo social proeminente no período em questão – a burguesia. Foram muitos os discípulos de Edward Gibbon que adotaram sua obra como referência para o estudo de pensadores tardo-antigos específicos, como Sinésio de Cirene.

Particularmente na era vitoriana22, o historiador norte-americano Frank M. Turner (1982, p.04) assevera que os escritores impunham suas próprias categorias, valores e ansiedades político-culturais sobre os vestígios históricos, filosóficos e artísticos da Grécia e Roma antigas e foi justamente esta imposição da consciência do momento presente dos modernos sobre a Antiguidade que teria feito os estudos clássicos vitorianos tão vitais, relevantes e intelectualmente dinâmicos.