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Hofmannsthal e a viragem de Lord Chandos

IV – A CRISE DA LINGUAGEM NA VIENA FIN-DE-SIÈCLE

2. Hofmannsthal e a viragem de Lord Chandos

Em 1902, Hugo von Hofmannsthal (2000) escreveu Der Briefe des Lord Chandos, que se tornou um divisor de águas em sua carreira literária. Poeta de fama precoce, aos dezesseis anos já era saudado como “o novo Goethe”25 e neste período, a assistência às aulas de cunho fenomenalista de Ernst Mach na Universidade de Viena foram determinantes para que ele produzisse uma poesia centrada na unicidade entre a vida do espírito e do cotidiano, não distinguindo o plano da subjetividade do patamar dos objetos da realidade (Pollak, 1984).

Quando descrevemos a fórmula machiana do eu irrecuperável, vimos que com ela se expressa um viés reducionista, que considera o espírito uma parte da natureza que também se manifesta nos fenômenos. Segundo Mach, as diferenças que apontamos em relação ao mundo da matéria e ao mundo do espírito seriam ilusórias, produto da diversidade dos aparatos conceituais com que costumamos lidar com uma e com outra instância. Com sua proposta, o autor assumiu um radical fenomenalismo que tinha como uma de suas principais conseqüências tratar todas as referências ao que não podemos conscientemente vivenciar como “entidades metafísicas”, qualidade que as tornavam destituídas de qualquer valor científico. Bertrand Russell (1974, p. 24) rotulou de monismo

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Schorske enxerga a fama precoce de Hofmannsthal como reflexo momentâneo da harmonia de sua obra com a descaracterizada e sôfrega intelligentsia de Viena (Schorske, 1988).

neutro as teses defendidas por Mach, sintetizando-as nos seguintes termos: “as coisas comumente tidas como mentais e as coisas comumente tidas como físicas não diferem com relação a qualquer propriedade intrínseca possuída por um conjunto e não possuída pelo outro, mas diferem unicamente com relação ao arranjo e ao contexto”.

Der Briefe des Lord Chandos dialoga com as idéias de Mach, mas além de assinalar o rompimento de Hofmannsthal com o veio poético, assinala também um rompimento com a visão de mundo machiana. O texto inaugura, como dissemos, uma nova fase literária na vida de Hofmannsthal, que passa a se dedicar ao drama e à confecção de livretos para óperas. Nessa época, o poeta esmerou-se em consolidar o projeto de um Gesamtkunstwerk wagneriano, conforme ilustram Elektra e Der Rosenkavalier, textos que compôs para as duas obras musicais de Richard Strauss. Neste período, “o objetivo das peças de Hofmannsthal era evocar no público um novo tipo de catarse” (Janik & Toulmin, 1973, p. 83).

Em Der Briefe des Lord Chandos, deparamo-nos com uma carta assinada por Philipp Lord Chandos, datada de 22 de agosto de 1603 e dirigida a Francis Bacon. A escolha de Bacon como destinatário justifica-se por ele ser o precursor do pensamento empirista, portanto antecessor da visão fenomenalista machiana com que Hofmannsthal tenciona romper. A carta justifica porque Chandos deixara de escrever textos literários e explicita os motivos que o conduziram a não mais alimentar qualquer pretensão de novamente voltar a fazê-lo. Na primeira parte, ele rememora os objetivos que o alentavam durante seu período de fecundidade literária e recorda que, outrora engajado numa visão fenomenalista, via a toda existência como uma grande unidade. Para ele, “o mundo mental não parecia ser oposto ao físico” (Hofmannsthal, 2000, p.49). Se os planos físico e mental se revelavam a ele como indiferenciados, então “um não era inferior ao outro, nem em sua intangível espiritualidade nem em sua força física”. Como podemos observar, a passagem mostra que Lord Chandos fora outrora comprometido com o reducionismo fenomenalista defendido por Mach.

Na segunda parte do texto, Chandos descreve desta forma seu processo de afastamento dessa visão de mundo: “primeiro perdi gradualmente a habilidade para usar as palavras que normalmente são usadas por qualquer um com fluência não titubeante, quando discutia temas gerais ou elevados. Eu sentia uma inexplicável aflição (unerklärliches

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Unbehagen) se tentasse pronunciar as palavras ‘espírito’, ‘alma’ ou ‘corpo’” (Hofmannsthal, 2000, pp. 50-51). Em seguida, viu-se obrigado a cessar também com os diálogos corriqueiros, pois esses o deixavam mais furioso, por lhe parecerem improváveis e falsos.

Chandos relata que procurou escapar a essas sensações por meio da leitura dos grandes mestres espirituais da Antigüidade, em especial Sêneca e Cícero. Contudo, apesar de entender e admirar suas idéias, em nenhum momento isso significou uma real aproximação aos seus pensamentos, conforme ilustra a passagem a seguir: “Um sentimento de terrível solidão invadia-me enquanto estava entre eles. Sentia-me como que trancado num jardim cheio de estátuas sem olhos (lauter augenlosen Statuen), e precipitava-me para fora novamente” (Hofmannsthal, 2000, p.52-53). A metáfora que procura aproximar grandes obras da literatura clássica de estátuas sem olhos aponta para uma dupla desconfiança em relação à linguagem: primeiro, na imobilidade própria das estátuas se revelaria a acusação de uma permanente incapacidade por parte dos livros de real interação com o incessante fluxo do vivido; segundo, na ausência de olhos perpassando todas as estátuas do jardim encontramos a alusão à ausência de expressão nas obras literárias que, conquanto caracterizadas por um fascinante conjunto de palavras, careceriam de uma alma irmanada com o mundo.

O texto mostra que a percepção da esterilidade das palavras conduziu Lord Chandos à consciência de sua própria fragilidade individual. Do ponto de vista das crises vienenses, tal afirmação sugere que a crise do sujeito se revela a partir da percepção da crise da linguagem. Em outros termos, a crescente sensação de dúvida e descrédito diante da capacidade de a linguagem representar o mundo e a nossa própria identidade seria responsável pela sensação de fragilidade e vazio da própria existência.

Em síntese, o percurso de Chandos foi marcado primeiramente por uma sensação de incômodo, então proporcionada pelo uso de palavras destituídas de qualquer sentido, como “espírito”, “alma” ou “corpo”. Em seguida, a sensação aumentou, alimentada pela percepção do vazio característico das situações e diálogos corriqueiros: quando palavras como ‘alma’ ou ‘corpo’ ficam estéreis, a própria existência do indivíduo em suas manifestações mais elementares também se anula. Por fim, quando Chandos buscou refúgio no sólido alicerce dos grandes mestres da literatura, tudo o que alcançou foi a sensação de

absoluto vazio, de ausência da vida, ou seja, da falta da envolvente expressão que impregna o vivido. Sua gradual tomada de consciência assinala a percepção de que o fato da redução do físico e do mental a uma mesma esfera (o campo das sensações) equivale à plena negação de ambas as instâncias.

Para superar esse estado de coisas, o poeta valeu-se do místico. Ele sentiu que fatores elementares como um regador, uma grade largada num campo, um cachorro tomando sol, um reles cemitério, um aleijado, uma pequena fazenda são coisas que são instrumentos que podem conduzir a um espasmo místico, conforme explica nessa passagem “qualquer uma destas coisas e milhares de outras similares que escorregam diariamente aos olhos com natural indiferença podem – em algum momento que eu estou inábil a elucidar – subitamente me levar a uma sublime e comovente aura, algo que palavras parecem também falhar na descrição” (Hofmannsthal, 2000, p. 53). Tal arrebatamento não é nenhuma espécie de compaixão (Mitleid): “é muito mais e muito menos que compaixão, mas uma enorme empatia (ein ungeheures Anteilnehmen), uma corrida para dentro destas criaturas (ein Hinüberfliessen in jene Geschöpfe), ou um sentimento do fluxo de vida e de morte, de sonho e de vigília que tivessem fluído de dentro delas por um instante – de onde (von woher)?” (Hofmannsthal, 2000, p. 55). Essa sensação de plena interação com o fluxo da vida irrigador de todas as coisas significava a possibilidade de “entrar numa relação momentânea com toda existência, desde que começássemos a pensar com os corações”.

Não podemos deixar de considerar que na superação encontrada por Lord Chandos transparece um diálogo de Hofmannsthal com a obra de Schopenhauer. Vimos, no segundo capítulo, que para Schopenhauer a vida é dor contínua, espécie de rochedo que, tal como sucedeu a Prometeu, mantém todos os entes acorrentados e condenados a um perpétuo sofrer. Por isso, “... não sentimos a saúde de nosso corpo, mas tão somente o ponto onde o sapato aperta” (Schopenhauer, 1974, p. 291). Assim, positivos, o mal e a dor nunca passam despercebidos; negativos, o prazer e a felicidade apenas são notados pela ausência − por exemplo, quando perdemos os incomensuráveis tesouros da juventude e da saúde. O filósofo frankfurtiano apresenta a arte como uma das duas possibilidades de superação do jugo da Vontade, sendo a outra a moralidade. Examinemos brevemente os contornos da liberdade proporcionada pela estética.

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Schopenhauer define a arte como atividade essencialmente contemplativa, modalidade negativa que transforma por um breve período a coisa-em-si em objeto de conhecimento. Sua efetivação ocorre com o esboço de uma nova modalidade de sujeito: o puro sujeito de conhecimento. O autor aponta para um sujeito cognoscente e um sujeito volitivo, sendo o primeiro aquele que conhece organizando seus dados sensórios nas formas apriorísticas do espaço e do tempo, dando-lhes contornos de matéria com sua faculdade do entendimento (Schopenhauer, 1986a). Já o segundo, é aquele que ao se reconhecer como vontade, descobre “o mecanismo interior de seu ser, de suas ações, de seus movimentos” (Schopenhauer, 1986a, p. 158). Ambos são caracterizados por Schopenhauer como sendo escravos da Vontade. Se o sujeito cognoscente se revela perpetuamente enganado pelo Véu de Maya, – indefinidamente envolto e engajado em um mundo de aparências – o sujeito volitivo mostra-se inexoravelmente refém de um inquebrantável círculo vicioso de desejos e frustrações, ou seja, servo cuja tarefa única é efetivar os anseios da Vontade que lhe determina os movimentos.

Na vivência da arte ocorre o “milagre” da fusão dos dois sujeitos, junção que, por um efêmero período, precipita a eclosão da modalidade do sujeito estético, também chamado de “puro sujeito do conhecimento”. Essa é a forma como Schopenhauer nomeia o sujeito que consegue escapar ao domínio da Vontade e do princípio de razão, ou seja, aquele que é capaz de contemplar a matriz que torna possível a manifestação da coisa-em- si. Tal “milagre” configura-se quando o serviçal do sujeito volitivo – o sujeito cognoscente – consegue subordinar a Vontade ao seu anseio de conhecimento. Dessa forma, quando “vem uma causa externa ou uma disposição interna que subitamente nos ergue acima da infinita torrente do querer, arrebatando a consciência da opressão da Vontade” (Schopenhauer, 1986a, p.196), temos a contemplação pura, momento em que o sujeito não se vê mais apartado dos objetos que conhece, mas consegue a eles se fundir. É na pura contemplação que suprime toda a individuação gerada pelo princípio de razão, conseguindo enxergar algo que não é mais uma coisa particular, mas a Idéia que permite à Vontade se manifestar naquele ente particular.

A via estética é, no entanto, solução temporária, pois, passado o estado de arrebatamento, o sujeito volta a ser refém da Vontade, apenas a senda da moral é que pode nos fornecer a plena libertação. Segundo Schopenhauer (2001, p. 137), do ponto de vista da

moralidade existem

... apenas três motivações fundamentais das ações humanas, e só por meio do estímulo delas é que agem todos os outros motivos possíveis. Elas são:

a) Egoísmo, que quer seu próprio bem (é ilimitado);

b) Malvadez, que quer o mal alheio (chega até a mais extrema crueldade);

c) Compaixão, que quer o bem-estar alheio (chega até a nobreza moral e a generosidade).

O despertar dessa forma de libertação pode se dar em qualquer ser humano, podendo incidir não apenas sobre o soberano caráter egoísta, mas também sobre a malvadez. A superação metafísica do querer-viver tem como ponto de partida a constatação da inevitabilidade do egoísmo no mundo, e sua caracterização como um grande erro: no fundo todos somos produtos da mesma motivação, ou seja, somos filhos da Vontade. Somente quando conseguimos atravessar as cortinas do Véu de Maya, deixando para trás o fragmentado e multiforme mundo fenomênico, é que somos capazes de instaurar uma ordem moral (a única que Schopenhauer admite). Efetiva essa experiência metafísica aquele que pode vivenciar com plenitude uma paz e alegria celestial, assumindo um radical ascetismo e a consciência da identidade entre si e todas as outras coisas. Capaz de contemplar o mundo sub specie aeternitatis, esse sujeito metafísico enxerga a justiça eterna que paira sobre o mundo e constata que “a dor está essencial e indissoluvelmente unida à vida” (Schopenhauer 1986a, p. 518), por isso se irmana com o sofrimento alheio, tomando como sua as dores dos outros. Ele assume a compaixão como mote de sua vida.

Em Der Briefe des Lord Chandos, Hofmannsthal afirma que a única alternativa de superação a uma vida pautada nos sentidos, portanto presa ao princípio de individuação, é a aquisição de uma visão sub specie aeternitatis e nisso concorda com Schopenhauer. Então, somente quando passamos a ver o mundo como totalidade, apreendendo que a vida pulsa em qualquer coisa que exista, é que nossa própria existência ganha sentido. No entanto, diferentemente de Schopenhauer, o autor rejeita a idéia de que essa visão seja despertada pelo sentimento de compaixão (Mitleid): Chandos diz claramente que o arrebatamento que vivenciou “é muito mais e muito menos que compaixão” (Hofmannsthal, 2000, p. 55). A solução para o vazio da linguagem e do sujeito eclode com um sentimento de alegria, ou

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seja, como um contentamento que se manifesta com a descoberta da vida como uma grande unidade. Para Chandos, o despertar desse sentimento revela-lhe que compartilhamos a mesma essência com tudo que existe. Não se trata de um sentimento mediado, ele está fora do tempo e não pede uma explicação de cunho racional, afinal sua essência é romper com o princípio de individuação.

Na conclusão da carta, Chandos salienta que, desde que teve essa experiência, procura se dedicar a uma vida simples, optando por abrir mão das línguas comuns (inglês, espanhol ou italiano) em favor de uma língua que não conhece, capaz de veicular a “fala” das coisas mudas e, ainda, de veicular algo sobre si próprio. Hofmannsthal assume, então, que a vida se revela dona de sua própria linguagem, uma linguagem paradoxal, que tem como principal ferramenta o silêncio. Foi o engajamento nessa linguagem silenciosa que possibilitou a Chandos dar um sentido a sua alma.

O rompimento de Hofmannsthal com o fenomenalismo machiano visou a resgatar a integridade do sujeito pela sua inserção numa espécie de monismo que, em vez de desintegrá-lo num imenso feixe de sensações, resgata sua unidade na percepção de sua irmandade com tudo que existe e, conseqüentemente, na percepção de que se é um microcosmo. Destacamos que na carta de Lord Chandos há o problema da inconsistência do sujeito, cuja superação se fez pela eclosão e superação da crise da linguagem. Hofmannsthal propõe um espasmo metafísico que se cristaliza quando Chandos é tomado pela consciência da esterilidade da linguagem e do quanto ela é responsável por nos envolver no Véu de Maia, constantemente aludido pela filosofia de Schopenhauer.

Lord Chandos renuncia ao paradigma fenomenalista ao constatar uma crise da linguagem, que se expressa em dúvidas profundas sobre a capacidade de significação das palavras. A carta pode ser entendida, portanto, como um momento em que Hofmannsthal se rebela contra a linguagem, enxergando-a como estéril e diretamente responsável pelo vácuo de valores impregnante da Viena fin-de-siècle. O texto mostra que apenas quando Lord Philipp Chandos abandona a prática da linguagem consegue alcançar um estado de serenidade e harmonia com o mundo. Ele tem uma experiência mística, na qual a vida se revela como uma grande unidade que se mostra presente nos grandes e pequenos acontecimentos. Encontramos em Der Briefe des Lord Chandos a afirmação do silêncio

como solução contra a crise da linguagem, proposta também apresentada por Fritz Mauthner, em sua crítica da linguagem.

Karl Kraus também detectou anormalidades nas relações entre a linguagem e o mundo. Porém, seu diagnóstico difere daquele formulado por Hofmannsthal e Mauthner. Examinemos agora a concepção da linguagem que norteou o polêmico ensaísta.