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O homem em núpcias com o mundo

1.2 A filosofia do absurdo de Albert Camus

1.2.1 O homem em núpcias com o mundo

Ainda que de forma mais resumida, mas, a nosso ver, fundamental para a compreensão do sentido amplo da obra de Camus, incluiremos uma breve análise das noções de núpcias e revolta apresentadas por ele. Para que fique mais claro: reduzir a filosofia camusiana ao absurdo seria ignorar as outras “pontas” de seu pensamento, entendendo o conjunto de suas ideias filosóficas erroneamente como uma espécie de niilismo, em que o absurdo reina como sentimento insuperável. Essa omissão poderia facilmente gerar análises equivocadas já que, conforme será demonstrado, Camus investigou o absurdo, justamente, para tentar transcendê-lo7.

Apresentar estas duas noções será útil para, mais adiante, destacarmos as diferenças entre o absurdo camusiano e, digamos, o absurdo muriliano, que consideramos tão significativas quanto suas semelhanças. É nessa divergência, aliás, que Murilo Rubião, a nosso ver, demarca sua visão particular, como sujeito criador e artista que enxergou na arte

7 Além da filosofia geral de Camus aqui apresentada, tendo como referência seus intérpretes, a seguinte frase

do filósofo atesta esta visão: “Nas profundidades mais escuras do niilismo, procurei apenas pelos meios de transcender o niilismo” (CAMUS, 1965, p. 865).

37 uma via de questionamento da condição humana, assumindo papel de artífice de um texto literário que trouxe aspectos nitidamente inovadores para a moderna literatura brasileira.

Entre 1936 e 1937, ou seja, cerca de cinco anos antes de publicar O mito de Sísifo, Camus escreveu o ensaio Núpcias, o verão (Noces). Se, em O mito de Sísifo, há o divórcio entre o homem e o mundo, o que se vê em Núpcias é uma relação anterior à descoberta do absurdo, ao divórcio, descrita, como o título indica, pela harmonia, união ou núpcias do homem com o mundo. Coerente com a ideia de experiência direta do homem com o mundo e negação da transcendência que embasam o pensamento de Camus, estas núpcias dão ao homem um sentimento de felicidade como uma “primária simbiose” com a natureza, conforme a definição de Tarzia (2012), em Do absurdo à revolta: expressões do trágico no pensamento camusiano:

Nesse ensaio, a felicidade possui um caráter sensível, físico, e não haveria nada para além desse mundo que garantiria a felicidade, apenas o mundo vivido, experenciado. Esse prazer sensível retratado em Noces como felicidade – e, portanto, como relação – é sentido como uma espécie de dionisismo, como ímpeto e fruição, desejo de fundir-se com a natureza sem quaisquer elementos intermediários: uma espécie de primária simbiose (2012, p. 64).

Ou seja, o homem em núpcias com o mundo não pode conhecer ainda o absurdo, simplesmente porque sua experiência existencial ainda não é problemática: ele está unido à natureza. Neste mundo de núpcias, “[...] não buscamos lições, nem a amarga filosofia que se exige da grandeza. Além do sol, dos beijos e dos perfumes selvagens, tudo o mais nos parece fútil” (CAMUS, 1979, p. 9).

Se o sentimento do absurdo traz a paradoxal exigência de familiaridade com o mundo por um homem que sabe da impossibilidade desta familiaridade, nas núpcias, há “um acordo, um parentesco do homem com o mundo” e uma felicidade que, além de “embriaguez sensual”, é “acompanhada de uma espécie de êxtase cósmico” (RICOEUR, 1996).

Mas, no trajeto do pensamento camusiano, tal harmonia não se sustentará, visto que o absurdo se põe à espreita. Afinal, as núpcias só existem porque a relação deste homem com a natureza ignora completamente outro tipo de relação que terá de eclodir:

38 Essa sensibilidade imediata, fenomênica, não é possível ao homem em seu cotidiano, porque há também outra relação entre o homem e o mundo – que não lhe permite ser feliz em união – que lhe impõe a consciência da alteridade. Ele [o homem em núpcias] só atenta para a entrega na natureza porque a deseja como pertença, deseja ser um com o todo (daí dizemos que felicidade é desejo, desejo de união), pois desconhece, ainda, a existência do outro (TARZIA, 2012, p. 65).

Assim, aquele “êxtase cósmico” como que evapora na vida cotidiana no reconhecimento da alteridade, revelando a desarmonia das relações e do mundo. A felicidade plena transforma-se em estranhamento, e as núpcias dão lugar ao absurdo inevitável. A lembrança da felicidade pregressa será o alimento da “nostalgia de unidade” de que nos fala Camus em O mito de Sísifo. Aquele “apetite de clareza” não é nada mais do que a nostalgia do homem na era de núpcias com o mundo8.

Para o homem camusiano, é impossível resgatar a felicidade plena dos tempos de núpcias, já que, após a percepção do absurdo existencial, qualquer felicidade alcançada por este homem terá de satisfazer sua consciência crítica agora desperta. Qualquer felicidade plena (aquela fusão simbiótica) só será possível por algum tipo de superação ou transcendência do absurdo, e nunca como regresso à harmonia primeva. Tarzia (2012) esclarece:

Nesse sentido, a felicidade como relação dupla e completa só é possível ao homem camusiano quando ele toma consciência de sua condição infeliz. Essa tomada de consciência é inerente à descoberta do Absurdo. Se por um lado são a felicidade e o amor que fazem surgir o elo entre homem e mundo, em contrapartida, é o absurdo que o afasta. E é somente

pela consciência do absurdo que a felicidade tem lugar para Camus, na completude do homem que afirma e nega. Isto, porque a relação homem e

natureza, possuindo um aspecto destrutivo, de rompimento, não pode ser negada, sob pena de a felicidade não se completar por ausência de

consciência (TARZIA, 2012, p. 67. Grifos nossos).

Assim, a “tomada de consciência” é um momento chave para a felicidade possível (a transcendência do absurdo) do homem camusiano. Por isso, a afirmação “é preciso

8 Ainda que a teoria do absurdo camusiana oponha-se aos sistemas totalizantes e, portanto, aos dogmas

religiosos em geral, por uma espécie de empréstimo de linguagem, o filósofo chega a descrever esta “nostalgia da unidade” ou “nostalgia do absoluto” do homem absurdo, também como uma nostalgia do “paraíso perdido”, e a descoberta do absurdo como sua “queda” (remetendo, de novo, à expulsão do Éden). Dessa forma, “queda” e “paraíso perdido” também acabam fazendo parte das terminologias do filósofo, mas em sentido não religioso, de forma que, eventualmente, este trabalho recorrerá a estas expressões.

39 imaginar Sísifo feliz” só faz sentido considerando que Sísifo é consciente do seu destino absurdo9. Ou seja, a única felicidade possível para o homem camusiano é a que não violenta sua consciência, mas, pelo contrário, parte dela.

Por fim, cabe a pergunta: se não é possível eliminar este absurdo, é possível transcendê-lo? Para Camus, o caminho é a revolta. Buscaremos sintetizar a seguir a revolta camusiana nos seus pontos mais relevantes, sempre considerando o contexto de nossa análise.